A manhã seguinte era dia de igreja. Acho que dizer que não queria ir é até repetitivo pra você, mas aquela manhã, em especial, eu não tinha forças para ir. Mas, assim como eu não tinha forças para sair da cama, também não tinha forças para resistir às investidas de minha mãe na porta de meu quarto. Quando percebi, estava de calça e tênis em um domingo de manhã.
Tem alguma coisa nos domingos, isso é fato. O sol parece mais amarelo, mais claro, e, naquele dia, ele invadia meu quarto pela janela, fazendo tudo parecer como um sonho, e eu tenho certeza que gostaria muito de ter me agarrado a essa esperança.
Me olhei no espelho da porta do guarda-roupa e arrumei a camiseta que estava meio torta. Tinha a impressão de que meus olhos estavam um pouco inchados, mas agora não havia o que fazer. Saí do quarto e vi que minha mãe também já estava preparada a sair de casa. Ela ainda tentou trazer a discussão do dia anterior à tona, mas eu só ignorei e ela fingiu esquecer quando estávamos chegando próximo à igreja.
Entrei junto com minha mãe e me sentei ao lado dela no banco, me encolhendo o máximo que podia. É engraçado como igreja tem um cheiro esquisito. Não sei se é o verniz dos bancos, a poeira das bíblias ou a hipocrisia das pessoas, mas é um cheiro velho, que parece poder te envelhecer de dentro pra fora.
Sentia olhares em minha direção. Não sabia se realmente estavam olhando para mim ou se era apenas minha paranoia agora que eu sabia sobre mim. Sentia que a qualquer momento, com qualquer gesto, as pessoas ao meu redor podiam descobrir.
— Te senta direito, menino! Todo encolhido — minha mãe me disse próximo ao ouvido e se sentando muito reta logo em seguida, como se nada tivesse acontecido.
Foi quando pensei que, realmente, sentar daquela forma era suspeito. Desenrolei a coluna e varri a igreja com um olhar e por um segundo me vi aliviado, ninguém sequer reparava em minha existência, isso até eu olhar para a porta da lateral esquerda, lá da frente, e ver o cabelo preto muito liso e o sorriso esticado, os dois virados na minha direção com dois olhos me fuzilando.
Aquilo me acendeu um alarme. Disse pra minha mãe, afobado, que iria no banheiro. Ela nem fez objeção alguma, pois, da forma que eu falei, ela deve ter imaginado que eu estava prestes a me borrar no meio da igreja. Não seria ela que lavaria essa cueca, mas ela quis se privar da vergonha.
Me estiquei todo para passar pelas pessoas e chegar ao final do banco, pedi várias licenças e recebi vários olhares esquisitos e irritados como resposta. Não importava, eu só queria sair da vista daquela criatura.
Cheguei ao centro da igreja, vi vários olhares indiscretos se virando em minha direção e aquela ansiedade inicial voltou, mas apenas os ignorei. Gente enxerida.
Andei rápido em direção à saída. Fui em direção ao corredor da direita, mas mal virei quando ouvi o meu nome. Um “Samuel” muito alegre e entredentes que fez um arrepio escalar minha coluna vértebra a vértebra. Armei um sorriso e me virei para olhar.
Afinal era mesmo a esquisita da Renata, a líder do horrendo “grupo de jovens”. Claro que ela me ordenou amigavelmente que fosse me juntar com os outros que se reuniam lá nos fundos, em um ambiente que pretendia ser muito “cool”, muito “jovem”, mas que só era tosco mesmo. Ainda protestei, alegando que ia ao banheiro. Talvez conseguisse me esquivar dela sob o argumento da dor de barriga e me esconder na multidão mais uma vez. Infelizmente ela não caiu.
— Tem banheiro lá atrás também — disse com o mesmo sorriso.
Ainda apontava em direção aos banheiros do lado direito quando fui arrastado sem nem perceber na direção contrária. De longe, antes mesmo de chegar ao grupo, eu avistei o cartaz “Radical mesmo é ser de Jesus” e quase vomitei ali no chão mesmo. Quando chegamos eu vi ainda outros cartazes novos. “Droga é coisa de otário”, “Sexo bom é com aliança no dedo” e “Não se orgulhe do pecado”, com a palavra “orgulho” com as cores do arco-íris. Talvez eu precisasse mesmo de um banheiro.
Um grupo de adolescentes da minha idade estava se reunindo em círculo em um espaço ao ar livre. Uma preletora, como chamavam, falava em uma das cadeiras do círculo. Quando Renata e eu chegamos, o discurso parou e o círculo inteiro olhou para nós. Recebi vários tchauzinhos e pessoas me dando oi. Respondi a todos com um aceno baixo e um sorriso quase tão falso quanto o de Renata. A minha escolta me apontou o banheiro, nos fundos da área onde acontecia a reunião, e eu fui lá.
No banheiro sentei no vaso, esfreguei a cara e me preparei para mais um domingo daqueles. Respirei fundo e torci pra não ter nenhuma cantoria em grupo. Queria ao máximo evitar qualquer estresse.
Sai do banheiro com cara de paisagem, peguei uma cadeira dobrável no canto e levei em direção ao círculo. Sentei em qualquer lugar. Não era amigo daquelas pessoas e nenhum lugar que me sentasse ia tornar aquela experiência mais agradável.
Sentei entre duas garotas que abriram espaço entre elas para que eu encaixasse a cadeira. Depois do desconforto da cadeira de metal arrastando no cimento do piso, a preletora voltou a falar. Eles sempre buscavam assuntos que pudessem ser relevantes para o “mundo jovem”, seja lá que mundo é esse. Pelo que eu entendi, o tema daquele dia era “relacionamentos”.
“A mulher foi criada para completar o homem” foi a frase que fez minha mente voar e sair dali. Admito que a igreja tem um mérito. Até aquele momento fiquei tão envolvido em não ser cooptado para aquele “clube da oração” que me esqueci quase que completamente da tua ausência no dia anterior. Tinha uma melancolia muito profunda dentro de mim, mas nada que fosse diretamente relacionado a você, a corvos, ou mesmo à praça que era nosso lugar. Era apenas uma tristeza, um peso, que sem motivo eu não tentava carregar, mas que mesmo assim estava preso aos meus pés. Naquele momento, com esse discurso sem sentido rolando ao fundo, eu já estava derrotado. Tinha entrado no círculo e estava fazendo volume no público daquela ladainha. Minha distração havia desaparecido.
Mas não foi nem isso que fez minha mente voltar a você. Foi quando eu te reconheci.
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