A passagem para Teehr é relativamente rápido.
Meg tem acesso exclusivo por trabalhar para a Babilônia, mas nunca chegou a ir além dos muros da capital da classe média. O táxi a deixa no prédio de transição. Ela assina os papeis agilmente, entra no elevador, desce, assina outros papeis e sai. Seus olhos demoram a se acostumar com o novo cenário – a desigualdade de renda e ostentação dos teehanos são absurdas. Sua avó dizia que parecia bem mais com o mundo onde nasceu, na qual presenciou a transição da televisão de tubo para as telas planas e sistema de cartas para redes sociais na internet. Depois que ela e seus pais faleceram, quanto mais testemunhas falecem, mais esquecem o mundo antigo. A geração deles é composta por poucos membros hoje em dia, fazendo alguns jovens tolos atualmente duvidar do passado. Queimam livros de história como acendem cigarros, fazem uma roda e acendem uma fogueira perto da caverna – convencidos de que sabem de tudo penas por ver as sombras geradas da luz do fogo no chão.
O carro que alugou chega a tempo e logo dirige em direção ao endereço, com o pacote no porta-malas. Seu peito começa apertar no momento em que vê onde é. Queria muito, muito, mas muito mesmo fingir que se perdeu e dar meia volta e sair. Seus dedos tremem quando destranca as portas e o porta-mala. Sua frio por muito tempo até ver ascender aquele casarão brutal.
A sua frente um muro negro se ergue, toda feita de canos de metal e placas de ferro quebradas, grudadas todas umas nas outras com um líquido denso desconhecido. As tochas crepitam com violência, como aconselhassem o visitante a ir embora – o que Meg quase fazia. Teehr é dominada por máfias e algumas zonas por gangues famosas – embora para a Babilônia, apenas consumidores por enquanto. Contudo, Meg nunca trata diretamente com o cliente, principalmente os desse tipo. Por que agora?
A garota tira o embrulho do porta-malas, tranca e estala a língua.
- Que merda... vamos logo com isso. – tenta encorajar a si mesma, apertando a caixa mais contra seu corpo.
O portão ergue-se imponente frente a sua figura pequena, como um pai furioso. Quer se encolher, mas não deve – aquele tipo homem mata mulheres fracas apenas no olhar. Meg pega um Pocky e deixa na boca, degustando lentamente o chocolate grudado no final do palitinho de biscoito. Ela gira e tenta ir embora perante um breve momento de fraqueza, porém, gira-se novamente e retoma a caminhada.
Uma mulher abre o portão e a recebe, posando sobre seus saltos gigantes e cheios de apetrechos. Anda normalmente, apesar do peso em seus pés.
- Srta. Raliv, está atrasada.
Meg engole o Pocky quase pela metade, tosse e dá um sorriso forçado.
- Ah, trânsito e muito sinal fechado... desculpe. – diz entusiasmada, entregando rapidamente o pacote, a mulher não recebe. – Está tudo certinho ai... o que foi?
- Meu mestre a espera. Vamos, ande rápido. – ela dá as costas para a visitante e entra na casa em passos largos. Meg corre para acompanhá-la.
Dentro, não consegue evitar de observa o jardim que há frente a mansão.
Os cachorros latem freneticamente para o visitante, espumando em seu próprio rosto e alongando os braços de seus captores ao puxar a coleira para pular. O jardim é feito de ferro, flores de metal retorcido, folhas de placas de aço e caminho de blocos de prata. Ao passar pelo batente da porta, uma piscada forte e o cenário todo muda.
Por dentro, a mansão é muito parecida com as casas nobres – minimalistas, ostentando ouro, prata, mármore e principalmente vidro. Contudo, uma versão obscura delas, decoração e cores complementares agressivas. Todos os quadros ali são em preto e branco, apenas silhuetas com olhos brilhantes. Meg deseja muito fugir dali, mas toda passagem é fechada à medida que passa de ambiente a ambiente.
No andar superior, em um escritório composto apenas de uma poltrona luxuosa e uma mesa de madeira, há um homem esperando a visitante. Seu rosto quadrado e inchado está vermelho quando se ergue para vê-las. Ele cruza os braços e enrola no dedo uma mecha do seu cabelo vermelho liso e longo. Seus olhos marcados com lápis se estreitam ao reparar em Meg e a analisa de cima a baixo.
- Porque Babilônia a mandou? Eu esperava alguém mais... – ele fecha os olhos, sorrindo. – Considerável.
Meg respira fundo e assume o personagem, mastigando um chiclete invisível e apoiando o pacote no quadril.
- Não faço ideia, mas acredito que Babilônia tenha uma ótima razão. Parece ter uma qualidade invejável, essa belezinha de robô – dá uma risada curta. – Se o senhor já não a tivesse comprado, eu mesmo a pegaria para mim. – diz dando um sorriso torto, ponto a caixa no chão.
- Marta, abra a caixa. – ele ordena a mulher dos saltos exóticos, que faz o mandado.
Ao tirar o laço e abrir o embrulho, um belo robô de aspectos femininos se apresenta diante de seus olhos. Meg teria feito um trabalho melhor, o que a faz criticar cada item da boneca de luxo mentalmente.
- Ligue-a.
Quando o robô é ligado e abre os olhos, cinco dos sete corpos naquele recinto caem no chão – Marta é um dos mortos. Meg sente como se a metade do Pocky, que havia já engolido, ainda estivesse no meio da garganta.
O mafioso coça o queixo, apoiando os cotovelos na mesa.
- Aah, uma mensagem... – ele olha diretamente nos olhos de Meg, que engasga. – Qual é o seu nome?
- M-Margot... Raliv. – responde, coçando a orelha.
- Ooh.. entendo... agora aquele bilhete faz todo o sentido... um presente... morde e assopra hein, essa Babilônia. Venha aqui. – ela não se mexe. – Esqueça esses corpos. Vem logo!
Meg desgruda os pés do chão e se aproxima dele, com a mão segurando o pacotinho de Pocky. Ele abraça os ombros dela e a puxa em direção a janela, que dava para o jardim traseiro.
- Foi você que colocou isso no centro da cidade, não é?
No jardim, alguns quadros e esculturas jazem jogados no chão.
Todos seus, não havia dúvida. Um dos motivos do porquê praticamente ninguém comprava a sua arte – anarquista e mórbido, prato cheio para encrenca. Já tentaram muitas vezes matá-la. Mas, depois que a rebelde começou a crescer sua reputação como mascarista e filha da nova diretora, atacá-la seria declarar guerra a Babilônia. Meg nunca achou que haveria problemas com isso – afinal, era protegida. Então, o que está havendo ali, de verdade? Principalmente depois de ter feito e entregado agora a pouco a Deva II.
- Eu... devo ter feito algo parecido, mas – algumas tossidas nervosas. – Fique tranquilo, senhor. Não sou mais artista, estou muito bem trabalhando com a Babilônia. – mente.
- Não minta para mim. – ameaça, apertando o ombro dela. – Uma artista como você não muda seus ideais de uma hora para a outra. Se não gosta do sistema e vive nele, nunca irá se esquecer de odiá-lo. – a mão que estava no ombro dela se encaminha para o pescoço. – Engraçado que tem um especialmente para a minha zona... eu a incomodo, srta. Raliv?
Meg dá uma risadinha, se preparando para fugir dali.
- Tem razão... não muda... e essa zona não é sua, é do povo.
Meg tira de dentro do pacote de Pocky uma espécie de agulhas Emei. Ela os rotaciona entre os dedos, deixando sem querer respingar algumas gotas de veneno, e enfia nos intestinos do mafioso. Nem ele ou ela mexem um músculo após o ataque surpresa. Meg foge pela janela apenas depois de sentir algo quente e vermelho escorrendo pelas agulhas, além do vômito.
Ao pular do segundo andar e cair no quintal, uma de suas pernas desloca e incha na hora. Mas, sem tempo para pensar na dor, aplica levemente a agulha sobre o inchaço e sai correndo assim que o sistema da região para de provocar dor.
Não foi tão difícil escalar o muro de placas de ferro, contudo, sua mão fica cheia de cortes no final do processo. Assim que a perna prejudicada encosta no chão do lado externo do terreno do inimigo, amortecendo a queda, corre aos tropeços até a rua principal e segue.
Meg sabia que na favela ainda tem chance, uma zona neutra perto daquele antro de maldade e ganância.
As ruas da pobreza teehrana estão abarrotadas de gente comprando, negociando, traficando, roubando. Lugar neutro em relação à região a qual saíra, mas a estranhas de Corwan – capital de Teehr – abriga inúmeras facções lutando entre si pelo monopólio da área. Inúmeros tipos de gente se encontram ali. Não há respiro visual. Um corredor de comércios e residências caídas aos pedaços acompanham os visitantes e moradores por todo o trajeto. Calor humano, cheiro de suor e sujeira gruda na pele de cada habitante. Dá para ver que, aqueles que tem o LCof, estão sempre rodeados de bajuladores e aproveitadores. Ricos, andam cercados de gente e entopem becos e lugares importantes da favela. Já aqueles com falsificados ou defeituosos, são comerciantes ou vendedores suspeitos. Uma vez abordado por eles, a vítima raramente escapa da compra – não só por serem incrivelmente persuasivos, mas por medo do que aqueles homens com olhos azuis danificados pudessem fazer se recusasse a oferta. Os que não tem nada são despercebidos, jogados pelas calçadas ou trabalhando em algo realmente desumano.
Meg tenta se misturar entre os pedestres, olhando disfarçadamente sobre os ombros para verificar se não está sendo seguida. Seu olhar encontra um ou outro brutamonte que tinha visto na entrada da mansão, mas logo os pede de vista. Em uma dessas verificações, ela não percebe e acaba esbarrando em um vendedor.
O sujeito a analisa bem e a segura pelo braço.
- O que uma garotinha faz aqui?... Isso é um LCof?! – exclama, agarrando os cabelos coloridos da garota e tentando arrancar o olho dela.
A baba dele, de sede pelo poder babilônico, escorre pelas bochechas dela e se encaminha por entre seus seios. Quanto mais Meg se debate para se livrar do vendedor, mais cria alvoroço e atrai olhares desconfiados. Logo, infelizmente, ouve seus perseguidores gritando para capturá-la.
Meg morde o pescoço do dele e empurra o agressor com força, arrancando um pedaço de carne e veias com os dentes. Os gritos coam por toda Corwan, mas ela não percebe – absorta na adrenalina do contra-ataque. Assim que ele se afasta, a garota empunha a agulha e corta o peito dele no meio. Todos perto da confusão sentem o cheiro de carne queimada e se espantam com a fumaça que sai do corte. O homem cai de joelhos, encharcado de sangue e engasgando com o próprio vômito.
Liberta, Meg corre para dentro do primeiro restaurante que vê.
Sentada em uma mesa qualquer, balbucia um pedido por qualquer bebida da casa.
- Estou tão... – até palavrões fogem de sua mente, conturbada com tanto sangue e veneno derramado em tão pouco tempo. Ela nunca quis matar alguém, porém as coisas nesse novo mundo sempre podem acabar assim. Enquanto no olho direito só via imagens de flores florescendo, o esquerdo via ruas embebidas de sujeira e carniça.
- Hummm – um copo cheio de algum líquido toma sua visão, sendo posto com pouca delicadeza sobre a mesa. – Me pergunto o que esse olhar significa?
A atendente sorri, cruzando os braços.
- Não é nada... – Meg segura o ar ao erguer o rosto e ver a aparência da mulher.
Há inúmeros problemas que advém do uso de LCof falsificados. Um único código, mecânica, composição química errada ou má compatibilidade ao usuário, pode desencadear mutações posteriores. Apesar do uso excessivo de maquiagem e um pouco de correção virtual, é possível ver todo o inchaço extremo das veias do lado esquerdo do rosto dela. Eles começam envolta do olho que tinha o LCof fajuto, desce pela bochecha e se espalham pulsantes pelo peitoral.
A garçonete suspira e senta no banco a sua frente, tirando uma mecha de cabelo incômoda da frente do rosto.
- Você poderia me ajudar com isso. – murmura, olhando envolta. – Recebo todo tipo de gente e sei reconhecer facilmente mascaristas quando me deparo com um. Aliás, ham, seus amiguinhos acabaram de entrar.
Meg pisca.
- Você é bonita. Não devia ter feito isso. – diz entre goles, ao tomar algo do copo e procurar mais Pocky no bolso.
- Não sou... talvez eu só precisasse de mais dinheiro. – responde roubando o copo da mão da garota, bebendo o resto. – Eles estão verificando o outro lado, não tardarão a verificar aqui.
- Nojento. – Meg coloca o biscoito na boca e morde a parte com chocolate, mais saboroso que o normal. – Então, o quanto quer para tirar esses caras daqui?
- Uma cirurgia. Quero que arrume isso no meu rosto.
- Eu não posso, não sou quem você quer.
- Não tente me enganar, garota. Estou desesperada.
- Então, como pode comprar isso? – aponta para o rosto inchado dela, comendo o resto sem chocolate do biscoito.
- Não importa. Sei que vocês, que trabalham fazendo robôs, tem inúmeros contatos. Sei que pode fazer isso.
- Não sei como isso realmente funciona, mulher. Sem contar que ninguém na sua situação sobrevive a uma cirurgia desse nível. Não acredito que será o primeiro caso de sucesso, desculpe.
- Você quer muito ser pega por esses caras, né?
- Nenhum cirurgião que eu conheço iria aceitar esse risco... nem é risco, é uma sentença de morte! – uma risada fúnebre sai por entre seus lábios. – Pense bem.
A garçonete se levanta e balança as mãos no ar.
- Hey, heeey! – exclama em direção aos brutamontes, que estavam quase saindo do restaurante.
Com sorte, eles demoram para perceber, dando tempo o suficiente para Meg pegar o papel da cintura da barman e imprimir as coordenadas no papel através de um recurso especial da pulseira. Assim, escapando rapidamente e discretamente pela porta dos fundos da cozinha.
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