Ilídia acorda subitamente, com o som do espelho no quarto de Ino.
Havia sonhado com corvos rondando a casa. Isso não é um bom sinal.
Jorge não está em casa e sumiu da mesa o bilhete que escreveu, com o endereço da hospedaria.
Espero que dê tudo certo. Doze e eu estamos juntos nessa.
Ilídia se levanta e respira fundo. Seu corpo ainda dói, mas não tanto quanto antes. O cansaço é mais mental do que físico. Desistir. É só o que pensava desde que... tudo começou. Como meus pais podem estar envolvidos nisso? O que mais os muros haviam me impedido de ver e em que nível de perigo me meti? Por causa todas essas questões, sabia que iria se arrepender se desistisse agora após essas inúmeras desconfianças. Zafrino ficaria decepcionado com a irmã, principalmente depois que ela fugiu sem dizer nada a ele. As mãos tremem de nervoso.
O barulho da chuva a acalma por um breve momento.
Ao observar envolta, aquela casa minúscula a surpreende com um terceiro cômodo. Atenta a presença de Ino no quarto, procura não fazer barulho ao entrar no escritório de Jorge. Todas as paredes estão abarrotadas de livros e objetos de papelaria. Entre uma estante e outras coisas, alguns baldes estão no chão visto inúmeras goteiras atacando o assoalho outrora bonito.
Essa é a minha chance. Se você não vai me contar, vou descobrir sozinha.
Apesar do leve sentimento de traição, começa a desenhar um símbolo no chão. A marca brilha levemente em rosa pink, figuras e traços um pouco complexos – que não podem ser feitos em apenas um movimento das mãos ou verbo. Ao terminar os códigos, conjura uma magia que manterá as coisas do jeito que estão mesmo se alguém os tirasse do lugar. Permanência, resiliência.
Então, Ilídia vasculha os pertences do homem.
Nada chama muita atenção, apenas anotações que não lhe interessa ou objetos empoeirados. Tem que ter alguma coisa! E realmente tem. Conjura rapidamente um escaneamento do ambiente e algo se contrasta. Atrás de alguns armários há um buraco na parede, fechado com inúmeras tábuas de pedra. A garota tira as pedras e o que está dentro, flutuando-os no ar – como uma vista explodida*.
Escondido dentro do buraco encontra instrumentos invum.
Não só ferramentas com adornos claramente pertencente a cultura de Callun, mas algo que nunca viu em sua vida. Parece um cachorro, todo feito de metais, vidro e uma substância desconhecida de alta plasticidade. Examinando a estrutura, percebe tubinhos e fios coloridos peculiares. Claro, condutores de eletricidade. No meio, uma esfera com símbolos estranhos tatuados e superfície queimada. Queria muito ter aprendido mais sobre Inv Callun e as mudanças pós reclusão, assim poderia identificar tal tecnologia.
Logo, outra coisa a surpreende. Quase caído no chão ao retirar os elementos, vê uma cabeça. A princípio Ilídia pensa ser de um ser humano, uma escultura hiper-realista. Contudo, onde deveria ter cabelos, há estruturas parecidas com a do cachorro de metal. A garota fica assombrada ao ver pela primeira vez um robô de alto calibre.
Vasculhando também este objeto, acaba encontrando algumas siglas escritas em vermelho. Na esfera, H.; na estrutura, A..; sob a pele, Y.. Seria indicações de fábrica, tipo da peça ou quem os criou?
Ouve barulho de cascos na chuva, perto da casa.
Ilídia sai apressadamente do cômodo, que se arruma perfeitamente sozinho. O símbolo mágico some. Jorge tem contato tão direto assim com Callun? Como, se estão reclusos? E a bomba? Verdade... Quão fora-da-lei ele é naquela casa de banhos?
Jorge e Doze entram encharcados, sendo que o semi cavalo-bufalo quase entala na porta. Ele põe a criatura na frente da lareira, que desaba no chão. Ilídia corre até o amigo, que resmunga quando ela o toca.
- Desculpe, Doze. – sussurra contra o pelo alaranjado dele. – Tanta coisa aconteceu, mas eu jamais iria deixá-lo. Somos família, lembra? Só nós dois por enquanto. – e abraça-o.
O homem tira o chapéu molhado e o sobretudo, deixando em cima da mesa. Ino vai correndo encontrar o pai, mas apenas se esconde atrás de suas pernas ao ver o estranho cavalo peludo na sala.
Ilídia sorri.
- Hey, garotinha. Vem cá. – diz, dando tapinhas no chão perto de si. – Esse é Doze, o meu... cavalo? – termina a frase dando um sorriso mucho.
Jorge acompanha a filha até perto dos dois.
- Ele vai me morder. – sussurra a menininha, apertando fortemente a calça do pai. – Quero não.
- Não, imagine. Doze é super tranquilo. O mais calmo da manada.
- Eu percebi. – diz o homem encharcado, acariciando os cabelos da Ino. – Tomei um susto quando vi essa coisa, mas é mais mole que maria-mole.
Todos riem, mesmo aquela que não entendeu a brincadeira.
Quando a menina se sente mais confortável e faz carinho no cavalo, Ilídia sorri e oferece ajuda a Jorge: - Hey, deixa eu cuidar dessa água toda.
Ela senta perto dele e segura suas roupas, conjurando uma magia que deixa suas mãos vermelhas e brilhantes, secando-as. O barman do pincenê arregala os olhos, empurrando-a para longe e aninhando a filha contra o peito. O ambiente fica espantosamente pesado.
- Você é louca?! – gritou contra ela, cuspindo no próprio bigode.
- Hum? Eu só queria...
- Como raios você acha que a Triage acha os magos?!
As mãos de Ilidia esmaecem, a magia para.
Jorge move-se mais rápido que qualquer ser humano, colocando inúmeros objetos em uma mochila – dele e da filha. Ele corre até o escritório e bagunça tudo, guardando mais coisas. Ele só para no momento em que Ino começa a soluçar repetidamente, ela pisca mais vezes do que o normal.
- Não, agora não! – ajoelhado na frente da menina, segura os ombros dela e beija a sua testa. – Por favor, aguente mais um pouco.
Boquiaberta, Ilídia estende a mão em direção a eles.
- Sai! – cospe, recusando a ajuda. Doze levanta, inquieto.
A maga fica de pé também, suas mãos tremem.
- Precisamos sair daqui, Jorge. Escute, eu...
- Você sabe do meu segredo, não é? Claro que sabe. Aposto que vasculhou minhas coisas. – Ilídia morde os lábios em resposta. – Não sabe nem mentir...
O soluço de Ino fica mais alto, lampejos vermelhos em sua íris.
- Só espero que não tenha usado magia para fuçar meu escritório.
No mesmo momento, entre furiosos trovões e relâmpagos, um grito estridente côa do lado de fora da casa. Jorge sabe que barulho é esse, o mesmo de quando uma tempestade horrível de granizo está se aproximando. A entranha dos dois é rasgada ao ouvir o esganiçado inumano arranhar seus tímpanos. E, então, para. A lareira apaga. O silêncio súbito os invade.
Jorge olha para Ilídia, pupilas extremamente dilatadas.
Um clarão cega os dois.
Ilídia está jogada no chão, com aquele seu pequeno mundo sendo destruído a sua volta. Cada piscada é lenta demais, acompanhando as notas de uma melodia tocada por um instrumento imaginário. Lampejos de explosões, fogo e madeira quebrada passa por seus olhos. A cabeça dos cachorros de metal jazem perto.
A dança da morte é entre Jorge, munido de uma arma elétrica, e a Triage, em sua forma espectral. Obviamente... a luta não dura por muito tempo. Um dos pássaros humanoides vomita uma magia desconhecida em direção ao peito do barman. A arma derrete e, por muito pouco, seu detentor também. Em notas agudas e suaves de despedida, a garotinha Ino se posta na frente de seu pai e recebe o ataque.
O corpo da criança tem um rombo no meio do peito. Veias e membros peculiares explodindo, jogados para fora de seu lugar. Jorge cai no chão totalmente derrotado. Nenhum som sai de sua boca semi aberta. O ataque da Triage para e um deles se aproxima dos dois – um abutre verificando a presa lentamente definhando.
Enquanto isso, um deles põe Ilídia de pé e tentar prender seus pulsos.
É... minha culpa. Uma lágrima de Ilídia escorre e toca o chão.
Por um momento, o tempo ali para. A música some.
Quando tudo volta ao normal, um impulso mágico sai dela, suspende todos da Triage no ar e os esmaga contra o solo bêbado de água da chuva. A luta acabou, aquela luta.
Não vou poder ajudá-la toda vez, querida. a voz da Oráculo invade sua mente.
Um dia, toda a ajuda dada indevidamente pela Oráculo seria cobrada – condenando-a a tragédias na mesma proporção para equilibrar as forças. Ciente dos sacrifícios e quase desfalecendo, se esforça para manter-se em pé e se aproximar das duas vítimas da sua ignorância
Jorge abraçava com força o corpo inerte da filha, cabeça baixa, silêncio absoluto.
Agora pode ver melhor, com certeza. São fios, partes metálicas, estrutura e esfera agora danificada completamente. Não eram veias, membros, sangue. Os olhos abertos de Ino estão vermelhos, exibindo a palavra “ERROR”. Ao lado da cabeça, um botão pisca em escarlate.
Ilídia aproxima sua mão do botão e o tira, Jorge não reage.
- Olá. – diz uma voz de dentro do objeto, feminina e artificial. – Seu modelo está com sérios problemas e precisará ser levado ao departamento de manutenção. Traga isto e a esfera DV-i7 à Babilônia rapidamente, para uma possível reconstituição do perfil salvo em nova estrutura caso as danificações forem irreparáveis. Tenha um bom dia!
A garota guarda os itens ditos, o botão e a esfera – aparentemente o coração do corpo robótico da criancinha.
Quieta, monta em Doze e cavalga de volta a Alter.
Não sou a pessoa certa para esse destino, vó.
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