A chuva abranda um pouco, mas a tempestade ainda habita seu coração. Do caminho daquele subúrbio ao centro de Alter, a mente de Ilídia está preocupantemente quieta. Cavalga em Doze de olhos fechados – de alguma forma, ele sabe para onde ela quer ir. Porém, sem planos, sem nada. Com tantas coisas no ar, o ambiente da cidade a fará pensar melhor – ver pessoas, ouvir algo parecido com o som da normalidade, movimento, dispositivos de automação mágicos... só por um momento.
Já está quase perto do palácio quando diminui o cavalgar. Os trotes daquele búfalo peludo parece o único som naquele lugar. Em contraponto, algo acontece na arena real, subindo um caminho sinuoso pelo pé da montanha. Pode ouvir bem baixinho urros e celebrações vindo de trás dos muros do palácio, na zona leste do território particular da coroa. Ao chegar perto, percebe os portões abertos. Ao entrar, sente o bafo quente e o cheiro de suor das pessoas sufocarem seu rosto.
Meu deus, quanta gente! pensa a menina.
O evento repentino reúne quase todo mundo que mora na capital, com inúmeras barraquinhas de comida e suvenires aqui e ali. Ilídia deixa Doze em estábulo irregular só por um momento, querendo investigar. Ombros esbarrando em ombros, espirros e comida voando por todo lado. As pessoas babam e urram a cada minuto, animais sedentos por algo que não percebe ainda.
Subindo na base de uma pilastra, finalmente consegue ver o centro da arena e todas as arquibancadas. Ali dentro parece o interior de uma flor, com várias pétalas desabrochadas. Em cada pétala, inúmeras cadeiras e elevadores mágicos que os levam para seus lugares. Flutuando no ar, onde todo mundo pudesse ver, espelhos brilhantes mostrando em zoom o evento. Quando Ilídia percebe quem está duelando, desce correndo a escadaria que leva aos bancos mais próximos da arena. Começa a suar e seus olhos a arder com a poeira levantada. Mesmo sentido tudo isso, reconhece perfeitamente um dos duelistas.
Ela para a alguns metros da cerca mágica, que mantêm a batalha a uma distância segura dos espectadores que estão nos assentos no chão.
Um deles é um homem forte e esguio, obviamente ágil e determinado em cada golpe. Pele morena ainda que claro demais para um karman, olhos puxados e uma boca fina e bem delineada. Há ali uma tentativa de barba e costeleta, nada que insinue um amadurecimento maior do que o resto do seu físico transmite. Sua camisa marrom escura está suja de areia da arena e levemente chamuscada. Em uma das mãos, uma espada grande e lâmina preta – as marcas deixadas pelo... que deveria ser a têmpera são claramente perceptíveis. Cristais negros e fumegantes ranhuras profundas no metal chamam atenção de imediato. Apesar de ser uma arma enorme, uma montante, rasga o ar com leveza e determinação. O outro duelista, Karth Hor, fica levemente desorientado toda vez que a espada passa sobre sua cabeça e tampa a luz do sol – como o rapaz portasse a noite em suas mãos, uma escuridão sedenta pela morte da luz.
Ilídia vê seu pai tentando por uma distância entre ele e o “Cão”, apelido gritado pela multidão. Ao que parece, sua estratégia inicial tinha sido diminuir o espaço entre eles para inutilizar a espada enorme e obrigar uma mudança do tipo de combate. Mas, pelo sorriso do “Cão”, nada adiantou. Forçado a se distanciar, tenta algumas magias médias – para não dizer “fracas” – com o cajado. Ela reconhece aqueles feitiços, algo nada usual para alguém da sua família. Muita luz, fogo e explosões, contudo, mais floreio do que dano efetivo. A única forma real de machucar alguém ali seria com a ponta do cajado e não magia.
O que está acontecendo? Ele pelo menos... devia ter trocado essas túnicas chamativas por uma roupa como a do adversário! Pensou a menina, colocando as mãos nas bochechas. O que papai está fazendo?!
De fato, o povo fica ensandecido quando Karth conjura explosões arrebatadoras e brilhos majestosos. Todavia, Ilídia reconhece que as reações de Jev são exageradas e falsas. Um teatro, dança dos tolos, pão e circo.
Um dos torcedores ao seu lado ri e enfia um cachorro-quente na boca dela, que quase vomita.
- Coma e se divirta! – grita ele, urrando e jogando saliva para todos os lados. Antes de se afastar, percebe uma batata babada perdurada no canto da boca dele.
Ilídia joga o cachorro-quente mordido no chão e limpa a boca com força.
Focada novamente, considera suas opções: jogar fora o que conseguiu até agora e voltar para sua vida feliz em Hor Murum; ou seguir a profecia e atirar-se no escuro, mas ciente de toda a verdade e fazer parte de algo maior. Sente-se cansada, exausta emocionalmente e triste. O desespero tenta tomar conta do seu corpo toda vez que relembra de Jorge e Ino, consequência do seu azar e natureza irresponsável. Contudo, há parte dela também curiosa e indignada com as coisas que descobriu. Se seu pai tem relação com criaturas como a Triage, então corre mais perigo em casa do que imagina. O mundo gira a sua volta e, por um momento, aquela menina é o centro de tudo.
Jev corre de um lado para o outro, tentando acertar aquele molenga do Hor. Infelizmente, ele é muito bom em se defender e não atacar – apenas fazer cena, para se mostrar para o público. Só um arranhãozinho, é tudo o que quer. A metros dele, na área exclusiva do rei, WoBegon boceja e apoia o cotovelo no braço do trono. Aquilo não está sendo o que imaginou, sente-se o mais tolo dos monarcas. Jev e Karth vê o descontentamento do rei. Os dois, por um momento engole seco – tédio de WoBegon facilmente se transforma em raiva e as consequências para os envolvidos geralmente é devastador. Contudo, o povo está em fúria. Por isso, talvez o resultado não fosse tão ruim.
Até que, então, o confronto para.
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