(Inspirado na música "Atlantis" do Seafret)
Os pássaros voam de suas árvores enquanto me aproximo do campo aberto. Ela está deitada na grama olhando para o céu meio laranja, as últimas luzes do sol tocam sua pele, quase a fazendo brilhar. As memórias do dia anterior voltam a minha mente, como uma tormenta. Lembrando-me das palavras trocadas antes e durante a tempestade.
— Eu vou com você para onde for, meu lar é você.
— Meu coração sente o mesmo, meu amor.
Essas eram palavras que jamais retiraria, jamais esqueceria, mas as que vieram durante a tempestade...
— Eu não ligo se eles não aprovam. Não ligo se não deveríamos estar juntas, o que eu sinto é o que importa.
— Eu ligo. Duas mulheres juntas jamais seriam aceitas.
— Vamos fugir, então.
— Não posso. Minha família está aqui.
— Eu poderia ser sua família, como você já é a minha.
— Não é assim que funciona.
Nós nos afastamos depois disso. No sentido literal e figurado. Paramos de nos falar e fomos cada uma para um canto da cidade. Longe do olhar uma da outra e longe dos olhares estranhos de quando estávamos juntas. Nunca fizemos nada para saberem o que realmente acontecia entre nós duas, mas eu acreditava passarmos tanto tempo juntas que começavam a desconfiar, principalmente depois que recusei a proposta de casamento de um dos lordes da pequena cidade. Eu não sei se algum dia, poderiam aceitar mulheres juntas, mas eu não me importaria de fugir junto a ela todas às vezes que descobrissem que somos mais que duas amigas. Não me importaria nem mesmo de ter que viver no meio da floresta se isso significasse ficar com ela pela eternidade.
Deito-me ao seu lado. A grama verde faz cócegas em meus braços descobertos pelo vestido longo. Escuto um suspiro vindo dela e fecho meus olhos. Sabemos ser complicado, sabemos que ela tem muito a perder, ao contrário de mim que já perdi tudo. Ou quase tudo.
— Eu sinto muito por não conseguir nos salvar… — Mais um suspiro. — Mas somos como Atlântida, destinadas a cair.
— Sabíamos que estávamos construindo isso em terreno movediço e poderia afundar a qualquer momento. Mas na minha cabeça e no meu coração… — É dos meus lábios que agora sai um suspirar. — Por que isso precisa acabar?
— Eu não sei, talvez eu não tenha sido feita para amar.
Antes que eu possa responder, escuto barulhos vindo do Norte, direto do caminho para a cidade. Passos vindos em nossa direção. Levanto-me e a puxo de volta para entre as árvores, nos mantendo escondidas no início da floresta que todos tinham medo de entrar. Sua respiração está acelerada pelo susto e posso sentir e ouvir seu coração acelerado contra meu peito enquanto nos escondemos atrás de uma das árvores enormes. Nossos olhares se reencontram, e posso ver o medo em seus olhos.
— Você pode amar a qualquer um, porque foi, sim, feita para amar. — Deixo um leve selar em sua testa. — E ainda podemos fugir…
— Por favor, agora não.
Concordo com a cabeça e fecho os olhos por alguns segundos. É o suficiente para saber que quem passou por ali já havia ido embora, aviso a ela e digo que ela poderia voltar para a cidade sozinha, sem se preocupar. E assim, novamente nos separamos.
Não deixo de pensar que talvez tenhamos nos conhecidos no momento errado, ou talvez na época errada. Para quem vivera tantos anos, esperar mais alguns não deveria ser nada, mas estava começando a ficar impaciente com tudo. Eu poderia ter a eternidade em mãos, mas ela não. Em alguns anos ela envelheceria até parar de respirar, mas ela mantinha a ideia, nada parecia mudar em sua mente. Parecia presa naquela ideia que seus pais e aquela sociedade arcaica puseram em sua mente. Pensando nisso, decidi que esperaria apenas mais alguns dias, talvez um mês, e se ela não mudasse de ideia, sairia dessa cidade me mudando para próxima, como sempre fizera até conhecê-la. Eu tentei, juro que tentei levar esses pensamentos a sério, mas a cada dia que passávamos juntas, ela parecia dar-me mais esperança de que mudaria de ideia.
Exatamente como naquele dia, o dia que tudo mudou. Com a cabeça deitada em suas pernas, ela acariciava meus cabelos curtos. Estávamos no campo aberto, na grama que fazia cócegas nos meus braços, assistindo ao sol se pôr, como fizemos quase todos os dias durante esse um mês que se passou. Ela cantava para mim, enquanto eu tinha meus olhos fechados e minha audição focada em sua voz. Parecia existir apenas nós duas no mundo, nada mais. Abri meus olhos para contemplar seu rosto bonito e seus olhos brilhando enquanto cantava e o sol fraco refletia ali. A mulher mais bela do mundo estava diante dos meus olhos e sua voz suave e o carinho que fazia, faziam-me querer ficar e jamais a deixar.
Quando os pássaros passaram voando ao céu acima de nós duas, foi quando tudo mudou.
Eles não estavam só passando, estavam fugindo. Com a minha falta de atenção no mundo a nossa volta, não pude ouvir os muitos passos. Prestando atenção em sua voz melodiosa, não ouvi nenhuma das pessoas que vieram em nossa direção com diferentes armas em mãos. A primeira coisa que sentimos foram as pedras, com uma acertando bem na cabeça dela. Não foi forte o suficiente para apagá-la, mas a deixou tonta. Segundos depois vieram as lanças, estavam afiadas e passavam rapando por nossas peles, pela nossa sorte e azar deles, nenhuma chegou de fato a fincar. Tudo acontecera muito rápido, mas quando percebi o que estava acontecendo, levantei-me de suas pernas e a puxei dali, precisei pegá-la no colo e corri floresta adentro. Eles não nos seguiram, mas continuei correndo até ter certeza de que estava longe o suficiente para nem mesmo conseguir ouvir seus corações. Quando paro, a coloco no chão, e é nesse momento que vejo a flecha fincada próxima de seu coração. Ela ainda respira, seus olhos estão abertos, mas posso ouvir seu coração mais fraco, parando lentamente.
— Estou com medo, meu amor. A dor está deixando-me ainda mais assustada.
Sua voz é falha, sua respiração mais ainda. Seus olhos começam a fechar lentamente.
— Fica comigo, amor, não posso perder tudo que já conheci e amei…
Uma de minhas mãos está em sua bochecha, acariciando e quando sinto seu coração diminuir ainda mais os batimentos, levo meus lábios até seu pescoço e com as minhas presas para fora, mordo bem acima de sua artéria. O veneno percorre seu corpo com rapidez. Seu coração para de vez e minha mão continua acariciando seu rosto enquanto sinto sua pele ficando gélida como a minha, sua respiração já não existe mais. Devagar seu coração pulsa, fraco, leve, o suficiente para mantê-la meio viva. Seus olhos se abrem assustados e arregalados. Preciso de um tempo para explicar o que aconteceu e que agora ela era como eu, uma vampira. Pensei que ela não iria gostar, mas sabendo que as pessoas em que confiava eram capazes, estava agradecida de agora poder viver comigo em qualquer lugar ou época. E assim aconteceu, juntas de lugar em lugar, época em época. Porque teríamos a eternidade para estarmos juntas…
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