Talvez essa seja a última carta que eu te escreva.
Nossa, parece que faz séculos desde a última vez que eu te escrevi.
Posso dizer que muita coisa mudou na minha vida desde o fatídico acontecimento. Eu não queria mostrar minha cara na igreja de jeito nenhum, mas com minha mãe não tinha muita discussão. Logo no domingo seguinte ao desastre, eu consegui me livrar da Escola Bíblica Dominical com a desculpa de uma dor de cabeça infernal. À noite, porém, eu não tive muito o que fazer.
Cheguei na igreja e Miguel e cia. estavam sentados nos bancos do fundo da igreja. Quando entrei consegui reparar que toda a fileira de adolescente virou os olhares para mim. Só olhei por um segundo e virei a cara, segui andado pelo corredor central de cabeça erguida, mas o caminho todo eu sentia o formigamento dos olhares deles na minha nuca. Mesmo no meio do burburinho e fofocas pré-culto, eu conseguia distinguir a voz de Miguel — tão diferente da tua, que merda! — e as risadas que dava. Não conseguia distinguir uma palavra que fosse, mesmo assim tinha a plena certeza de qual era o assunto.
Na minha cabeça eu tentava me acalmar. Reduzir os danos. Miguel era uma faísca, os adolescentes eram uma chama, mas a igreja seria um incêndio faminto. Eu me dizia como um mantra que o fogo seria abafado depois de uma temporada de bullying e que tudo voltaria ao normal.
O culto se seguiu da maneira usual. Por algum motivo os burburinhos que rompiam com a gritaria do pastor pareciam me incomodar. Tinha uma vontade de olhar para trás, mas não tinha coragem. Prestava atenção, tentava distinguir palavras, mas apenas percebia vozes diferentes se juntando ao murmúrio. Foi quando em um momento de silêncio repentino do pastor eu ouvi:
— Será que ele é mesmo?
Em uma voz que eu nunca havia escutado na vida. Alguns dias e aquilo já tinha saído do círculo de pessoas que eu conhecia.
— Mãe, tô passando mal…
— Vai no banheiro?
— Vou para casa!
Eu devia estar realmente pálido de medo e nervosismo, pois minha mãe sequer questionou. Pode também ser por eu ter levantado sem dar chance para que ela retrucasse de qualquer forma.
O formigamento dos olhares na minha nuca piorou e se manteve até que eu saísse da igreja. Ombros encolhidos, mãos nos bolsos e uma vontade de gritar até rasgar minha garganta. Queria bater em cada um daquele banco dos fundos até que não lembrassem nem o próprio nome, muito menos que eu sou gay.
Fui para casa e mesmo estando sozinho tranquei a porta do quarto. O que se revelou uma decisão muito acertada.
Ouvi minha mãe chegando em casa, a porta abrindo, a chave caindo sobre a mesa da cozinha, um copo de água se enchendo. Tive medo porque achei que ela viria me encher de perguntas sobre o motivo de eu ter saído da igreja. Quando ela ficou só perambulando pela casa, falando baixo sozinha, e nem sequer bateu na porta do meu quarto, eu comecei a me preocupar ainda mais.
Naquela noite ela foi dormir sem falar nada comigo. E eu só tive coragem de sair do quarto depois que tive certeza de que ela já estava dormindo. A minha boca seca me levou ao bebedouro, a minha barriga roncando ao armário e eu logo estava voltando para o quarto com um tablete de cream cracker e o pote de margarina. Quando virei em direção ao quarto, cheguei a soltar o meu lanche da noite no chão. Minha mãe estava em frente a porta do do meu quarto.
— M-mãe? — eu falei, juntando as coisas que tinha derrubado.
Ela veio na minha direção. Eu ainda estava com as roupas da igreja, uma camiseta com uma camisa por cima e calça jeans. Minha mãe se aproximou e não consegui me afastar. Queria parecer o mais natural possível. Ela parou na minha frente e começou a ajeitar minha camisa.
— Hoje me contaram uma coisa muito preocupante na igreja — disse — A irmã Cláudia falou que o Miguel (sabe o Miguel?), tá dizendo por aí que você é gay e tentou agarrar ele.
“Agarrar ele”. Lembrei dos meus dedos se fechando em volta do braço dele. Achei que teria medo com tudo isso, mas tudo o que eu senti foi raiva. Uma raiva tão grande que acho que nunca tinha sentido antes.
— Eu disse que isso não era possível, rindo muito desse absurdo, porque meu filho é macho.
— Claro que…
— Aí a irmã Donizete perguntou como eu sabia. Já que meu próprio marido tinha me abandonado — foi quando ela parou de arrumar minha camisa e simplesmente a agarrou.
— A senhora não tá acreditando em fofoca, não é? — eu falei. Começava a ficar nervoso com o caminho que essa conversa estava tomando. Ficava olhando para a porta do meu quarto logo atrás e pensando o quanto eu só queria estar lá, na segurança dele. Arranquei minha camisa das mãos dela — Eu vou dormir, porque amanhã tem aula.
Quando caminhava, senti ela puxando a barra da minha camisa, e senti meu corpo gelar.
— Depois disso eu fui falar com o Miguel em pessoa. Tava lá, com várias menininhas ao redor dele, todas praticamente se oferecendo pra ele. Chamei ele num canto e perguntei. Falei como estou falando contigo agora. Perguntei se você tinha agarrado ele — foi quando a voz cadenciada dela quebrou e se tornou um grito áspero — e ele disse que você só não beijou ele porque ele te empurrou!
Senti algo dentro de mim quebrar nessa hora. Puxei os braços das mangas da camisa e me livrei dela, deixando ela pendurada na mão da minha mãe. Olhei pra ela, tentando controlar a raiva que sentia, ao mesmo tempo tentando lidar com a tristeza de ter essa conversa com ela.
— É tudo mentira, mãe!
— Acho que não.
— A senhora tem que…
— Ele não parecia estar mentindo.
— Pode me…?
— Ao contrário! Mandou eu ter cuidado com você. Que eu devia te endireitar.
Acho que ali eu cheguei no meu limite. Não tinha mais você e eu achava que não existiam forças em mim para aquilo, mas aparentemente nossas fundações continuam existindo mesmo que debaixo da terra.
— Mas e se eu for? — ela tentou me interromper de novo, mas eu só gritei mais alto — Hein? É problema teu? Daquelas fofoqueiras da igreja? Do mentiroso, arrombado e filho da puta do Miguel?
— Vai pro inferno…
— Inferno seria dividir qualquer céu com vocês.
Fui pro quarto e deixei ela gritando nas minhas costas. Admito que liberei boa parte da minha raiva ali. Bati a porta do meu quarto, tranquei ela e simplesmente derreti, escorregando até o chão com as costas na madeira. Chorei abraçando os joelhos e ouvindo a minha mãe aos berros do outro lado da porta, mandando eu abrir, dizendo que a culpa era toda do meu pai e que ia me salvar das garras do demônio. Eu soluçava enquanto parecia que tudo estava acabado, mas aí eu lembrei de alguém que ia me entender. Uma das fundações.
Mandei uma mensagem para o meu pai.
Então essa carta aqui é quase uma despedida.
Resolvi por aceitar a proposta do meu pai, depois dessa noite. Tudo parecia que ia piorar, e o que já era insuportável se tornou insustentável. Eu vou me mudar pra morar com ele e meu padrasto. Assim, eu acho que a gente não vai mais se ver mesmo. Tenho medo, muito medo, de te esquecer. Achando que você era o Miguel, não cuidei das suas lembranças, e algumas dela hoje em dia são só um borrão. Quase como a lembrança de um sonho. Mesmo assim, se essas cartas chegarem a você, saiba que você foi muito importante para eu saber quem eu sou e quem eu quero ser.
Eu viajo no dia 4 de Setembro. Depois disso eu posso ter certeza que nunca mais vou te ver.
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