A plateia fica quieta, um tanto indignada.
Ilídia vê um soldado entrando na arena correndo, com as penas do capacete deitadas com a força do vento promovido pela sua correria. Os duelistas se acalmam e se reúnem. O soldado diz algo para os dois, que olham direto para o rei entediado. O monarca levanta, com um leve sorriso no rosto e acena para os dois. O “Cão” se afasta, apertando a bainha da espada.
Novamente, o mundo fica totalmente em silencio por um segundo.
O ar parece repentinamente mais elétrico, úmido. Não garoa dentro da arena, provavelmente obra de Karth Hor a mando do rei. Contudo, neste momento a chuva invade a arena e surgem os trovões.
Confusa e com medo, Ilídia se vira lentamente e caminha em direção a saída da forma mais discreta possível. Entre lamurias e reclamações da plebe, reza para que não percebessem sua saída. Inútil, porém. Aquela reação na arena tem tudo a ver com ela.
Karth começa a flutuar no ar, com seu cajado brilhando, cheio de energia. Raios descem do céu e atingem ao redor de Ilídia Hor. As pessoas gritam e correm para longe do epicentro do ataque – algumas se machucam ou se queimam. Parentes das vítimas choram perto daqueles que sobreviveram, os dos mortos estão incrédulos e em choque. Uma menina grita a dor da perda em um agudo agonizante, a baba e as lágrimas escorrem por seu queixo e maculam o cadáver carbonizado.
Os trovões aumentam.
- Ilídia Hor! – exclama Karth, com uma voz que parecia não pertencer a figura paterna que conhece, sob túnicas de magos de elite.
A garota não responde, sentada em um dos degraus. O olhar do “Cão do Rei” e o dela se encontram por um instante, até ele sumir de vez de sua vista.
Flutuando, o pai se aproxima lentamente da filha.
- Volte já para casa, pirralha ingrata!
Ele nunca falou assim comigo...
Balança levemente a cabeça negativamente.
Murmúrios do povo surge: “Quem raios é ela?”, “Os Hor tem filhos?”, “O que está havendo aqui?!”.
- Está jogando nosso nome no lixo, nossa missão, nosso dever! – seu cajado começa a brilhar novamente. – Ingrata, criança tola e petulante! Como pode ouvir uma traidora...
- Sangue... do nosso sangue! – ela responde de volta, gritando. – Ela está certa, somos uma farsa! O que há com a nossa família?! Como puderam...?
- Mentiras!
- Mentira? Eu vi! Acabei de ver! Olha o que fez com essas pessoas a minha volta... e a Triage!
Karth comprime os lábios, apontando o cajado em direção a filha.
- Já basta. Virá a força, então.
Uma luz elétrica e gosmenta explode do cajado, pronto para aprisionar Ilídia. E, quando o baque não a atinge, sente pelos roçar a pele de seu ombro.
- Doze! – exclama, estupefata. Sua forma estranha de cavalo se transforma lentamente na sua figura original, grande, alta, peluda, de pernas de aranha e urrando através do “poço das almas”.
Treze encara com coragem, de frente, os olhos do inimigo – ainda que não tenha olhos. Ele recebe toda a carga do feitiço, mas nada acontece – aparentemente... imune. A garota está protegida.
Mas não por muito tempo. Fuja! sussurra a oráculo.
Seu pai está em fúria, ela sente sua revolta. Rachaduras surgem no chão, profundas fraturas em volta daquela criatura e da criança – como um terremoto. As pessoas estão desesperadas e correm para longe, alguns corpos caem no precipício. O feitiço é tão forte que atinge alguns plebeus, que caem duros no chão. Ilídia olha para o pai, mas ele nem pisca. A magia chicoteia nas paredes e nas pétalas da arena.
Somos um monstro.
Ilídia movimenta os dedos e desenha rapidamente símbolos complexos no chão, que se expande e engloba ela e Doze. Seu pai percebe a fórmula de teletransporte e coloca todas as suas forças naquele cajado, rasgando pouco a pouco a própria luva perante o esforço. Faz muito, muito tempo que não utiliza tal intensidade de poder em algo. Sente-se vivo, realmente vivo. Por um momento, se Doze não estivesse ali, Ilídia acredita que ele a mataria – percebe uma microexpressão de prazer no rosto dele.
Antes que o teletransporte sumisse de vez com os dois, o “Cão” do rei está correndo pelo flanco. A multidão dá espaço vazio o suficiente para Ilídia vê-lo correr em sua direção. A espada negra se divide em alguns pedaços, contudo, sem necessariamente abandonar a estrutura ainda. Perante os últimos segundos, segura entre os dedos um dos pedaços da lâmina e os joga focando a cabeça da menina. Doze não teria como defendê-la a tempo, mal tem energia para sobreviver ao teletransporte abrupto.
Então, a realidade escurece para os dois.
Já do outro lado, nos fundos da propriedade do Antro dos Porcos, jazem a salvos. Ou, não tão a salvos assim.
Doze está esgotado, caído no chão.
Ilídia agoniza, com uma lâmina enfiada da clavícula ao seio.
Saindo da porta dos fundos está o homem que a menina vira no bar, armado e lindo embora cheio de cicatrizes. Ao ver a dupla exótica, sorri.
Aquele, pelo jeito, é o seu dia de sorte.
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