Voltei pra casa em um misto de felicidade e nervosismo. Queria te ver de novo e saber que estava tão perto era revigorante; ao mesmo tempo não sabia ser teria coragem para me aproximar. Era como se fosse sua alma em um outro corpo que eu não reconhecia.
A ideia de que você na verdade estava ali, me sorriu e nossos olhares se encontraram como antes, me deu uma energia que eu não imaginava. O peso daquela melancolia? Não apenas o levantei como o atirei longe. As ideias de que a culpa por você não ter aparecido era minha? Todas esmagadas por aquele sorriso. Quem diria que um sorriso tão leve teria tal poder. Dentro de mim eu queria me preocupar e me irritar. Você tinha me abandonado naquela praça, largado te esperando por horas. Mas não conseguia.
Bem era verdade que não devia me surpreender. Seu sorriso sempre teve um poder que era quase sobrenatural. Tinha um efeito sobre mim que, por muito tempo eu não soube explicar. Era como um veneno, me intoxicando cada vez mais, e eu sentia o efeito dele ficando cada vez mais forte. Só que era um veneno tão doce que sentia cada vez mais necessidade dele.
Digo isso pois, da primeira vez que nos vimos, não fiquei tão abalado quanto da última. Não sei se você lembra, mas já sonhei com aquele momento algumas vezes. Às vezes como sonho, às vezes como pesadelo.
Tem uma coisa que eu sempre quis te perguntar, mas nunca perguntei porque achei que podia te constranger, e também nunca me importou muito. Mas agora, devido às circunstâncias, me peguei novamente pensando no dia em que nos conhecemos.
Eu tinha saído daquela festa de halloween que tinha ido às escondidas, já que minha mãe nunca me deixaria ir. Bebidas, festa pagã e música “do mundo”, uma combinação que era capaz de fazer ela me acorrentar em casa caso eu mostrasse algum interesse. Claro que isso só me fazia ter ainda mais interesse.
Me tranquei no quarto prometendo dormir cedo depois de um dia inteiro escondendo minha empolgação; e então, quando vi que minha mãe também tinha ido ao quarto, me esgueirei pela casa. Sapatos nas mãos para não fazer barulho e me espremi por uma fresta na porta da frente, para não ter que abri-la inteira e evitar fazer algum ruído.
Mal consegui segurar a empolgação quando senti o cheiro do ar noturno enquanto me agachava para amarrar os cadarços. Sorria sozinho com aquela vitória.
Caminhei em direção à festa. Era a casa de uma amiga da escola, que havia estendido o convite a todos da sala, e aparentemente não havia parado por aí, já que a casa mais parecia um formigueiro. Para mim era ótimo.
Tocava uma alta música pop que todos cantavam e dançavam, mas não era só isso que me fazia sentir deslocado. Todos ao meu redor estavam fantasiados e eu, obviamente não estava. Conseguir sair de casa já havia sido desafio o suficiente.
Passeei um pouco pela festa e troquei algumas palavras com uns amigos. Todos evidentemente muito surpresos de me ver ali. Riram, me abraçaram, bagunçaram meu cabelo e eu resmunguei de brincadeira.
Até ali estava tudo de bom tamanho, até que alguém surgiu com suco misturado com bebida. Meus amigos todos pegaram um copo, e eu só aceitei. Afinal era vermelho e tinha cheiro doce, logo pra mim era um suco. Quando provei veio o primeiro baque. Engasguei e senti o álcool esquentando todo o caminho até meu estômago e se espalhando pro resto do meu corpo. Claro que a turma inteira riu da minha reação, mas comemorou meu primeiro gole em “bebida de macho”, segundo os mesmo.
Se o primeiro gole foi difícil os próximos foram ficando melhores, e até mesmo doces em certo ponto.
Não percebi o momento exato que fiquei bêbado, ou talvez não lembre. Sei que fiquei, e de repente estava cantando e dançando uma música que nem mesmo sabia que conhecia, no meio de pessoas cujo a maioria dos rostos nunca vi, pois usavam máscaras, e aqueles de rosto descoberto eu lembro pouco mais que um borrão.
Assim como não lembro o momento exato em que fiquei bêbado, também não lembro o momento em que deixei a festa. Lembro de estar na calçada da casa da minha amiga, e lembro de estar muito feliz.
Feliz o bastante para ignorar o fato que a rua estava completamente deserta. Caminhei em direção à minha casa, meio sem noção do que estava fazendo.
Parei na primeira esquina para vomitar vodca, corante vermelho e pão com patê e segui adiante, com parte da minha consciência encaixada no lugar. Foi só então que percebi o sujeito que vinha atrás de mim e me dei conta de que me seguia há um tempo. Nenhuma fantasia, então claramente não estavam voltando de uma festa.
Lembro de pensar “idiota, mas tu também não tá fantasiado” e rir.
É, eu ainda tava bem bêbado.
Mas de certa forma, nós dois sermos desfantasiados naquele halloween me deu um certo conforto. Meu único nervosismo então se voltou para o fato de eu ser a única pessoa, além dele, na rua; e o fato do sujeito ser bem mais alto que eu e com um braço que tinha a largura da minha coxa.
Comecei a andar mais rápido e entrei na praça, nossa praça, a qual precisava atravessar para chegar em casa. Ele pareceu notar, pois acelerou o passo também.
Ele começou a se aproximar. Claro, bem mais alto que eu. Pernas maiores.
Foi quando me desesperei. Corri.
O tempo pareceu passar diferente. Eu sei que foram alguns metros, mas parece que corri dele por quilômetros até que ele me alcançasse e me desse um empurrão.
Tropecei nas minhas próprias pernas e caí de peito no chão em uma calçada de cimento. Senti arranhões se abrirem e arderem, mas eram o menor dos meus problemas.
Me virei e vi pouco mais que uma sombra que tapava toda a luz do poste. Tudo o que eu via era aquele cara enorme se aproximando devagar. Não faço ideia do que ele queria, e nunca saberei — ainda bem —, pois você, vindo sabe-se lá de onde, saltou nas costas dele. Prendeu o pescoço dele com seu braço e eu fiquei só lá, sem reação, vendo um braço vestido de preto, com uma capa de penas pendendo dele, agarrando o homem que tinha me derrubado.
E foi aquela a primeira vez que eu te vi. Não o seu rosto. Mas te vi. Você tava ali, e uma parte tão importante de você estava se mostrando, que não precisei te enxergar para te ver.
O homem ficou se debatendo com você preso nas costas dele. Tão alto que ele era, que os teus pés nem encostavam no chão, e conforme ele girava o corpo, você ficava sendo sacudido. Inevitavelmente foi jogado pra longe rolando no chão, mas de alguma forma se levantou antes mesmo de parar.
Eu ainda estava sem ação, deitado no chão, ou talvez só quisesse muito saber como aquilo ia terminar. Vi então a coisa mais extraordinária de minha vida. Você dando uma surra em um sujeito que devia pesar o dobro que você.
Hoje tenho vergonha de lembrar, e ainda mais de escrever, mas a cada soco e cotovelada que eu via acertar o rosto do meu agressor, eu sentia um pontada de vontade de sorrir. Não pela violência — talvez só um pouco — mas porque era extraordinário te ver ali, com sua máscara de corvo, aqueles lábios entreabertos, e seu corpo se movendo antes que o sujeito pudesse sequer encostar em ti.
No final, a cena toda deve ter durado uns três minutos e três socos. Quando levou aquele chute na orelha o grandão caiu de lado e se levantou todo estabanado correndo dali.
Você me deu “oi”. Eu agradeci, impressionado. Vi você ficar com as bochechas vermelhas por baixo da máscara e segurar um sorriso envergonhado enquanto me oferecia uma mão para me levantar. Ficamos frente a frente. Você mais alto que eu, mas conseguia ver seus olhos por trás da máscara.
O que se diz numa situação dessa? Bom, não dissemos nada. Atravessamos a praça calados. Eu sentia uma coisa estranha dentro de mim, e sabia que você tava sentindo também. Acho que isso que me deixou nervoso. Já tinha sentido isso antes, mas sentir de volta assim?
Antes que eu percebesse a gente estava numa esquina bem movimentada pra aquele horário. Algumas lanchonetes estavam abertas e pessoas entravam e saíam, enquanto outras passeavam, sozinhas ou acompanhadas de cachorros.
Te olhei e apontei na direção da minha casa, perguntando se ia para o mesmo lugar que eu. Você respondeu que não. Que iria na direção oposta. E então ficamos em silêncio.
“Bom, eu vou indo”, você disse, acenando para mim e começando a dar as costas. Acenei de volta e disse “tchau, Corvo”, que era a única coisa que sabia sobre você. Sua fantasia.
Fiquei olhando você se afastar por uns instantes e comecei a voltar para casa.
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