Essa carta não é pro Corvo, e sim para mim. Acho que agora posso ir morar com meu pai sem os pesos que eu tinha, sem a culpa de abandonar minha mãe e sem a tristeza de abandonar o Corvo.
Como várias vezes nessas cartas que eu escrevi, isso teve dois motivos.
O primeiro foi encontrar um porto muito seguro no meu pai. Depois do que aconteceu com minha mãe, eu vivia quase me escondendo dentro da minha própria casa. Meu pai então foi até lá, muito mais seguro, confiante, buscou minhas coisas, me defendeu e saímos pela porta da frente deixando minha mãe a gritar versículos condenando a nós dois.
Quando chegamos no apartamento que ele dividia com o noivo dele, fui muito bem recebido. Isso não anulou o impacto da briga com minha mãe, mas certamente colocou um band-aid sobre a ferida.
O segundo motivo foi o Corvo. Ainda escrevendo isso, já a caminho de Natal, eu tô sorrindo igual um idiota. Quero parar de sorrir pra evitar que minhas lágrimas escorram.
Meu pai ainda passou algumas semanas na minha antiga cidade antes de se mudar de vez. Aproveitei esse tempo para me despedir dos amigos de escola, explicar algumas coisas e me abrir de verdade para alguns dos mais íntimos. Todos me abraçaram muito e, com certeza, vou sentir muita saudades deles todos. Mas outras coisas também precisavam de resolução. Como não podia mais encontrar o Corvo e minha única pista se mostrou falsa como um diamante de vidro, resolvi voltar à ideia inicial, quando eu também não podia encontrar e não tinha pista alguma sobre quem ele era. Fui deixar as minhas cartas, destinadas a ele, na praça. No mesmo lugar que deixei o primeiro bilhete, todas envelopadas e amarradas com um elástico.
A minha última semana na antiga cidade foi na companhia de amigos o tempo inteiro, passeando com meu pai, ou mesmo sozinho, dando caminhadas para refletir um pouco sobre as loucuras dos caminhos que a vida toma.
Quando chegou o sábado, no entanto, eu tive que fazer uma última vez. Peguei um ônibus e fui em direção à praça. Demorei a acreditar no que vi quando cheguei. Uma fantasia preta de corvo, em um banco de pedra, olhava para o nada enquanto apoiava os cotovelos no joelho. Passei um tempo para assimilar aquilo e o vi suspirar cinco ou seis vezes nesse curto momento. Imagino que estivesse nervoso.
Ri com o dejavu.
— Corvo? — eu disse, me aproximando.
— Oi! — ele levantou e veio me abraçar rápido. Como eu consegui confundir aquele baixote contigo?
Olhei para o banco e vi as minhas cartas. Ainda estavam com o elástico.
— Você leu?
— Claro. Quer sentar?
Muitas das lembranças que eu tenho do Corvo estão borradas por falta de cuidado meu. Esse dia eu quero lembrar para sempre. Revivo dia a dia o vento morno, as sombras esticadas e o barulho das folhas sendo sacudidas pela brisa e, acima de tudo isso, ele ali do meu lado. Finalmente reconhecível de verdade.
— É… eu li as cartas. Você escreve bem.
Eu ri. Discordei, como sempre, e ele me forçou a engolir o elogio, como sempre. Eu terminei essa risada sentindo como se ainda fosse maio. Como se nada tivesse mudado, apesar de tudo estar mudando.
— Eu precisava me despedir de você e… pedir desculpas por sumir.
— Foi por que eu…
— Não! Digo, sim. Mas… é complicado. Eu… gosto… de você. Daquele jeito. Já pensei em pegar na sua mão tantas vezes nesses meses que a gente se encontrou. Mas…
— Tem medo?
— Eu tô de fantasia, né? Queria ter a tua coragem, de vir aqui me ver com a cara limpa. Você é tão… incrível. E eu sou tão egoísta. Eu te conheço e não deixo você me conhecer.
— Mas eu te conheço. A parte mais importante pelo menos.
Eu vi ele ficar todo vermelho por baixo da fantasia e tentar conter um sorrisinho.
Depois disso ficamos na praça e foi como um de nossos encontros normais. Conversamos a respeito das cartas, ele me perguntou sobre tudo o que aconteceu, riu de mim por confundir ele, eu ri também, e foi tudo como eu me lembrava.
Não. Eu não beijei ele. Não peguei na mão dele. Sim. Se eu pudesse teria feito tudo isso ali mesmo na praça, pois estava com abstinência do Corvo. Mas acabou que foi simplesmente um encontro como todos os outros que tivemos. Apenas mais um para a minha lista, mas eu não podia desejar nada melhor do que mais um dos nossos encontros. Mais um para a lista, mais um para ser lembrado.
Ao final nos despedimos. Não soube quem ele era. Se ele me conhecia de algum lugar ou se ele só veio a me conhecer no halloween. Mas nos despedimos, nos abraçamos e seguimos caminhos opostos. Um fim.
Finalmente poderia parar de ir para aquela praça.
FIM
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