O desafio da vez foi inspirado no livro Oneirofobia da Nanda Lazulli! Está disponível no Ao3 e no Wattpad. Deem o devido amor ao André lá nas suas origens!
1, junho de 2024
17: “Pelo amor de Deus, que tipos de sonhos você tem?!”
Tenho o costume de não achar o pesadelo dos outros, de fato, um pesadelo. Primeiro, porque os pesadelos são raros (cientificamente falando), a não ser pela parassonia – o transtorno dos pesadelos –, segundo, o que as pessoas consideram pesadelos são só sonhos ruins e, ao meu ver, bobos.
Eu acredito que ser uma criança ansiosa impactou a forma como vejo as coisas, para além de ter começado a consumir um conteúdo demasiado… horrível para a minha idade na época. O que seria um pesadelo para amigos ou até meu namorado é apenas um sonho esquisito que facilmente se transformaria num desenho digno de Junji Ito nas minhas mãos; só uma vez ou outra um sonho me agoniza: perder os dentes, não conseguir correr.
Ainda que sejam desconfortáveis, já tive piores, muito piores, e meu namorado tenta me convencer de que eu não aturaria um segundo nos pesadelos dele.
― O nome do demônio é Bob. ― Insisti com um sorrisinho debochado.
― O ponto não é esse. ― André resmungou. ― É como ele é.
― Olha…
― Ícaro. ― Ele me interrompeu, as sobrancelhas grossas franzidas. André era (e ainda é) uma pessoa muito séria e rabugenta, mas eu não o via muito daquela maneira, exceto quando ele usava meu nome. ― Eu não quero que você tenha uma experiência com ele, mas discordar de mim só porque você se acha invencível não vai nos levar a lugar algum, só a uma discussão imbecil.
Não respondi. É, André tinha razão.
Naquela noite, como sempre acontecia, André se recusou a dormir até que apagou sem nem perceber. Por acaso, eu estava concentrado num projeto da faculdade e não dormi até duas da manhã, quando me obriguei a parar, ainda que meu foco pudesse alimentar mais uma hora de trabalho. Dormi assim que coloquei a cabeça no travesseiro.
O sonho mais estranho que tive envolvia minha família sendo arrastada para um ritual satânico, mortos na minha frente, enquanto eu era incapaz de fazer algo (estava amarrado numa árvore, queimando de baixo para cima); por isso, estar numa sala de espera com grama falsa e paredes pintadas de azul foi muito mais confortável do que deveria ser. Quando virei para procurar uma saída, a porta abriu, e dela saiu um homem (uh…) que me lembrava Persona, um dos alter egos que criei quando era mais novo.
Ele era careca, aparentemente; tinha um chapeuzinho vermelho. Os olhos eram dourados, espiralados, e essas espirais pareciam afundar e afundar e afundar e nunca chegar ao fim. Vestia um jaleco curto demais para o corpo esguio, era tão alto que me dava a impressão que a coluna quebraria ao meio a qualquer momento.
A Coisa sorriu com dentes muito amarelos e pontudos.
― Eu mal podia esperar para te ver! ― A voz era macia, ainda que alta demais. ― André pensa muito em você, Ícaro.
Pisquei.
― Bob?
― Oh, que graça, você sabe meu nome! ― Bob enfiou a mão ossuda no bolso do jaleco e, de lá, tirou uma prancheta. Franziu as sobrancelhas, ainda sorrindo, até que o sorriso se alargou tanto que tive a impressão de ouvir a pele rasgando. Agora que me lembro, um fio de saliva escorria pelo queixo dele. ― Interessante.
― É, André costuma dizer que sou interessante.
Bob gargalhou – pelo menos, eu acho que aquilo era uma gargalhada.
― Ele é interessante. É que, oh, isso aqui… ― Ele colocou a mão sobre o peito, onde talvez ficasse o coração. Virou a prancheta para mim; nela, em rabiscos vermelhos, estava escrito MORRER. ― É muito legal!
― Morrer é legal?
― Você quer descobrir?
Vou poupar você de toda a desgraça que se passou depois daí; André documenta sonhos melhor que eu. Ele tem uma espécie de diário para isso.
Quando acordei, parecia ter sido pisoteado. Meu corpo doía, eu tremia e suava – de frio, calor, medo, e tinha a impressão que se demorasse mais um minuto para ir ao banheiro, ia me mijar todo.
André me puxou pelo quadril, mas se curvou em cima de mim. Estava bem pertinho. Os cabelos pretos caíram no meu rosto; tinha o cenho franzido e os olhos bastante abertos, rodeados de olheiras roxas. As bochechas estavam rosadas, provavelmente por calor, e a testa estava úmida de suor.
Ele tirou uns cachos soltos dos meus olhos.
― Oi, lindo.
― Pelo amor de Deus ― Eu esbafori. ―, que tipo de sonhos você tem?!
André comprimiu os lábios. Estava prestes a dizer algo quando soltou um riso nervoso.
― Eu avisei.
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