Quando o trem sumiu de nosso campo de visão, iniciou-se um silêncio entre nós quatro. Sem a Noru por perto, senti uma sensação de que algo estava incompleto, como se John, Hugo e ela fossem terços de uma única entidade. Hugo, em especial, estava parado, olhando para os trilhos com um olhar vazio. Acho que essa é a primeira vez que ele e a irmã vão ficar longe por tanto tempo. Se for assim, eu consigo entender os sentimentos dele, pois eu também me senti assim cinco anos atrás, quando John entrou para a academia. Nesse caso, é melhor deixar ele quieto, para que ele possa conciliar seus sentimentos com calma.
Em dois minutos, Hugo suspirou e virou-se, ficando de costas para os trilhos. Ele parecia estar pronto para, pelo menos, deixar a estação. Aproximando-se de John, Hugo colocou sua mão no ombro dele, levou seu rosto para mais próximo do ouvido de John, e falou de forma discretiva:
- Você terá muito trabalho a partir de amanhã. Não se esqueça de descansar pelo resto do dia.
- Não se preocupe, eu irei – John tocou a mão dele e sorriu.
Após despedir-se de John, Hugo passou por Erina e eu e disse-nos:
- O mesmo vale para as senhoritas. As coisas não serão fáceis para vocês.
Nós duas engolimos seco.
- Hugo… – John, que havia notado nossa reação, murmurou, como se quisesse dar um sermão nele.
Hugo, por sua vez, soltou uma leve risada e sorriu.
- Perdão. Eu estou certo que vocês duas irão se sair bem.
Com isso, Hugo deu as costas para nós e continuou seus passos. Sem o olhar de Hugo, Erina e eu ficamos mais calmas, especialmente ela, pois, assim que seus temores se dissiparam, ela se jogou para a direção do John e voltou a abraçar seu braço.
- John, você poderia levar-nos ao dormitório? – ela pediu docemente.
Hugo, ao ouvir a voz melosa de Erina, virou-se e deparou com minha amiga abraçada ao braço de John, quase esfregando seu rosto nele. Hugo encarou Erina com certa intensidade que mais parecia reprovação e senti calafrios com aquele olhar. Eu tentei dizer “Solta ele” com os lábios, mas Erina nem olhou para mim.
- E-er, posso sim, Senhorita Erina… Hum? – John havia notado que Hugo estava olhando – Algo de errado?
Hugo permaneceu em silêncio por mais alguns segundos, olhando para a oferecida Erina e o completamente alheio John, até que ele decidiu falar.
- …Não, nada.
E ele finalmente foi-se.
John ficou olhando-o partir, com um rosto confuso.
- Que bicho mordeu ele, hein? – Ele murmurou, coçando a nuca e olhou para Erina e eu – enfim… vamos?
………
A caminha de volta para o dormitório havia sido tranquila. Foi a oportunidade perfeita para eu poder assimilar todas as informações que eu ouvi no dia. E foi graças a essa tranquilidade que eu pude me lembrar de algo que eu deveria ter feito logo de manhã: eu deveria ter entregado as cartas que eu guardei na mala para o John! Era para eu ter entregado para ele assim que o visse, mas a cena que Erina fez ao se jogar em seus braços no momento que o viu me fez esquecer completamente!
Portanto, assim que John deixou Erina e eu no dormitório, pedi para que ele esperasse um pouco e corri para o meu quarto. Como eu me lembrava em qual mala eu havia colocado as cartas, não demorou para que eu retornasse e entregasse-as a ele. Eram três cartas de parabenização pelo novo trabalho, uma de mamãe, uma de papai e outra de Elbern.
Elbern era um amigo da família. Um belíssimo elfo viajante de cabelos cor de salmão e olhos verde-água muito bom de magia, mas péssimo de poções. Por isso, ele foi até meus pais e pediu para ser um aprendiz deles. Eu tinha três anos na época. Quando eu o vi pela primeira vez, eu o achei tão lindo que eu me aproveitei da minha idade e o apelidei de “Elfo Bonito”. E o engraçado é que ele ficava vermelho sempre que eu o chamava assim, então eu não parei. Além disso, vira e mexe eu invadia o quarto dele para fuçar os grimórios dele enquanto ele estava aprendendo poções com os meus pais. Em minha defesa, ele tinha livros que eu nunca tinha visto antes, nem morta eu perderia uma oportunidade dessas!
Entretanto, nossa relação não se resumiu a apenas eu ficar provocando ele e me aproveitando da minha idade para sair ilesa. Quando eu tinha 5 anos, Elbern estava pronto para deixar nossa casa e continuar sua viagem de conhecimento, porém eu implorei que ele ficasse para me ensinar magia. Na verdade, ensinar para mim e para John. Depois de muita insistência, ele cedeu e ficou, dessa vez não como o aprendiz de Cyrus e Ninfa Phenis, mas sim como tutor de Amaris e John Phenis. Ele continuou conosco até os meus oito anos e acabou virando um amigo da família.
Quando recebeu as três cartas, John sorriu feliz pela atenção recebida, inclusive de Elbern que, segundo ele, era mais próximo de mim do que dele. Satisfeito, John estava pronto para ir embora e, para me despedir, dei-lhe um abraço bem apertado. Após o abraço, John se despediu e foi para o dormitório dos funcionários. Suspirei, vendo-o ficar cada vez mais distante. A partir de amanhã, teremos que fingir não somos família, então com certeza não poderíamos nos abraçar por um bom tempo.
- Ai, é uma pena que vamos ter que fingir que nunca o vimos em nossas vidas – Erina, que estava atrás de mim, suspirou com o rosto apoiado em uma mão, interrompendo meus pensamentos – Se aparecer concorrência, eu não terei vantagem!
- Não se preocupe, assim como você, sua “concorrência” não terá chance alguma.
- Ui, que afiada! – Ela riu em resposta.
Ainda rindo, Erina segurou minha mão e me levou para o quarto dela com o pretexto de experimentarmos os uniformes. Obviamente, eu tive que ir no meu quarto antes para pegar o meu uniforme. Quando entramos em seu quarto, Erina pegou o pequeno pacote em sua mala e o abriu, tirando dele o uniforme de Avalon e levando-o consigo para atrás de seu biombo para trocar de roupa. Eu a esperei enquanto se trocava, ouvindo suas risadinhas de empolgação.
- Tô pronta!
Ela anunciou, saindo do biombo com sua vestimenta.
O uniforme era um conjunto composto das seguintes peças: uma blusa branca com uma gravata vermelho-vinho; um casaco do tipo blazer azul escuro com o brasão da Academia bordado no peito e com as bordas das mangas e o colarinho da cor bege; uma saia cor de grafite escuro que ficava um pouco acima dos joelhos; meias ficavam a escolha do aluno e Erina escolheu meias brancas que ficavam logo abaixo do joelho; e botas de cano curto marrons.
- O que achou? – Erina me perguntou, dando um rodopio.
- Maravilhosa!
Erina sorriu e foi até o espelho que tinha no quarto. Ela ficou experimentando várias poses para analisar o uniforme em vários ângulos. Tendo gostado do resultado, ela passou a mexer em seus cabelos dourados.
- Que penteado eu devo fazer? – Ela ponderou – É claro que eu vou ter que prender o cabelo nas aulas práticas, mas não vai ser o tempo todo, então eu tenho que escolher o melhor penteado para o dia a dia! – um sorriso cheio de segundas intenções formou-se em seus lábios – Afinal, agora eu tenho o Sr. Reignia para impressionar também!
Quase engasguei com essa ousada declaração.
- E-ele também?!
- Um poderoso protagonista e o Dragão Imperial Moderno… – Erina murmurou ambiciosamente – Sim, sim, ambos tem que entrar pro meu harém!
Suspirei e fui para atrás de Erina, colando minhas mãos em seus ombros, pronta para jogar umas verdades nela.
- Se eu fosse você, eu baixaria a bola, porque, lá na estação, quando você se jogou no John, o Sr. Reignia olhou para você com cara de quem não gostou!
Erina, entretanto, deturpou minha fala e levou as mãos até as bochechas como uma dama apaixonada.
- Será que o Sr. Reignia sentiu ciúmes por eu estar agarrada ao John?
- Eu tenho quase certeza que ele achou o seu comportamento inapropriado para uma estudante de Avalon! – Retruquei.
Erina riu da minha reação e continuou a mexer nos cabelos, ainda pensando no penteado ideal.
- Hmmmmm… – ela murmurou – Estou pensando deixar o cabelo solto e usar uma tiara vermelha… O que você acha? – ela se virou para mim.
Dessa vez ela estava perguntando com sinceridade. Isso ia além do que simplesmente procurar rapazes para seu harém, ela estava pensando em sua imagem perante o público. Nesse caso, não faz mal eu responder de maneira honesta.
- Acho que você vai ficar linda!
- Perfeito! Está decidido! – Ela juntou as mãos satisfeita e virou-se para mim – Agora é sua vez! – Ela segurou meus ombros com a sua força acima da média e começou a me empurrar para trás, em direção ao biombo – Você tem que se trocar também! Vai lá, vai!
Sem nenhum esforço, Erina me levou até atrás do biombo e me deixou lá. Não havia motivos para eu me recusar a trocar de roupa, então tirei o meu vestido e pus o uniforme. Eu estava com as mesma roupas que Erina, porém a diferença é que eu havia escolhido meias pretas longas. Era evidente que o tecido era de boa qualidade, pois a sensação dele contra minha pele era bem confortável. Estando propriamente vestida, sai de trás do biombo e fui até o espelho, ficando encantada pelo meu próprio reflexo. Nunca em minha vida passada eu vesti um uniforme tão belo quanto esse e olha que eu já tinha estudado em escola particular naquela época!
- Uau… – suspirei involuntariamente.
- Eu sei, mulher! Você tá linda! – Erina exclamou, segurando meu braço e me balançando – E, com essa trança, você fica tão fofa!
Ela passou uns bons minutos falando de quão bonitas nós ficamos e de quão elegante o uniforme era. E eu sentia a mesma empolgação que ela. Estar nesse dormitório e vestindo esse uniforme me criava uma sensação de otimismo que era muito contagiante e envolvente.
Ainda havia algumas horas sobrando antes de termos que nos preocupar com o jantar, então, depois de fantasiarmos por mais uns minutos, colocamos nossas roupas anteriores e decidimos que iríamos começar a arrumar nossos quartos. Antes que eu fosse embora até meu quarto, Erina choramingou para mim, dizendo que trouxe roupas demais e que não sabia se todas caberiam no armário. Ela teria que decidir quais elas usaria mais – o que seria difícil, pois ela usaria o uniforme quase que diariamente – e deixar as que seriam menos usadas na mala. Já eu, quando fui para meu quarto, não tive o mesmo problema. Eu havia considerado que eu usaria o uniforme com frequência e que provavelmente eu encontraria roupas novas que eu gostaria de comprar, então eu levei o mínimo de roupas casuais e formais – seja para o calor ou frio –, sapatos, botas, chinelos e pijamas. Por causa da minha seleção, todas as roupas couberam no armário, junto do chapéu que John havia comprado para mim hoje.
Depois de ter terminado com as roupas, fui cuidar do livros. Abri as malas e comecei a pegá-los, um a um, e a organizá-los nas prateleiras. Livros didáticos, de mistério, de romance, de aventura, de terror e, é claro, grimórios. Por último, peguei o meu livro predileto: o Grimório para Magias de Suporte. Ele é um livro grosso com uma capa de couro com detalhes dourados em suas bordas. Suas páginas são feitas de um pergaminho bem resistente, feito para durar inúmeras décadas, e nelas continham magias de cura, proteção, aprimoramento e até mesmo de enfraquecimento, dos mais simples aos mais elaborados. É basicamente o queridinho de qualquer fã de magos de suporte. Esse preciosíssimo grimório havia sido um presente do Elbern para mim, o que o tornava mais especial.
Comecei a folhear o grimório, relembrando os conhecimentos que eu aprendi e pensando naqueles que irei aprender. Quando eu abri uma página aleatória, quase derrubei o grimório de susto. Um retângulo de papel havia caído dele. Abaixei-me para pegar o retângulo e percebi que era, na verdade, um envelope e nele estava escrito “Para: Amaris, De: Elbern”
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