Em frente a garagem da sua oficina, Meg digita a senha e entra. Aconteceu tantas coisas num mesmo dia que se sente como se já tivesse trabalhado o ano inteiro.
Ao jogar-se no sofá da sala, um par de mãos robóticas pousa sobre seus ombros e começa a doloridamente massageá-los.
- Ai! Jack! – ela encolhe os ombros. – Só está me deixando mais tensa! Pare.
- Ah, Jack, pare, pare... – o robô esguio murmura a si mesmo, levantando as mãos para o ar. – Jack isso, Jack aquilo... senhorita, por que não se livra logo de mim?!
Ele se posta na frente dela e aperta um botão, abrindo a parte da frente do seu peito. Bem no meio, uma orbe multifacetada – seu interior é um roxo profundo e exteriormente um laranja vigoroso quase vermelho. Ali está a origem de muitas coisas que a Babilônia criou, como o coração DV-i7 CORE. É uma forte de energia praticamente inesgotável e durabilidade quase inimaginável. Contudo, demanda manutenção com substâncias finitas desconhecidas pelo povo – apenas Heísia Frost sabia deste segredo, homem desaparecido há anos desde que inventara. Agora, somente o alto escalão especialista pode fornecer tais materiais para conserto.
Meg levanta rapidamente e fecha o compartimento.
- Enlouqueceu? Você sabe que faz tempo que não o levo para manutenção! Quer matar nós dois de uma vez?
- Senhora, eu sou muito responsável. Jamais faria algo que a colocasse em perigo.
- Imagino que não. – diz coçando uma cicatriz q tinha no ombro, emburrada. – Aliás, preciso que faça algo.
A garota arrasta seus pés cansados para o quarto, se jogando na cama cheirosa e macia. Quer tomar banho, mas não consegue arranjar coragem para fazê-lo. Ela abraça o lençol, sentindo-se arrepiar ao afunda o rosto nele.
Parece que não durmo há anos!
- Do que precisa? – pergunta Jack, deitando a cama também.
Robô mais folgado que fui arranjar... pensa consigo mesma, virando de barriga para cima.
- Marque uma visita à Clínica Kin, preciso de uma consulta com a doutora Aasyla Kin urgente. Seja insistente ao agendar na primeira hora disponível da manhã, informe-os que é uma velha amiga. – Meg coça o olho, bocejando. – Também quero chame o detetive aqui, à noite. Quero ver se ele descobriu mais alguma coisa sobre o meu suposto irmão e as saidinhas do meu velho falecido pai.
- Quer uma massagem nos pés também? Não sou seu escravo, Margot.
Ela vira de lado e semicerra os olhos, contrariada.
- Agora. – Jack se levanta na mesma hora e some em direção ao fundo do galpão, procurando realizar as ordens dadas.
Aquela noite passa rápido, rápido até demais.
As centenas de alarmes já programados tocam, mas Meg desliga todos eles. Jack não se intromete, afinal, aconteceu muitas coisas com ela em pouco tempo. Quando finalmente acorda, é surpreendentemente tarde e o robô prepara um prato de comida. A clínica marcou a “consulta” para as 18 horas e levava pelo menos 180 minutos dali até o norte de Nuun. Callun é uma ilha bem grande, que luta há tempos para ser considerada continente.
Aasyla Kin é uma renomada médica, especializada em componentes robóticos e inteligência artificial. Praticamente formada em duas profissões, medicina e tecnologia, trabalhou com a Babilônia por anos. As duas fizeram parte de um grupo de profissionais, absurdamente bem pagos, para desenvolver o projeto DEVA. A maioria hoje estão mortos ou desaparecidos. A clínica é sua nova empreitada, depois de sair pacificamente da empresa.
Meg nunca se cansou de se surpreender com a arquitetura daquele lugar, similar a uma semente desabrochando.
- De “velha amiga” você não tem nada, Margot. – diz Aasyla, sentando-se na poltrona da sua sala de consulta. A amiga senta na cadeira do lado oposto da mesa, cruzando os braços atrás da cabeça por um momento.
- Tenho quase trinta, mas me sinto com o dobro da idade.
Os lábios se contraem em resposta.
- Fiquei sabendo do que houve com o cabeça dos traficantes de Corwan, Jack contou.
- Aquele fofoqueiro! – exclama, bagunçando o cabelo com uma das mãos. – Eu devia mandar reconfigurar esse A.I. – Meg pega um Pocky do pacote no bolso e mordisca.
- Alguém tem que cuidar de você.
Um silencio tenso habita a sala por um momento.
- Estou bem, é o que importa.
- Esqueceu quem é a Babilônia, Margot? Encomendaram a cabeça daquele cara... o babaca se candidatou a ministro interino e estava ganhando. Certeza de que não queriam que o candidato deles perdesse. Espero que não tenha deixado rastros seus lá.
- Ele havia dito que era uma mensagem. O pacote que eu entreguei só matou alguns capangas, não ele.
- Então, quem o matou?
- Eu.
Aasyla leva as mãos a sua testa, respirando fundo.
- Acho que era um aviso, mas... acabei fazendo o serviço. Ele me atacou, só me defendi. Você conhece minha trajetória artística em Corwan. Caso contrário, eu já estaria morta. – e retira outro Pocky. – Foi direto e limpo, não é para ter nada meu lá. A Babilônia não vai precisar me apagar.
- É melhor rezar... Enfim, por que veio aqui?
- Para sair com vida de lá, acabei me escondendo em um restaurante. Além da minha perna que dói muito, estou devendo um favor para a mulher que me ajudou. Uma cirurgia.
- Ah – a doutora encosta na poltrona confortavelmente, de braços cruzados. – Dívidas, só podia ser. Quando?
- Não sei, mas pedi para que viesse ao nosso antigo apartamento. Daqui 2 dias, à noite. Ainda está desocupado, desde que nos separamos. Espero que não se importe. Ela jamais poderia vir a Nuun.
- Meu marido não pode nem sonhar que vou lá. – coça a cabeça. – Só faço isso porque temos uma história juntas, Meg.
- Ele ainda acha que você gosta de mim?
- Desde quando ciúmes é racional? Aliás, falando nisso... – Aasyla olha por cima dos ombros da ex, verificando se a porta está mesmo fechada. Ao voltar seus olhos, seus lábios estão contraídos nos cantos. – Jack me ajudou a decidir.
- Sobre o que?
- Fugir. – sua voz é grave e determinada. – Aquele traficante de Corwan pode ter morrido, mas ainda há muitos outros e que se candidataram. Seja quem for que ganhar, o futuro não está se mostrando muito promissor. Vou levar minha família para longe daqui. Já fiquei com medo por meus filhos quando saí da Babilônia, que fizessem queima de arquivo.
- Mesmo? Hum, desejo sorte, porém... o que Jack tem a ver com isso, exatamente?
- Venha conosco.
- O que? – Meg ri imediatamente, colocando a mão sobre a boca. – Seu marido vai enfartar.
- Ele concordou.
- Sério?
- Um pouco relutante, mas sim. A situação é grave, tem muita gente tentando sair de Callun enquanto há tempo. Karma está quieta demais. Aquele atentado, culpam-nos. Há humores de que vão mandar os magos de elite.
- Está exagerando. Eu não ouvi nada.
- Você não sabe as pessoas que recebo aqui... condição da Babilônia para nos deixar em paz. Fuja conosco, daqui há algumas semanas. Vamos para uma cidadezinha esquecida em Puma. Será em um avião clandestino, tudo bem discreto. Há alguns figurões embarcando também.
Meg balança a cabeça.
- Não, eu não posso. Mandei investigarem o que aconteceu com a minha família, finalmente encontrei um detetive que descobriu algo. Tenho que ficar.
- Será vale a pena, Meg? Se as coisas desmoronarem como acho que vão, não vai querer presenciar a póstuma Callun.
- Apenas suspeitas, nada disso pode acabar acontecendo.
- Está otimista demais.
- E você pessimista demais, Aasyla. – estala a língua. – Nós terminamos o namoro muito por causa disso.
O silencio tenso e constrangedor volta.
- Apenas pense bem. Me ligue se mudar de ideia. Se puder ir agora...
Meg se levanta, fica parada por um tempo. Falei demais. E vai embora sem olhar para trás de novo. Não vou desperdiçar essa chance. Se eu tiver um irmão, vou achá-lo nem que ele esteja morto.
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