Capítulo II
Só os fortes sobrevivem
“Os que estão no topo
não podem ter o luxo de
sentir piedade.”
Pensamentos sobre o que aconteceu no pequeno país invadiam a mente de Mirla constantemente: a derrota para a deumiana, o fato de ter sido salva, era inaceitável. Mirla pretendia ser a comandante do exército do vento, aqueles acontecimentos poderiam pôr em dúvida sua capacidade como uma líder e, mais importante, machucavam seu orgulho.
— Está tudo tão tranquilo — comentou a garotinha de longos cabelos escuros, cujo pequenos fios juntos insistiam em lutar contra a gravidade, sua cicatriz no olho direito parecia uma ferida recente, mas ela mesma não sabia quantos anos já a tinha.
O sorriso da menina deu lugar a uma expressão de interrogação, pois Mirla, sua aidm, parou de andar de forma abrupta. Brisa olhou ao redor, pela rua havia as mesmas casas de sempre, quase ninguém passava, estava muito cedo. No horizonte, conseguia ver parte da torre da cidade, e era certo que não importava onde estivesse na capital, nunca iria se perder graças a torre.
Brisa balançou a cabeça, dando atenção a sua aidm. Mirla olhava inerte para ela, e não soube por quanto tempo estava assim.
— Que foi?
— Nada! — Mirla voltou a caminhar, desta vez seus passos eram tão largos que a menina teve que correr em alguns momentos para acompanhá-la.
Virou a rua, onde encostada na calçada baixa de um estabelecimento fechado, uma mulher de sorriso malicioso esperava, ela estava acompanhada por um rapaz.
— O que fazem aqui? — Não escondeu o quanto os dois não eram bem-vindos.
— Calma, só vim aqui fazer um convite — explicou Gane.
— Vá embora, não quero nada vindo de você!
— Quem são, Mirla? — Brisa perguntou, puxando o cós da roupa da aidm.
Foi ignorada.
— Só escute, Mirla — pediu Ridem, recebendo a atenção da jovem. — É um convite de Malri, seu pai, para as filhas.
— Aquele homem não é meu pai — respondeu com firmeza.
— Não seja infantil. Vou te contar um segredo, nessa visita ele verá qual das duas possuem a mesma habilidade que ele. Pense bem, se for você, deixará de ser só uma porteira.
— É Aidm! — Levantou ainda mais sua voz.
— Que seja, esse é apenas um nome bonitinho que inventaram para não dizerem porteira.
Trincou os dentes em ira, já estava irritada e ver aquela pessoa, ouvir seus comentários de escárnio, só fez sua raiva aumentar. Mesmo que não gostasse de ser uma mera aidm, não iria deixar que alguém falasse mal de sua habilidade, muito menos aquela deumiana.
Deixou que a raiva falasse por si e tentou acertar Gane com um soco, essa desviou descendo da calçada. Em seguida, voltou, devolvendo um chute do lado da barriga da garota.
— Não deixarei que alguém como você me ofenda!
Mirla se defendeu com os braços, empurrou ela e só não avançou novamente porque o rapaz tomou a frente.
— Por favor, pense a respeito. Ninguém aqui veio com más intenções.
— O fato de estarem aqui para discutir sobre Malri, já é má intenção.
— Esqueça, Ridem, não dá pra conversar civilizadamente com essa garota, é como o pai. — Gane sabia que suas palavras conseguiriam atiçar mais ainda a jovem aidm, e tinha um enorme prazer em fazer isso.
Mirla empurrou Ridem pro lado, chutou novamente, mas desta vez Gane segurou a perna da garota. Com uma cotovelada acertou a perna de Mirla acima do joelho e a empurrou para trás.
— Mirla? — Brisa, que observava sem entender o que acontecia ali, se mobilizou até sua aidm. — Deixe-a em paz— pediu, sua voz era tão baixa que quase parecia um sussurro.
Mirla afastou bruscamente Brisa, encarou a menina com repreensão.
— Então essa é a garotinha de quem você é aidm? — Gane perguntou, mantendo uma distância segura. — Qual seu nome?
— Brisa — respondeu sem fazer contato visual.
— O meu é Gane — disse, sorriu e deu as costas para as duas. — Certo, o recado já foi dado. Se você for ou não, nada mudará em minha vida, então, pouco me importa.
Passou pelas duas, cruzando a rua. Aquele que acompanhava Gane não a seguiu.
— O que ainda faz aqui? O recado já foi dado, não escutou? — Mirla se dirigiu ao rapaz.
— Sim, mas dar esse recado era trabalho de Gane. Eu estou aqui para ver você.
— O quê? — Foi pega de surpresa.
— Você deve querer saber o que o rei Blaste foi fazer em Má, eu também quero. Poderíamos nos ajudar.
— Não quero a amizade de alguém que trabalhe para Malri. — O olhou com indiferença. Agarrou a mão da garotinha, pronta para ir embora.
— Espera, eu não trabalho pro Malri — explicou, olhou para o lenço ao redor de seu braço e continuou. — Só quero mesmo ter certeza que esses dois não são uma ameaça para o meu pai.
Brisa resmungou ao sentir sua mão ser apertada pela aidm.
— Quem é seu pai? — Mirla perguntou.
— Nerlim Má, é óbvio…
A expressão de Mirla não vacilou, mas assim que ele terminou de falar, pegou a garotinha nos braços, saindo daquela rua a passos largos. Ridem a chamou mais uma vez, ainda assim continuou a se afastar.
— Podia ter sido pior — ele pensou alto, resolveu não insistir.
☆☆☆☆☆☆
Mirla havia se cansado dos passos lentos de Brisa, quando avistou uma casa simples de paredes roxas agarrou a menina pelas pernas e correu. Cruzou a rua sem olhar para os lados, só pôs os pés na grama e largou a garotinha no chão.
A senhora Venel saiu na sacada, acenando para as duas. Mirla ao vê-la foi embora.
Ela continuou sua corrida constante. Agora, poucas pessoas já estavam nas ruas estreitas. Na estrada principal da torre, algumas lojas móveis já estavam em funcionamento. Na praça principal, entre as árvores e bancos de cimento, brincavam crianças, outras subindo e correndo entre o degrau que separava o jardim da calçada, tentando não cair. Quando viu alguns jovens adolescentes de uniforme, gritou para irem para a torre, ainda que ela mesma estivesse atrasada.
Atravessou os muros que rodeavam o edifício e correu pelas escadas laterais do salão, acessando outros andares. Parou no quarto andar e entrou pelo corredor, no final uma nova porta a levou para uma sala com assentos ordenados como uma escada, onde vários outros com roupas como a dela — de cores roxas e com uma linha preta do pescoço ao final do traje — olhavam concentrados para um adulto na frente. Observou rapidamente que aquela não era sua turma, e seguiu para outra sala.
Só poderia ser essa. Se abaixou, abrindo uma das portas duplas e colocando aos poucos seu corpo para dentro da sala. Uma garota sentada ao lado da janela observava com o queixo apoiado na mão, se perguntando que bicho era aquele.
— Não precisa de tudo isso, não vamos ter aula. — Avisou, tentando preservar a dignidade de sua irmã.
Mirla se levantou, como se nada tivesse acontecido, foi até a mesa onde a outra estava. Jogou o rosto entre as mãos, escondendo o rosto. Depois de alguns segundos ergueu a cabeça, emburrada. Antes que a garota do lado pudesse perguntar o que ela tinha, mais uma criatura estranha tentava entrar de fininho na sala.
— Cria vergonha na cara! — Foi Mirla quem o repreendeu.
— Desculpe…— O rapaz respondeu baixo e gaguejando, enquanto dava meia volta para fora da sala.
— Você não tem moral — a garota lembrou Mirla, que a segundos atrás estava fazendo o mesmo. — Você teve muita sorte hoje, esqueceu quantas vezes já foi advertida por atraso? — Moni censurou Mirla, antes que ela pudesse se explicar. — Nem tente usar Brisa como desculpa, eu e você saímos do mesmo lugar e temos obrigações iguais, e aqui estou eu, e lá está você se esgueirando. Você só age por impulso, tem que melhorar isso.
Mirla não era boa aceitando críticas, se fosse outra pessoa falando assim com ela, já teria acertado no mínimo uns dois socos na boca da pessoa, mas havia certos privilégios que só sua irmã tinha.
— Não abusa da sorte — Mirla não precisava falar muito para expressar está impaciente, sua cara já era expressiva o suficiente.
Moni levantou, indicando para que Mirla fizesse o mesmo.
— Eu não, é a mãe que sempre te fala isso. — Argumentou para não ser atacada.
— Ela não sabe de nada. — Mirla respondeu irritada, enquanto seguiam para fora da sala.
Viram que o rapaz de antes estava parado encostado na parede do lado de fora. Ele usava um capuz e mantinha os braços cruzados atrás do corpo, era possível ver que seu rosto estava cheio de manchas, seus olhos verdes pareciam cansados. Pela sua estatura parecia ter entre 13 ou 14 anos, mas já era um rapaz de 16.
— Quem é você? — Mirla perguntou com hostilidade.
— Ah, eu sou Jack… Estearijor.
Aquele era um sobrenome bem conhecido, no entanto isso não abalou Mirla.
— Eu nunca ouvi falar de você, e não se parece com o velho Estearijor.
— Mirla! — A garota a repreendeu com um sorriso torto. — Desculpe minha irmã, ela não foi educada corretamente. — A empurrou com o ombro. — Eu sou Moni, e está é minha irmã, Mirla.
O garoto notou que as duas eram quase iguais, os mesmos olhos negros profundos e a pele mais bronzeada. Mirla, no entanto, tinha o cabelo mais liso, que usava solto e dividido para o lado direito, ela tinha uma expressão nada amigável. Já Moni tinha um sorriso gentil, um uniforme com uma saia reta, seus cabelos estavam divididos ao meio e eram mais ondulados.
— Bom, acredito que isso ocorra devido a introspecção, um traço da minha personalidade. Mesmo tendo ciência das normas sociais, é difícil enfrentá-los. Porém, estou trabalhando para ser um membro funcional da sociedade.
Mirla ficou irritada, se perguntando o que diabos aquela pessoa estava falando. Não havia nada de “Estearijor” naquele menino, e por que ele parecia em tão más condições? A família Estearijor era do Reino das águas, conhecida por seus membros inteligentes e de renome.
— O que diabos aconteceu com seu rosto? — Não se aguentou e perguntou.
— Eu estou bem. — Respondeu Jack, levando as mãos próximas ao rosto.
— Não perguntei se estava bem.
— Isso é porque fazia tempo que não saia do porão, acabei pegando muita luz do dia e minha pele está irritada.
— Porão? — Moni tremeu.
Mirla encarou o estranho com uma carranca, o fazendo ficar assustado. Uma voz forte, que tentava soar gentil, veio por trás de Mirla.
— Me desculpe, Jack, não consegui mesmo ir buscá-lo.
Era um homem que aparentava estar quase na casa dos quarenta, seu cabelo era curto e castanho. Usava óculos de explorador, o que tornava difícil interpretar sua expressão. Ele ficou ao lado do garoto, e cumprimentou as irmãs.
— Capitão, não sabíamos que tinha um parente tão jovem. — Moni comentou.
— Isso é devido aos seus estudos em Aquapla, mas já estava na hora de sair e conhecer o mundo. — Explicou.
Mirla pensou que aquilo era estranho, mas manteve a boca fechada. Afinal, aquele era "O Estearijor", Capitão do Reino do Vento e Titã da Sabedoria. O drama de cada família era problema de cada família.
— Se nos dão licença. — Pediu e se retirou com o garoto, dando fim aquele encontro estranho.
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