Callun era um lugar realmente diferente, antes da guerra.
Meg era uma figura peculiar daquele tempo, importante, mas pouco compreendida. Para ela, o ápice do desenvolvimento invum tinha acabado e a decadência já o habitava. As pessoas estavam apodrecendo. Karma sabia disso e dizia querer ajudar a resgatar a esperança, em troca de conhecimento. Mas Callun é um animal que convive com pulgas que já fazem aniversário. E, quando alguma ajuda aparece para livrá-lo dos parasitas, basta um passo em falso e ele morde o “bem feitor”. Fera arisca, duas caras. Aquela ilha só iria realmente mudar se a transformação fosse de dentro para fora. Não que... né, Karma fosse realmente boa. Sei lá!
A segunda trombeta aconteceu bem quando Margot Raliv havia entregado a versão beta de um novo robô que desenvolveu, em conjunto com o doutor Hun e a robocista Aasyla Kin. Fora encomendado por uma empresa chamada Babilônia, um tipo de robô que fosse capaz de receber a mente transferida de um ser humano – tão natural, bonito, forte e ágil quanto. Diferente da versão alfa, esse tinha capacidade para suportar e simular a lógica da mente humana inserida. Todo o maquinário já estava na empresa, só faltava a “casca” – o qual terminara naquele exato momento.
Cantando uma velha música dos seus antepassados, sorri e trabalha firmemente. Isso que é um clássico! reflete em relação a música. Uma relíquia retangular de madeira, com uma antena e botões estranhos toca a música em cima uma bancada de metal. Ao lado de Meg estava o robô Beta, que jaz inerte enquanto suas entranhas são remexidas. Desparafusa, arruma, parafusa, fecha, cola e dá tampinhas no belo maquinário.
- Está tão bonita... ah, odeio meu trabalho. – ela limpa o suor da testa. – Isso deveria ter um destino melhor, tenho quase certeza que irão deturpá-la.
Assim que terminado os últimos ajustes, embala o robô com uma caixa branca e fita dourada. Orgulhosa, a garota e o embrulho saem da oficina para a cidade.
Há muitos drones voando naquela noite, muitas lanternas ligadas e hologramas de placas de trânsito poluindo o espaço visual. Faz tempo que algo assim acontece, ao ponto de ninguém mais ligar a não ser ela. A garota de cabelos coloridos coça a ponta do nariz com o mindinho, tentando, ainda assim, segurar firme o pacote branco. Uma fungada com o nariz e vira a esquina.
A rua das nobres casas de Nuum reluzem branco e dourado, quase cegando os passantes. Mesmo de noite é impressionante a sensação de fortuna que aquelas moradias demonstram. O estrato rico da sociedade flutua lindamente entre as nuvens, sua plataforma aérea é tão linda no céu como as estrelas para quem vive em terra.
No final da rua, fica a poderosa e imponente Babilônia Group. Um edifício cilíndrico, um pouco mais robusto no meio e cheio de janelas. Meg quase ouve inúmeros circuitos funcionando e programas sendo codificados naquela enorme empresa. Tudo que pode ser feito com robôs é, claro, feito por robôs.
Parada em frente ao portão maciço de mármore da Babilônia, Meg tira um pacotinho do bolso, pega um doce e põe na boca. A entrega quase cai no meio desse processo, ao guardar de volta o pacote de Pocky.
- O senhor Arest chegará em alguns... segundos. – diz uma voz masculina no interfone, intercalando o anúncio com uma tosse asmática.
Assim que termina de engolir o doce, os portões se abrem. Aparece para recebê-la um rapaz de meia idade, de rosto pontudo e olhos esbugalhados atrás do óculos redondo.
Seu suspiro arrastado demonstra impaciência pura.
- Está atrasada, senhorita Raliv. – resmunga baixo, cruzando os braços.
- Ah, trânsito! Muitos drones e gente bonita passando, difícil chegar na hora. – diz ao entregar simultaneamente o pacote nos braços do funcionário da Babilônia, o qual quase fura a embalagem com o seu nariz pontudo. – Mas aqui está, linda e funcional.
- É bom mesmo.
Arest tira um cartão do bolso e passa sobre a pulseira de Meg, que registra o código e confirma o pagamento.
- Senhor, o pagamento foi a mais. – a garota mostra o pulso, revelando um visor criado pela pulseira holograficamente.
São mais dígitos do que eu imaginava. pensa.
- Ah, sim! Meu superior quer que você faça essa entrega, lá para o lado leste de Teehr. Só uma boneca de luxo para um contribuinte da classe mediana, o endereço consta no embrulho.
É um pacote muito parecido com o seu, porém mais pesado e robusto. Os robôs que entrega para esse tipo de serviço são relativamente leves – logo, seja lá o que for que há ali, é de extrema baixa qualidade para os padrões babilônicos ou armamento do exército? Provavelmente não a última opção. Pelo jeito, eles estão tentando formar novas alianças com o povo teehranos.
- Ainda hoje, mesmo? Eu estava a fim de sair e comer uma pizza.
Arest não responde e some para dentro dos portões, deixando uma garota emburrada e preguiçosa para trás. Meg estala a língua, decepcionada. Eu queria tem um carro... pensa consigo mesma, arrastando seus pés para fora dali. Meu deus, estou nem pedindo uma nave. Pode ser uma moto... um triciclo!
De volta para o centro da cidade nobre, Meg entra em uma cafeteria subterrânea enquanto procura o número de um taxi entre seus contatos telefônicos. Seu dedo desliza lentamente sobre seu pulso, onde vários números sobem conforme desce a lista. Após encontrar e combinar o local com o taxista, desliga a pulseira e ela pede um café.
Há muita gente bonita ali e isso a incomoda.
Faz tempo desde que o LCoF tinha sido implantado em toda a classe nuune e teehrana, mas ela não consegue se acostumar. As pessoas querem ser perfeitas e as Lentes de Correção Física, criadas por um segmento da Babilônia, suprem eficientemente essa necessidade. Todos vêm beleza em si mesmo como nos outros, uma ilusão mental promovida por essa tecnologia. Todos amam isso e, os que não o tem, perseguem esse sonho – alguns mushins, da classe subterrânea, são a expressão fiel da obsessão nesse quesito. Os “não abençoados” pelo LCoF são exibidos pela tecnologia como uma figura totalmente preta, com uma legenda hipócrita de “usuário indisponível” – um legítimo “Zé Ninguém”.
Contudo, Meg vê todos todos ali.
Composto essencialmente por nuune e alguns teehranos, um bando de bonecos de fantoche. Eles veem a perfeição e sentem a perfeição – as luvas LCoF, que simula superfícies de toque, estão até escurecidas pelo uso frequente. Ela percebe a casca com o olho direito e o miolo com o olho esquerdo, um com lente e outro sem. Ver o que eles repudiam é o seu trabalho, para fazer um eficiente robô de luxo. A maior parte dos produtos em circulação vão agora para Teehr, a superfície terrestre da ilha, no qual a classe média vive. Quase todos os nobres não se contentam mais só com a ilusão dos robôs comuns – sede insaciável de inovação, descoberta e prazer. Assim, desta forma surge o trabalho impecável de Margot Raliv.
Essencialmente uma artista, suas artes são lindas, mas só há demanda como mascarista robótica – o profissional que aproxima utopicamente a fisionomia e superfície dos robôs a dos seres humanos. Como arte pela arte não põe comida na mesa, se dedica somente a essa função. Enquanto seus robôs de luxo vendem que nem água, quadros e esculturas praticamente não saem da oficina. Pelo menos tem dinheiro para fazer o que ama, mesmo que para deixá-los mofar dentro do armário. E ali, quietos, mal fazem falta para a sociedade.
Será que Callun era realmente pior antes da revolução? pensa novamente naquele dia, saindo do café e entrando no taxi.
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