Quando aquele bilhete desapareceu, eu lembro que senti como se o chão sumisse de debaixo dos meus pés. Eu continuava caminhando por puro milagre, ou pura ilusão. Por onde andava eu imaginava que a qualquer momento podia vir uma pedra em minha direção. Ou mesmo o chão se abrir e eu cair direto no inferno, pois até Deus, se lesse aquele bilhete, podia acabar pensando que eu era gay.
Bom, nada disso ocorreu — óbvio. Mesmo assim, eu tinha a plena certeza de que não tinha sido você a pegar aquele bilhete. Por isso quando o sábado chegou eu tentei me convencer a todo instante de que devia ficar em casa. Não houve na verdade uma discussão minha comigo mesmo. Todas as partes de mim concordavam que o melhor a se fazer era ficar em casa. Eu disse isso para mim enquanto tomava banho, e concordei, afinal as probabilidades de você ter pego o bilhete eram mínimas. Repeti enquanto procurava com cuidado a mesma roupa do halloween, pois no final das contas não tinha nem um motivo para eu querer te ver de novo; eu ainda concordava. E continuei meu mantra enquanto saía de casa, sem entender o motivo de estar indo em direção àquela praça.
O motivo, pelo jeito, estava me esperando lá, em uma fantasia de corvo.
Eu te vi de longe. Parecia todo nervoso, cruzando e descruzando as pernas e olhando para os lados. Sem falar que você deve ter se levantado, dado uma volta e sentado de novo umas três vezes só no curto minuto que eu fiquei te olhando de longe. Lembro de ter achado isso bem fofo, apesar de não admitir. Fofo não existia no meu vocabulário ainda e eu tive que fazer força para segurar um sorriso bobo que começava a surgir.
Finalmente resolvi me aproximar. E quando você sorriu para mim naquela fantasia, eu não consegui deixar de sorrir de volta. Dei um oi com a mão e você respondeu. Quando cheguei no banco se levantou e ficamos nos olhando, meio sem saber o que fazer.
— Olha só… teve a mesma ideia que eu — você disse olhando para a minha roupa.
— É — eu disse rindo — Só que a sua é bem mais…
— Extravagante? Eu sei — você completou minha frase rindo.
— Também teve medo que eu não te reconhecesse?
— Sim — riu sem jeito — Esse… foi um dos motivos.
Nos sentamos em silêncio no banco de cimento. Às três da tarde eu conseguia ver bem melhor a tua fantasia. Com certeza deve ter ganhado o concurso, se tiver havido algum na festa onde foi. A máscara só deixava que eu visse do teu rosto os olhos castanhos e seus grossos lábios vermelhos, bem como parte da pele parda. Da testa para o nariz descia um estreito bico. O resto da fantasia era de um preto denso e coberto de penas, inclusive na capa que pendia de toda a extensão do braço dele.
— Eu queria te agradecer. Não achei que você fosse ver o bilhete — eu disse.
— Eu não acreditei que fosse para mim.
— Quantos sujeitos fantasiados de corvo devem ter por aí?
— Ficaria surpreso.
Rimos.
— Achei engraçado que me chamou de Corvo. Foi como me chamou no halloween.
— Porque é tudo o que eu sei de ti.
— Me faz parecer mais interessante do que eu sou.
— Cara… tu derrubou um sujeito que devia pesar o mesmo que nós dois juntos.
— Isso… foi só sorte.
— Podia ter ganho na loteria com essa sorte. Só impediu que levassem meu celular — eu disse e ri, mas você manteve um silêncio significativo olhando para frente, para o outro lado da praça.
Eu olhei para você, para o pouco que eu via de você, sua boca. Uma ideia absurda surgiu na minha cabeça, pra mim, naquele momento era só uma bobagem, mas meu coração acelerou nervoso e eu desviei o olhar.
Naquele horário o movimento da praça era alto, mas de forma alguma era agitado. A terceira idade era a única classe de pessoa que frequentava ali naquele horário, e eles eram lentos, silenciosos e andavam no máximo em duplas ou trios — o bastante para jogar damas, dominó e ainda ter um reserva — e essa calmaria fazia o silêncio entre a gente parecer muito profundo. Vez ou outra eu te olhava, e reparava que me olhava também; assim, vez ou outra, nossos olhares se chocavam, tímidos, e se desviavam depois de poucos segundos. Falávamos muito pouco e ficamos assim por um bom tempo. Aquela ideia que eu tive ao olhar sua boca, ela não voltou, mas eu não senti ela ir embora. Era como se ela tivesse me sujado. Meu coração desacelerou; achou um ritmo, mas que não era o normal dele.
O primeiro a ir embora nesse dia fui eu. A ideia de que aquele pensamento tinha passado pela minha mente, nossas bocas se tocando, eu segurando a tua mão, olhando o castanho intenso do teu olho como se pudesse nadar nele… tudo isso me perturbava naquele momento. E se agravava cada vez que nossos olhares se tocavam e esse toque se estendia a cada vez que isso acontecia.
Me levantei quase com um pulo, e você fez o mesmo um segundo depois, como se eu estivesse amarrado a você. Acho que percebeu o quanto eu estava perturbado, porque ia perguntar se eu estava bem, mas eu te interrompi.
— Tudo… é só que eu lembrei que tenho que fazer… uma coisa — eu disse e comecei a caminhar em direção à minha casa.
— A gente pode… — ouvi você começar a dizer e a frase morrer na metade.
— Se ver de novo? Sábado? — disse ainda me afastando de você.
— Fica bom pra ti?
— Sábado então!
Depois que eu já estava um tanto longe, te escuto dizer:
— No mesmo horário — viro pra trás e te vejo todo encolhido, como se estivesse arrependido do que disse.
— Combinado!
Tá bom, eu admito que não foi um grande primeiro encontro. Mas afinal, não era nem para ser um encontro. Hoje eu queria só ter aceitado aqueles pensamentos no dia. Ter aproveitado melhor a segunda vez que te vi. Tantos silêncios… ao menos eles estavam recheados com a sua companhia.
Como você sabe, apesar da minha insegurança e medo a gente se encontrou outras vezes. E cada vez que a gente se encontrava aquele pensamento em voltava à mente. Queria saber como era te beijar, e agora acho que talvez nunca descubra, mas ainda é um pensamento que me assombra. Não de uma forma ruim. É só que bastou eu saber o que eu queria para, de repente, essa coisa se tornar muito distante.
Ao menos eu entendi o que queria. E esse entendimento, saber o que eu era, apesar de todas as consequências disso que me perturbavam, tornava nossos encontros mais leves. Acho que estava ficando mais claro pra você também, mas nunca conversamos a respeito.
Mas conversamos sobre uma infinidade de outras coisas. Tudo o que acontecia na minha semana eu ficava ansioso pra te dizer, saber o que você achava, ou mesmo só te ouvir rindo dizendo que eu era maluco de agir do meu jeito.
Eu sempre me surpreendi com a facilidade que você tinha de se comunicar com os idosos daquela praça, mesmo eles te taxando de doido por andar fantasiado daquele jeito. Você só ria e dava uma desculpa esfarrapada para eles rirem também. Fazia amizade fácil com eles. Até jogamos damas algumas vezes, lembra? Você ganhava a partida ouvindo xingamentos do tempo do ronca e aí a gente voltava pro banco pra conversar mais.
Ainda estou pensando em formas de me aproximar de você — Miguel — mesmo sem a fantasia de Corvo. Se der certo e voltarmos a nos ver, queria só que me respondesse uma coisa. Você não apareceu mais pra me ver porquê eu tentei pegar na tua mão? Me senti tão idiota. Por um segundo foi incrível, e você até segurou a minha de volta. Mas aí você puxou ela, rindo meio estranho mas nada mudou depois disso. A conversa continuou normal e consegui me acalmar. Cheguei até bem feliz em casa. Tinha certeza que era um passo gigante. Me convenci com muita luta de que tinha feito o certo. Até você não aparecer nunca mais.
Comments (0)
See all