O deserto escaldante foi invadido pelo garoto, que era sufocado pelo calor do lugar. Andava pelas dunas mal conseguindo olhar para frente, com as areias vindo ao seu rosto, parava para reparar em volta, mas encontrou apenas mais areia, e mais calor.
“Minha água acabou... se eu não encontrar um lugar para ficar logo…”, refletiu já totalmente desgastado.
As algumas pegadas no solo amarronzado, apontavam para o horizonte, Suzaki andava naquela direção, como se seu próximo destino fosse o próprio sol.
“Preciso continuar... eu preciso... voltar para casa”, sussurrava quase desmaiando.
Seu delírio tomava mais espaço em sua consciência, no momento em que avistou mais ao oeste algo como pequenas construções humanas. O alívio era acompanhado de um desespero, que o fez correr, para finalmente matar sua imensa sede, porém acabou caindo ao chão à beira da inconsciência.
Por trás um homem se aproximava, com vestes pesadas por todo corpo. Soltou de seu camelo para socorrer o menino.
— Ei jovem, está tudo bem agora — molhou a boca e a face do garoto que contemplou o rosto moreno junto aos olhos amarelos de seu salvador, pouco antes de desacordar por completo.
Chegavam a uma espécie de periferia dos domínios do povo Kiiro. Na medida que recuperava sua consciência, o garoto resgatado conseguia ouvir vozes, que mais pareciam sussurros.
Passado o breu do desmaio, os sentidos retornaram a estimular Suzaki. Seu olho se abria, e ao invés de encarar a areia, estava diante de um teto. Um som, porém, vinha do próprio quarto, era fraco, uma melodia desorganizada, um som familiar nas mãos de um principiante.
“Onde estou?”, refletia ao tempo que virava a cabeça, avistando uma criança soprando sua ocarina.
Ele saltou da cama, lançou-se para cima do menino, tapou sua boca, tomando a ocarina de volta à força. Guardou-a no bolso da sua roupa, para segurar sua vítima com os dois braços e analisar o seu arredor.
“Se o menino está com a ocarina… onde está minha arma!?”, notou sentindo falta do peso em suas costas.
Tentava discernir sobre a situação que se encontrava, quando sentiu lágrimas descendo pelo rosto da criança refém, quando um casal entrou no quarto e se deparou com a cena.
— Minha nossa, por favor, não machuque nosso filho! — implorou a mãe.
— Seu filho? — soltou o menino — Não, eu... Não planejava machucá-lo.
A criança correu até a mãe que o segurou para acalmá-lo.
— Que droga você tava pensando?! Quantos anos têm? — perguntou o homem que o resgatou.
— Eu não quero confusão, mas também não posso dar satisfações. Só me dê minhas coisas, e vou sair sem causar transtornos.
— Estão nos fundos, aquela sua arma é muito pesada para alguém da sua idade. Como consegue carregar aquilo e a outra bolsa?
— Espera, como eu vim parar aqui?
— Ora, era só o que me faltava. Rapaz fomos nós que te trouxemos. Você desmaiou no deserto, perto daqui.
Suzaki virou de costas para a janela da saída e se deparou com uma vila modesta, à beira de um rio raso. A geografia local que estudou antes não estava errada. O príncipe havia atingido seu destino.
— Eu não precisava, mas obrigado.
— Para onde você vai?
Suzaki cruzou o quarto até a saída nos fundos da casa, passando pela família.
— Está fraco, parece estar numa viagem longa. A gente só quer ajudar, rapaz, não se sinta envergonhado pelo o que aconteceu. — insistia o pai da criança.
— Não precisa se dispor. — Suzaki deu de ombros, e encontrou sua lâmina junto aos outros pertences do lado de fora da casa.
— Está confundindo as coisas. Estamos preocupados com alguém da sua idade fazendo viagens sozinho. Você estava para morrer no deserto.
Ignorava as súplicas do cidadão, apenas guardando sua jaqueta, e posicionando sua arma no devido lugar, saindo do local.
— Espere aí! — segurou o garoto pelo ombro, estendendo um cantil — Tome leve água pelo menos.
— Eu vou usar, mas não quero ficar devendo nada.
— Se precisar de um lugar para ficar, pode voltar. Vamos te receber, rapaz.
Com apenas um aceno da cabeça, Suzaki retomava sua viagem a pé seguindo pela margem do rio. No entanto, não deixou de notar, na duna acima da casa do homem que o salvou, uma lápide solitária contra a luz do sol no horizonte.
Pouco tempo depois, encontrou condução para a capital. Desembarcou no muro ao sudeste. O jovem antes de revelar-se, tomou uma lona jogada abaixo do banco em que se sentava e cobriu-se com ela para esconder sua espada nas costas e todas suas vestes, além de subir o tecido até a cabeça, formando um capuz.
A recepção em solo foi feita por guardas de armadura e lanças, que cobraram documentos do cocheiro para liberá-lo junto com os clientes.
— Sem o papel de permissão de viagem noturna, não podemos receber forasteiros no território da família real.
— Minhas desculpas, achei que as filhas do patriarca Osíris estivessem viajando e presumi que na ausência da família, as exigências legais estavam suspensas.
— Como guardas da dinastia Kiiro e protetores da população. Nós, como Kishi, não temos compromisso em revelar onde nossos protegidos passam o dia ou noite. Portanto, pode ir entregando os papéis agora!
— Aqui, aqui está... — o condutor tirou o papel do amassado do bolso e o entregou.
— Essa é sua última viagem com esse passaporte. Vai ter que renovar se quiser sair da cidade na estação mais próxima.
— O quê? Mas a minha família…
Suzaki observava a transação toda, atentando mais para os arqueiros no topo do muro. Um dos atiradores olhou para trás, como se estivesse falando com outros, apontando para a cabeça destacando o capuz.
Embora todos da carruagem tenham sido liberados para entrar na cidade, o condutor seguiu outro rumo e correu para a estação de Kishis mais próxima, entrou numa fila, que dobrava a rua principal e esperou ali.
A primeira atitude do príncipe foi sair das ruas, entrando num estabelecimento comercial. Algo nas últimas prateleiras chamava sua atenção: sacos de sementes com a etiqueta “Aka” presa neles com um grampo.
Agachou e colocou um deles nos ombros e o depositou no balcão do vendedor. O som o assustou, pois estava de costas juntando seus pertences numa bolsa.
— Quanto custa transportar isso para o oeste? — perguntou Suzaki, colocando a mão dentro da túnica de lona para pegar o saco de dinheiro.
— A essa hora? Já é tarde. Não pode deixar para amanhã, amigo? — o vendedor vira para encarar seu possível cliente — Eu já estava quase fechando.
— E se te pagasse para levar isso a uma transportadora e eles entregarem para mim, ainda sairia caro?
— Falando desse jeito você parece com muita pressa. Você não é daqui, é? — notou o saco de sementes reconhecendo sua origem.
— Sou um viajante. Quero conhecer lugares novos.
— Já parou para pensar que esses lugares novos não querem te conhecer? Vocês vermelhos são todos iguais: fazem o que querem, tomam o que querem e não gostam de responder por nada.
— E se eu te responder que eu não sou vermelho?
— Como explica essas sementes?
— Eu disse que queria que elas fossem transportadas para o interior. Já disse que sou um viajante, não moro por lá.
O balconista resmungava, mas puxou a gaveta do seu lado da bancada, pegando papel e pena com tinta.
— Tá legal, espertinho, onde quer que eu entregue isso aqui? — disse colocando o papel ao lado do saco.
— Me encontre no portão sudeste daqui a quarenta minutos — derramou cinco moedas de prata das suas mãos em cima do balcão — Te pago o resto quando nos encontrarmos.
— O resto? Mas isso aqui já cobre tudo — o homem contava o dinheiro.
— Terei uma outra viagem urgente, então preciso que tome a outra parte para pagar o transporte você mesmo — disse Suzaki, abrindo a porta e saindo.
Ao retornar para as ruas, percebeu um sentimento parecido com o do sujeito que o atendeu. Ouviu pelo caminho alguns chamando os Senshis do reino Aka de ladrões. Um ou outro cartaz pedindo uma atitude do patriarca Osíris.
“Se isso incomodasse a dinastia Kiiro, os Kishis já teriam reprimido esses pedidos, rasgado os cartazes. Preciso descobrir de onde surgiu isso. A capital esconde os segredos políticos da família num lugar chamado o Índice, uma torre guarnecida pelos Kishis no coração da cidade.”
A caminhada de Suzaki teve o seu fim no pé da torre. Ele circundava a construção aos poucos e notou as sacadas vazias. Sem arqueiros, mais desprotegida que as muralhas que havia passado mais cedo.
“Guardas costumam trocar de turno. O cair da noite foi a melhor oportunidade para isso. Só preciso ser paciente”, pensou Suzaki observando as movimentações.
Após observar por mais alguns minutos, reparou num Kiishi saindo de um beco próximo, com uma chave pendurada na cintura. Ele encontrou um dos homens guardando a porta, trocando de posições, além de entregá-lo a chave.
A oportunidade estava pronta. Ele correu na frente, reclinou sobre as paredes do beco e se sentou no chão. Quando o homem passou por ele, o jovem apoiou seu corpo nele.
— Me dá um dinheiro, preciso comer — pressionava-o contra a parede do beco.
— Sai para lá! Ficou maluco moleque? — o guarda protestou desferindo uma bofetada no encapuzado.
O garoto caia para trás, fingindo nocaute, mas suas mãos deslizaram rapidamente para baixo da lona que cobria seu corpo, escondendo a chave em sua posse.
Após caminhar um pouco, o agressor foi surpreendido por Suzaki, que puxou sua lâmina contra o pescoço do guarda, sufocando-o por trás, até desacordar.
“Era o único jeito”, refletiu arrastando o homem para a escuridão e o escondeu perto do lixo.
O Heishi encontrava a passagem de onde vinha as trocas de turno: um túnel subterrâneo. Sem perder tempo, o príncipe entrou por ele.
O túnel era quieto, mas com indicadores de direção, mapas desenhados nas paredes. Suzaki podia ver que havia uma saída de volta para a torre. Uma conexão entre os dois complexos.
A biblioteca que escondia o Índice estava próxima, mas protegida por guardas. Entretanto, uma conversa chegou aos ouvidos do príncipe, vinda do corredor.
— Ei, não era para o Hotashi ter chegado?
— Já é o turno dele, né? — o Kishi se questionou em voz alta.
— A princesa Yasukasa está aqui, imbecil — sussurrou apontando para cima — Fala mais baixo. Não tá ouvindo lá de cima a carruagem chegando?!
— Eu vou lá, então, se for para evitar problema — seguiu para procurar seu parceiro.
Suzaki, que escutava a conversa no corredor ao lado, testemunhou os dois se dividirem pela busca. O único guarda exposto era uma presa fácil.
Esperou os passos do que se separou se tornarem surdos aos seus ouvidos e nocauteou com um chute na cabeça. Sua pequena luta encerrava com a abertura da câmara ao seu lado, revelando a sala com prateleiras intermináveis de papéise baús. O príncipe havia se infiltrado no índice.
Acima da sua busca, os guardas recebiam na torre, uma visitante. Ela andava com pressa pela recepção, acompanhada por um Kishi.
— Alteza, por favor, já está tarde. Seu pai vai chegar amanhã, não pode esperar por ele? — o guarda tentava acompanhar sua velocidade.
— Foi ele que me pediu para fazer isso antes que chegasse. Temos pressa! — disse Yasukasa em alto e bom som.
— Tenho certeza de que o esquadrão especial estará bem treinado para fazer o…
— Estará bem treinado quando o patriarca disser que estará! E até lá, vou cumprir com suas ordens. Agora vamos! — entrou numa sala, com uma plataforma suspensa — Me desça até o subterrâneo. Os documentos que preciso estão no Índice.
Seu acompanhante então pediu ajuda a outro Kishi que se aproximou. Juntos, eles manipularam as cordas ao lado para descer a princesa até seu destino. Suzaki, por sua vez, encontrará o que procurava na escrivaninha mais ao fundo da câmara.
Relatórios de treinos intensos no deserto, diziam estar se preparando para uma época importante. Outros apontavam para viagens de reconhecimento a um lugar fronteiriço, a Cidadela Restrita, entre o território abandonado dos Shiro e o reino Aka.
Suzaki escutava passos no corredor, quando olhou para alguém na porta da câmara.
— Quem está aí? — uma voz estridente perguntava.
— A que devo essa visita? — respondeu o príncipe.
— Estranho — reparava nas prateleiras mexidas — Não me lembro de ter pedido que viessem aqui por mim.
— Recebi uma ordem especial — se afastou disfarçando — Já estou me retirando.
— Faz bem — disse Yasukasa abrindo passagem para o encapuzado passar. No último instante, colocou a mão no ombro do menino — o patriarca pediu o mapa para ajudar na viagem à leste, não é?
— S-Sim
— Interessante, que eu saiba a viagem era para o oeste. Aliás, esqueceu que sou sua alteza? — Sacou sua espada da cintura — Se não vai se ajoelhar, ao menos me diga quem é você?
A mão de Suzaki alcançava dentro da sua capa, puxando sua lâmina das costas. O príncipe girava para um golpe, mas foi defendido por sua adversária, que bateu metal com metal.
Arte de Yasukasa Kiiro:
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