Sei que você não apareceu mais porque voltei sábado depois de sábado para aquele mesmo banco, onde a gente sentava sempre. Só para encontrar ele vazio. No começo ainda te esperava. Via os idosos com os quais você tinha tanta facilidade para conversar passando. Perguntando por você, se não viria mais jogar damas com eles. Eu não sabia.
Estava quase desistindo de ir à praça, mas não é fácil. Agora eu só apareço lá, olho ao redor esperando te ver e, quando não te vejo, vou embora. Mas apesar de você não aparecer, não quer dizer que essas idas à praça deixaram de mudar a minha vida.
No último sábado fui fazer o meu ritual. Como sempre não te vi, mas vi uma figura que a princípio achei ser um fantasma. Me aproximei sem acreditar e quando cheguei no banco vi que o homem grisalho também compartilhava o sentimento.
— Pai?
Ele levantou e me abraçou forte, mas não consegui retribuir à altura. Meus braços deram a volta nele, mas de forma quase automática. Na minha cabeça eu só conseguia pensar o que ele tava fazendo ali. Tinha tanta coisa pra dizer, tantos palavrões que queria falar, queria afastar ele e ao mesmo tempo queria apertar ainda mais naquele abraço.
Me afastou segurando em meus ombros e os olhos brilhando de lágrimas enquanto olhava pra mim. As lágrimas dele presas nas pálpebras e as minhas correndo pelo meu rosto que estava paralisado e sem expressão.
Eu não via o meu pai tinha mais de três meses e a última vez que eu vi ele não foi das melhores. Era madrugada, eu no meu quarto acordei com uma movimentação estranha na casa. Meus pais andando de um lado para o outro e falando muito alto.
Levantei da cama normalmente, mas quando abri a porta um receio tomou conta de mim. Não consegui abrir mais que uma fresta para ver meu pai acuado, tentando fugir do olhar da minha mãe enquanto caminhava de um lado para o outro e minha mãe o seguindo, com a voz se elevando cada vez mais.
— Então é isso!? Vai começar a dar a bunda agora? — ela dizia, em voz alta e quase soletrando todas as palavras, para que fossem bem entendidas.
Meu pai só dava as costas e tentava fugir para outro cômodo, mas minha mãe vez ou outra o alcançava e o virava para que escutasse as ofensas de frente.
— Não é isso, Isabel…
— Então é o que!? Você fazer isso comigo… virar viado… é uma coisa. Agora fazer isso com o seu filho — o tom dela baixou e sussurrou as últimas palavras, como se a menção a mim fizesse ela lembrar da minha presença na casa.
Até aquele momento eu era um fantasma. Apenas assistia a tudo escondido. Via eles aparecendo e sumindo da minha visão quando saíam e entravam em algum cômodo. Mas sempre voltavam a surgir na minha frente. Quando ela falou sobre mim eu voltei a existir. Não só a existir, mas ganhei peso, e um peso que eu não carregava. Eram eles dois, e naquele momento ela largava metade do meu peso para que meu pai o sentisse sozinho.
— Eu não virei nada. Tenta só me escutar.
— Chega disso! Vai embora — minha mãe disse, dessa vez ela mesma virando as costas pro meu pai. Ele soluçou algumas sílabas, como se fosse começar a dizer algo, mas ela simplesmente saiu dali e foi para o quarto, trancando a porta.
Ficamos eu e meu pai na madrugada. Eu o via de costas, em pé no meio da sala, ele não sabia disso. Só se virou na direçao do meu quarto uma única vez e eu me afastei da porta, com medo de que ele tivesse me visto. Depois disso apenas escutei a porta da frente abrindo e fechando. Foi embora deixando tudo que era seu para trás.
Três meses.
E agora ele estava aqui. Me olhando. A única reação que me pareceu digna naquele momento foi avançar para frente e voltar a abraçar ele com tudo o que eu tinha.
Finalmente eu consegui ouvir o lado dele da história. Já sabia que Bento era um amigo de infância dele. Me falou sobre a adolescência no qual ficaram muito próximos e até mesmo se beijaram. Juraram entre eles que aquilo não significava nada. Era só um beijo afinal. Um beijo que se repetiu, e repetiu e repetiu até que foi visto pelo pai de Bento.
Os dois acabaram ficando confortáveis demais com a sua intimidade e pararam de tomar muitas precauções. Estavam na casa de Bento, na sala, enquanto o pai dele tinha acabado de sair para trabalhar. Talvez se tivessem reparado na carteira de couro ao lado da TV, teriam imaginado que o homem voltaria. Não repararam. O pai só abriu a porta destrancada de uma vez e encontrou os dois se beijando na sala.
Meu pai e Bento levaram uma surra ali mesmo. Quando foi pra casa arrastado pelo braço, o pai de Bento contou ao meu avô o que tinha visto em flagrante. Mais uma surra.
Até ali meu pai tinha compreendido que o que os dois haviam feito era errado. Errado o bastante para valer duas surras colossais. Bento e meu pai nunca mais se viram desde então e essa história foi enterrada pelas famílias para evitar a desgraça de ter um filho que cometeu uma imoralidade como essa vivendo sob o seu teto.
E enquanto meu pai ia narrando a história dele, eu sentia o medo que eu tinha em mim se agitando em solidariedade ao medo que ele sentiu lá no passado.
Foi assim que ele decidiu que tinha deixado de ser gay e se casou com Isabel, minha mãe. Pelo que ele disse, algo quase arranjado. Sobrinha de um presbítero amigo do meu avô. Ao menos os dois se deram bem, a princípio. Acontece que meu pai nunca deixou de pensar em Bento. Isso se agravou quando, seis meses atrás, os dois se reencontraram pela internet e, pasme, moravam na mesma cidade.
E foi nesse momento que ele pediu desculpas por ter traído minha mãe. E quando foi contar tudo a ela… aconteceu o que eu já disse.
Quando terminou de me contar isso, meu pai parecia exausto. Aquelas lágrimas que estavam presas saíram arrombando tudo e correndo como loucas pelo rosto dele. Coloquei uma mão sobre o ombro dele e ele olhou pra mim com um sorriso triste.
— Senti saudades.
O sorriso triste virou uma tímida risada e a tristeza foi espantada com uma passada do antebraço sobre os olhos. Ele me passou seu novo número de telefone e me contou onde estava morando. Não muito longe dali. Na cidade vizinha. Mas estava planejando se mudar com Bento para outro estado, Natal, daqui uns meses.
Conversamos sobre nossas vidas, eu não falei de você, apesar de saber que ele talvez fosse a pessoa que mais fosse me entender naquele momento. Mas falei da mãe. Dos ataques dela e do ódio que ela ainda sentia dele.
— Me desculpa ter te deixado pra lidar com isso sozinho…
— Tudo bem. Eu faria o mesmo — eu disse, pensando que, se pudesse fugir com você, fugiria.
— Ei. Mas se quiser vir com a gente, eu e o Bento, pra Natal, você tá convidado.
— Eu vou… pensar.
Claro que a ideia de me afastar do fanatismo da minha mãe era muito sedutora. Mas muitas coisas ainda me seguravam. Ela própria, pois não queria abandonar ela dessa forma, meu ressentimento de meu pai, pois apesar de entender o seu lado isso não apagava o fato de que ele desapareceu e, o maior de todos, você. Se conseguisse ter você de novo perto de mim, não podia só fugir assim para outro estado. Realmente era algo a se pensar, mas agora que tinha o número dele me sentia bem mais próximo.
Saímos dali nos despedindo. No caminho pra casa eu pensei se nós dois íamos ter um final como aquele.
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