— Você será o melhor, meu bem. Não tenha medo.
★★
Blueport é conhecida por ser pequena e a maioria de seus habitantes sendo humanos. É uma cidade litorânea com um dos maiores portos, mesmo sendo tão pequena em comparação as outras. Parte de seus estabelecimentos eram beirando o mar e todos esses havia convés com saída e entrada para o oceano. O restaurante, Púrpura, era um dos mais frequentados na pequena cidade e, beirando o mar, também recebia visitas de pessoas e criaturas de todos os lugares e espécies. Dylan sentia orgulho do negócio dos pais. Ele vivia naquele restaurante desde pequeno, correndo para lá e para cá, às vezes ajudando, às vezes atrapalhando; quando atrapalhava demais, seus pais o mandavam brincar na água. Foi em uma dessas vezes que conheceu Atlas, um tritão com a calda laranja dégradé que escurecia até um vermelho fogo em seu final. Ambos eram crianças quando se conheceram; cresceram juntos, e assim como Atlas subia para a superfície para vê-lo, Dylan descia ao fundo do mar para ver o tritão, passavam horas juntos, tanto em cima quanto em baixo.
Eles viraram aquela típica dupla que se entendem apenas pelo olhar. Conheciam um ao outro como ninguém, e apesar das diferenças se entendiam sempre. Como agora, em que uma tempestade se aproximava da cidade e como sempre as comportas eram postas para o mar não invadir tanto as casas. Atlas preferia que o humano ficasse ali durante as chuvas, mas ele sabia que Dylan não deixaria seus pais, já com uma certa idade, colocarem as comportas sozinhos, além do pavor que seus pais tinham das tempestades, por isso, permanecia com eles. O tritão entendia o cuidado do amigo com os pais e quando a tempestade passava nadava para a superfície para saber se a família estava bem.
— Estamos bem, querido, leve Dylan para relaxar.
Era o que a mãe do humano sempre dizia. Ele ficava tão preocupado com os pais que mal descansava e quase não dormia as noites. Assim, Atlas o levava para baixo, pois, todos sabiam como o mar relaxa e parecia cuidar de Dylan.
Com tantos anos de convivência era obvia a proximidade e a intimidade entre eles, mas nem por um momento o humano pensou que isso passaria do limite da amizade. Não passava por sua cabeça que poderia sentir algo a mais pelo tritão, até o dia que ele decidiu querer namorar e conheceu outro humano que o chamara para sair. O ciúme era visível e o grupo de amigos dos dois percebera na hora. Mas, mesmo com ciúme, ele apoiou o amigo na decisão. Ficou feliz por ele.
No encontro, entre o humano e o tritão, eles optaram por nadar ao final da tarde na pequena e única praia da cidade, indo para as pedras para aproveitarem do tempo. Atlas parecia feliz enquanto contava cada detalhe do encontro para o melhor amigo e, saber disso, deixava ele contente também. A cada novo detalhe o sorriso parecia crescer, fazendo o coração de Dylan doer e sua cabeça latejar. Após tanto falar, eles ficaram um tempo em silêncio, mas a cabeça do humano não parava de doer, e parecia aumentar com o tempo. Quando ele não aguentava mais de dor, disse que precisava ajudar os pais. Apenas alguns minutos fora d'água e a dor havia desaparecido.
As dores voltam a surgir em alguns momentos durante os dias que passam, mas antes que ele possa tentar descobrir o que poderia ser, o humano, com quem seu amigo vinha se encontrando, entra no restaurante e enquanto caminha para perto, uma garota aparece do lado dele. Até aquele momento não via problema, mas quando ela deixa um beijo em seus lábios antes de sentar-se em uma das mesas do Púrpura, seu coração dói, porque ele sabe o quanto o amigo estava gostando daquilo. Sem pensar muito, ele desce mar abaixo procurando pelo tritão e, quando o acha, leva-o direto para a verdade. A verdade que o machucaria, mas que também o libertaria.
Lagrimas. Era o que via escorrer dos olhos do tritão. Ele o abraça o tirando dali, levando de volta para casa. Para o seu conforto. O grupo de amigos se junta para ajudar. Atlas passa um tempo chorando, e parece que não vai parar tão cedo. Dylan quer ficar, que ajudar o amigo, quer consolá-lo e fazê-lo rir, mas as dores voltam e ele sabe que precisa sair da água.
— Você está bem? Parece com dor. — Um dos amigos pergunta baixo a Dylan.
Ele nega e volta para casa na maior velocidade que consegue. A dor parecia ainda pior que das outras vezes e ele não sabe se é o tempo que passa lá embaixo, ou qualquer outra opção. Talvez humanos realmente não devesse ficar submersos tanto tempo quanto ele, mas ele ama o mar demais para não o fazer.
Com isso em mente, ele conta aos pais sobre as dores e em como elas só aparecem quando ele está na água. Ou como elas são insuportáveis e param nos minutos que ele volta a superfície. O olhar preocupado de seus pais o deixa tenso. Sua mãe segura sua mão e começa a falar.
A verdade pode machucar, mas também liberta.
Seu rosto molhado pelas lagrimas não tinha expressão alguma enquanto olhava para as duas pessoas que cuidaram e o criaram. Às duas pessoas que fizeram de tudo para que ele fosse feliz e estivesse bem. Dylan sorriu, mas levantou-se e saiu sem dizer uma palavra, pulando na água e voltando para os braços do melhor amigo.
Atlas não chorava mais e teria empurrado o humano de perto de si se não tivesse visto os olhos vermelhos, ele estava chateado pelo amigo ter ido embora sem nem falar nada quando ele mais precisou, mas ao ver os olhos, acreditou que algo poderia ter acontecido.
— Desculpa por ir embora, peixinho. Não quis te preocupar, mas... mas tenho tido dores insuportáveis na cabeça, e eu pensava que era por ficar muito tempo aqui. E agora acabei de descobrir que meus pais nem são meus pais... — Dylan despejava tudo no amigo sem quase respirar.
— Respira, estrelinha, respira. E como assim eles não são seus pais? — sua voz era calma e doce.
— Uma bruxa do mar me deixou no restaurante quando eu era ainda bebê e me fez parecer um humano para viver no meio deles.
Surpreso com cada palavra proferida, Atlas, abraça Dylan com mais força. Um abraço que faz Dylan se sentir em casa. E como sempre não foi preciso palavras para o bruxo entender que o tritão o ajudaria a descobrir a verdade, descobrir quem era sua mãe e o porquê ela o havia deixado na superfície.
Assim, os dois desceram ainda mais, foram para a parte mais escura do oceano, onde as criaturas que ninguém gostava ficavam, onde o pavor dominava a alma de quem ousava descer. Diziam que ali era tão escuro que não podiam ver nada e você ficava cego ao perigo a sua frente. Era mentira. Algas fluorescentes e magia espelhavam brilho e vida para todos os lados. Os dois estavam surpresos e maravilhados com a visão brilhosa a frente. Jamais imaginariam tal beleza. E quando Atlas acreditou que nada poderia o surpreender mais quando um brilho ainda maior sai de seu amigo. Dylan sentia a magia correr por suas veias, por sua pele, pelo seu corpo inteiro. Ele fecha os olhos sentindo tudo e quando os abre novamente seu corpo já não é mais o mesmo. Sua pele tem o mesmo tom acinzentado das sereias e tritões e ao invés de pernas, oito tentáculos majestosos estão no lugar.
Púrpura.
Púrpura é a cor deles e parecem muito mais leves que suas antigas pernas. Ele está surpreso e talvez um pouco assustado, mas o olhar de admiração no rosto do tritão o deixa tão feliz que ele esquece qualquer resquício de medo.
— Você é filho da Margot. — Uma bruxa do mar se aproxima deles, seus tentáculos azuis-escuros brilham enquanto a locomove pela água. — Sua magia tem o mesmo senso que a dela. Uma pena ela ter tido que te deixar com os humanos para te salvar. Ninguém sabe o porquê, mas após te levar ela não voltou mais. E só o que disse foi: “vou deixá-lo lá para salvá-lo, mas quando ele retornar, por favor cuide dele, ensine-o.” Quando estiver pronto para aprender, procure-me.
De volta a claridade, tentando assimilar tudo que havia acontecido, ele não repara nos olhares que recebe, mas Atlas sim; por isso, segura sua mão com força. A ação tira Dylan de dentro de sua mente e, ao olhar ao redor e ver todos os olhos com pavor e julgamentos, ele para. Ele olha para o tritão ao seu lado temendo ver o mesmo olhar, mas tudo que vê é a mesma admiração de antes. Aliviado com isso, tudo que faz é dizer que vai voltar para seu lugar, para a escuridão.
O bruxo não sabe como, mas assim que volta a escuridão, há uma caverna que parece dar-lhe as boas-vindas. Está vazia, mas suas prateleiras feitas com as pedras estão cheias de frascos cheios de elementos desconhecidos para si, além de serem um mais estranho que o outro; há um grande caldeirão e algo próximo ao que parece sua cama na superfície. Não é o que ele imaginaria para viver, mas é mais que o suficiente.
Dylan passa a viver ali, enquanto aprende a ser um bruxo, assim como sua mãe um dia fora. Enquanto isso, Atlas, tenta terminar seu treinamento obrigatório na cidade subaquática. Os dois, depois de muita insistência por parte do tritão, decidiram que morariam juntos ali. Ele jamais pediria que o outro largasse sua vida na claridade para viver ali, mas Atlas não faria isso sendo forçado. Ele quer fazer isso. Não porque não queria que o amigo ficasse sozinho, mas, porque entendia que o que eles tinham havia passado de uma amizade há muito e eles deveriam ficar juntos, pois sentiam que era o certo e queriam isso. Demorou um pouco para Atlas perceber o que sentia, mas agora que sabia não deixaria a oportunidade de ter o seu amor para si.
Dois meses fora o necessário para que o treinamento de Atlas acabasse e como prometido, Dylan estava ali, no Púrpura, nome dado em homenagem aos seus tentáculos, esperando por seu amor, ou como o outro sempre frisava, namorado. Quanto ao seu treinamento, ainda não havia finalizado, mas nada que não pudesse fazer na presença de quem amava e mais confiava.
— Está atrasado, peixinho.
— Desculpa, estrelinha, roubaram do meu tempo mais do que eu gostaria.
— Tudo bem. Vamos para casa.
Os dois voltam para a escuridão, onde só os corajosos têm audácia de descer e pedir por algo a uma bruxa, mas onde poderiam se amar e viverem juntos, sem julgamentos.
Comments (0)
See all