O trovão ronca forte, um sermão rigoroso e amedrontador.
Um som alto de uma explosão de uma bomba eletrônica de pulso. Porém, ninguém em Alter ouviu – o barulho da tempestade sobrepõe qualquer som. Os corpos dos membros da Triage estouram, voando para todos os lados. Sangue e penas caem junto com a garoa fina. É possível sentir a eletricidade no ambiente. Ainda bem que não estava tão molhada para haver maiores consequências.
Um outro homem, dessa vez mais velho e com um pincenê no nariz, corre na direção de Ilídia. A menina em seus braços tosse várias vezes, quase engasgando com seu próprio sangue.
- Eu falei para ir embora! – Jorge grita meio aos trovões, segurando-a no colo. Ela sorri, sem humor, tossindo de novo.
O barman corre com Ilídia para longe dali, com um único endereço em sua mente – e não é a da casa de banho.
A chuva aumenta.
- Pensei que estivesse blefando quando falou que iria procurá-los. – Jorge comenta ofegante, desbravando uma subida com a água com centímetros de altura. – Seja uma Hor ou apenas uma criança doida, a sua sorte foi que preferi prevenir.
- Obrigada por isso...
- Se é mesmo quem diz ser, cadê o poder que herdou da sua família?
Ela morde os lábios, também confusa. Desde que nasceu, sempre sentiu algo estranho quanto o seu corpo e sua alma. Diferentes. Incompletos. Por mais que fosse uma ótima maga, nunca conseguiu desbravar todo o seu potencial. Seus pais disseram que tudo se resolveria ao se casar, despertando o divino nela. Zafrino, desconfiado, tentou a convencer de que era mentira. Ela, por mais que o amasse, não acreditou no irmão... até agora.
Meio as ruas imundas e velhas casas ali, Jorge entra em uma delas e fecha a porta – fechando inúmeras trancas. A chuva ruge lá fora, mas o barulho crepitante da lareira é mais forte. O ambiente aconchegante faz com que Ilídia sinta menos cansaço.
- Papai! Papai! – exclama uma voz angelical, vindo dos confins da casa.
A mão de uma menininha de 3 anos, no máximo, aparece no seu campo de visão. Ela puxa incessantemente a calça encharcada de Jorge, que põe Ilídia deitada num sofá velho da sala-quarto-cozinha. Ele abraça a garotinha, vai até a cozinha, traz um pano e uma chaleira. A menina observa atentamente os cuidados do pai, que coloca o pano molhado na cabeça da estranha visita e limpa o sangue escapando-lhe pela boca.
- Pai, quem é ela? – sussurra um tanto alto no ouvido de Jorge.
- Ino, essa é uma... amiga do papai. Ela está cansada e eu também. Poderia trazer aqueles biscoitinhos especiais lá do armário?
Ela arregala os olhos e enche as bochechas de ar, balançando a cabeça assertivamente – como se fosse a ordem mais importante da sua vida. Ela corre com suas perninhas gordas até a cozinha e volta com um pote cheio de biscoitos, mas quase derrubando-os no meio da sala ao tropeçar. Ilídia nunca pensou que acharia um tapete algo perigoso, principalmente se amassado em algum ponto. Ino demonstra ser uma criança frágil e sensível, queria protegê-la em seus braços.
Os biscoitos estão velhos e talvez embolorados, mas Ilídia responde com um sorriso convincente.
- Muito obrigada e – engole em seco. – desculpe, Jorge, por tudo isso. Eu pensei que daria conta... me disseram que eu conseguiria.
- Não tem que se desculpar. Só a ajudei por... – responde, sentando no chão entapetado. Seu bigode parece ainda mais embaraçado estando molhado de chuva. – Querida, vai lá assistir seu desenho no espelho. Preciso falar com ela em particular.
A menina faz um bico e soluça um pouco, mas some em um outro cômodo. Algumas vozes e risadas começam a coar de lá.
- Que invenção engenhosa... – murmura Jorge.
Os espelhos são algo recente, descoberto e remodelado em Karma. Os invum chamavam de TV. Porém, como os karman não sabia como a eletricidade funcionava, criaram um objeto similar movido a magia. Ilídia não entende por que magos não compreendem a eletricidade, a tecnologia de Callun. São exatamente a mesma coisa – caminhos diferentes, mas mesmo fim. Enquanto uns usam o que chamam de conhecimento sobre Química para fazer fogo, por exemplo, outros escrevem “símbolos mágicos” para conjurar tal elemento. Os pontos A e B são obviamente interligados, todavia, por algum motivo, as pessoas não conseguem assimilar!
O homem suspira.
- A magia e a sabedoria invum são tão parecidos...
- Eu estava pensando nisso...Como sabe dessas coisas, Jorge?
Rindo, responde:
- Acha que sobrevivi como nessa cidade, naquele lugar, por tanto tempo? Informação é a verdadeira moeda, garota Hor. Sou uma ameaça e preciosidade ao mesmo tempo. Ser barman me ajudou a garantir a vida... dela. – olha em direção ao quarto onde Ino está. – Como está, falando nisso? Melhor?
Ilídia se ajeita no sofá, sorrindo. Admira o quanto ele está diferente, simpático, educado. Parece até outra pessoa na companhia da filha.
- Melhor. Eu devia ter ouvido o senhor.
- Ótimo. Aliás, por que veio sem seus pais? Não que eu os quisesse por aqui, obviamente.
- Longa história. Sei que meus pais tem algo a ver com a Triage e queria saber o quê.
O rosto de Jorge fica sombrio.
- Agora... eu realmente entendi. Só saia dessa cidade, menina. Não queira saber sobre a sujeira acumulada debaixo de Alter. Se os rumores que ouvi são verdade, fuja dos seus pais enquanto ainda pode.
- O que tem eles?
- Por acaso é surda?! – exclama, derrubando o pano molhado no chão.
Ino sai correndo do quarto, assustada, observando o pai de longe.
- Pai?
A expressão de Jorge se abranda na hora, acolhendo a filha.
- Minha princesa, está tudo bem. Vamos dormir... todos nós. – ele a carrega no colo em direção ao cômodo, mas para quando Ilídia o chama de novo. – O que foi agora?
- Eu... estava em outro lugar, escondida. Falsifiquei uma assinatura, meu prazo acaba amanhã oficialmente. Meu cavalo e bolsa estão lá. Não sei se desse jeito... – Ilídia ergue a mão, olhando para a sua pele agora pálida e enfraquecida. – Preciso deles comigo.
O homem passa a mão na testa, buscando paciência.
- Deixe o endereço escrito na mesa, em qualquer lugar. Faço isso amanhã de manhã, contanto que saia daqui assim que puder. Os Hor sempre parecem sentir o cheiro de quem se intromete nos seus assuntos, não tardarão de vir. Não posso permitir que vasculhem minhas coisas ou machuquem Ino. No momento você é uma vítima, amanhã minha inimiga. Prometa e eu o farei.
- Eu prometo.
E vira as costas, levando uma menininha que começa preocupantemente a soluçar de novo.
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