Água… A correnteza do rio leva as memórias e as histórias do universo consigo, enquanto suas filhas nadam junto, fundidas a água, como uma. Fazem parte dela, são ela. Às vezes o vento as acompanha, contando os segredos e mistérios do mundo. Casualmente, descobrem mistérios através dos homens que por ali passam, para isso, tomam forma de algo parecido a mulheres, com peles com o tom cinzento que brilham a luz do sol. No entanto, apesar de parecerem humanas, não se engane, porque mesmo sendo puras e calmas, são ferozes quando necessário, sem temer seu alvo ou inimigo.
Observar os animais que passavam por ali, bebendo água em seu rio e seguindo suas vidas, era costume do dia a dia de Mira, não tinha um dia ao qual ela não fazia. Os poucos humanos que se aventuravam por ali também, usavam do rio para saciar sua cede; a cidade mais próxima ficava há alguns quilômetros de distância do rio que estava no meio de uma floresta densa. A maioria estava na floresta para caçar e o rio era a salvação. As ninfas não costumavam permitir que se banhassem ou sujassem seu lar, controlavam a água, causando redemoinhos ou agitações fortes o suficiente para manter os medrosos e corajosos longe de suas águas. As irmãs de Mira costumavam dizer que alguns caçadores eram belos e às vezes conversavam com alguns deles. Não eram proibidas de tal ato, mas sempre mantinham cuidado e atenção. Ela optava por manter distância dos humanos, preferia focar nos animais e nas outras ninfas que passavam ali, até mesmo o vento que falava por entre as árvores era melhor que aqueles homens.
Há alguns anos, uma de suas irmãs havia sumido. Ninguém sabia o que tinha de fato acontecido, mas ouviram pelo vento que havia uma ninfa entre os humanos. Elas não acreditaram logo de cara, porém, o vento trouxera outra informação, uma lenda. A lenda dizia que se uma ninfa amasse um humano poderia tornar-se um para viver com o amado. Tendo conhecimento disso, elas passaram a acreditar que ela havia se apaixonado e fora viver com o tal humano. Mira costumava dizer que jamais se apaixonaria por nenhum daqueles homens que passavam por ali. Ainda assim, mesmo com ela amando o rio, amando o seu lar, ela jamais negaria, seria uma aventura, uma sensação diferente sair do rio e poder correr com animais e sentir o vento. Mira ama quando o vento passa forte por si. Ainda assim, nenhum humano ali havia chamado sua atenção para tal e ela estava feliz assim.
Mas tudo muda quando Mira a conhece. Era diferente dos outros humanos, parecia mais consigo e sua beleza poderia se comparar as Deusas assim como a sua. O brilho nos olhos dela, quando viu o rio límpido e bebeu da água, encantou a ninfa de uma maneira surreal. Sua pele parece brilhar com a luz do sol e seus cabelos secos voam com o vento passando. Era diferente, era novo. A sensação dentro de si, era algo que jamais sentira antes.
A desconhecida se senta no chão, apoiando-se em uma árvore e fechando os olhos. Sua respiração, antes acelerada, vai gradualmente se acalmando. Seus músculos parecem relaxar em pouco tempo. Mas voltam a ficar tensos quando um barulho vindo da água é ouvido. Os olhos se abrem já arregalados e atentos, prestando atenção ao redor. Seu olhar segue para o rio, mas não há nada ali, talvez o vento, ou algum peixe passando.
Mira analisa cada parte de seu rosto para depois passar pelo corpo da humana. Seus olhos são de um tom escuro que parecem brilhar com a luz do sol, seus cílios grandes encostam em suas bochechas redondinhas quando ela pisca, parece em câmera lenta para a ninfa. Seus lábios cheios estão entreabertos e úmidos pela língua que passa por eles. Ela realmente assemelha a uma Deusa. Ou talvez até uma ninfa. Sua beleza é etérea, seu corpo tem curvas marcantes, e ao tempo que aparenta delicado, também parece forte e resistente.
Antes que a humana possa fechar os olhos novamente, a água do rio ao seu lado volta a mexer, fazendo-a levantar-se rápido em um pulo. Com uma das mãos ela puxa seu arco e com a outra, uma flecha, entrando em posição, pronta para atirar a qualquer momento. Ela respira fundo e antes que possa soltar o ar, a ninfa surge na água a sua frente à fazendo prender o ar que puxara. A humana congela com a visão. Ela conhece as histórias, mas ver na sua frente é diferente de imaginar, e nada do que imaginara jamais poderia ser comparado com a realidade. Se algum dia ela achava ter visto uma pessoa tão linda quanto, estava enganada. O ser a sua frente barrava qualquer beleza mundana, qualquer ser já visto pelo mundo ou por seus olhos. Ela estava deslumbrada com cada detalhe; os olhos grandes e claros, quase brancos, a pele inumana acinzentada, os cabelos longos e pretos, totalmente molhado. Completamente irreal.
Elas trocaram apenas olhares, e alguns suspiros, vindo da humana, no primeiro encontro. Contudo, ela fizera questão de voltar todos os dias, conversar, conhecer e entender, mas em todos os dias que se passaram, apenas ela falava. A humana não desistiu, ela queria realmente saber mais sobre a ninfa, queria ouvir sua voz e saber se era tão bela quanto ela, saber o que ela conhecia do mundo. Ela precisou de esforço, mas com o tempo conseguiu fazê-la falar. Ela ficou animada quando finalmente conseguiu, após dias tentando.
— Sinto que em todos esses dias eu não me apresentei adequadamente. Eu sou a Anysia. — Um sorriso fora oferecido por ela.
A ninfa a analisou mais uma vez, como todos os outros dias, mas dessa vez seus lábios movimentaram-se pela primeira vez.
— Mira. Você é diferente dos outros humanos. É mais bonita.
Sua voz era suave, baixa, calma. Era linda, tinha um gosto doce para a humana. Seus ouvidos sentiam-se satisfeitos com o som.
— Mulheres realmente são mais bonitas — um riso leve deixou os lábios da humana, o som feito deixou a ninfa curiosa, mas contente, o que a fez sorrir. — Oh! Eu te fiz sorrir!
Agora ambas sorriam uma para outra, e tentando manter assim, Anysia manteve o diálogo vivo entre elas durante toda a manhã e só deixou a floresta quando não aguentava mais de fome, mas prometera voltar no dia seguinte. Assim ela fez. Todos os dias, sem faltar um, ela sentava-se a beira do rio para conversar com a ninfa e conhecê-la. Cada dia que passava às duas se encantavam mais uma com a outra. E como todo clichê, apaixonaram-se sem nem perceber. A primeira a notar o sentimento fora a humana, mais familiarizada com os sentimentos humanos. A ninfa, por outro lado, não sabia dizer o que acontecia dentro de si, não sabia o que era o frio na barriga antes de vê-la, o peito agitado quando a via de longe e muito menos quando tudo parecia parar quando ela chegava perto e sorria para si.
— Eu nunca senti frio, mas antes de você chegar, sinto bem aqui na barriga, meu peito parece que vai sair voando. Mas quando você chega, tudo para e o seu sorriso me deixa muito feliz. Eu não sei o que é tudo isso, mas parece bom.
É o que a ninfa diz depois de alguns meses de encontros. O sorriso de Anysia aumenta a cada palavra dita por Mira. É sincero, quase inocente, um sentimento puro. Com calma e ternura na voz ela explica, ou tenta.
— Isso é paixão. Quando você gosta muito de alguém, mais do que deveria. Mas no fim é uma sensação tão boa que você só quer ficar sempre ao lado dessa pessoa, até amar tanto ela que nada mais importa.
Mira sabia o que era paixão ou amar. Porque ela sempre escutara as histórias contadas pelo vento, histórias de amores grandiosos que aconteciam entre os humanos ao redor do mundo. Mas jamais pensou que um dia poderia sentir, nunca parara para realmente tentar entender como aquilo poderia acontecer. E quando ela menos esperava, ali estava ela, apaixonada por uma humana. Ela perguntava-se como aquilo poderia dar certo, duas pessoas de mundos diferentes. Isso, até o vento sussurrar em seus ouvidos, lembrando-a da lenda que contara e de sua irmã desaparecida. Ao pensar no que escutara, ela acredita que precisa apenas amar Anysia e pedir aos Deuses e tudo dará certo.
Errado. Infelizmente, ela deveria se apaixonar por um homem. Nunca uma ninfa havia se apaixonado por uma mulher. Isso não as faz desistir, não ainda pelo menos. Anysia diz que poderia se mudar para a floresta, assim poderiam ficar mais próximas, mesmo que não pudessem se tocar, pelo menos se veriam todos os dias a qualquer hora do dia. Além de ela mesma pedir aos Deuses a aprovação para que pudessem ficar juntas.
Alguns meses passam quando ela finalmente termina a casa; uma cabana confortável para passar o resto de sua vida ao lado de uma ninfa que nem sequer poderia tocar, mas amaria a cada dia mais. Querendo provar isso, todas as manhãs, a humana sentava-se a beira do rio, sempre colocando os pés para dentro da água, pois, essa fora a forma que achara de estar mais perto de Mira, ela dizia que até parecia estar tocando-a, do modo mais puro e sincero. Esse tempo que passaram juntas, com tanta proximidade, só serviu para criar um vínculo ainda maior entre às duas. Tudo que sentiam, tudo que compartilhavam, era puro, genuíno e palpável. Ainda assim, Mira ainda era uma ninfa e Anysia humana. Mas a história muda quando é o rio, pai de Mira, quem pede aos deuses que abram uma exceção para sua filha e a deixe viver esse amor. Após meses as vendo de perto, depois de semanas da humana fazendo de sua rotina elogiar e amar a ninfa, ele não permitiria que sua filha sofresse mais.
Na manhã seguinte ao pedido, quando Anysia deixa sua cabana pronta para sentar-se perto ao rio, há uma mulher sentada em seu lugar de sempre. Ela caminha a passos lentos, o coração acelerado. Escutando o barulho dos passos, a mulher vira o rosto e quando os olhares se cruzam, o mundo parece parar, tudo parece como na primeira vez que se viram. Mira levanta-se e corre na direção da outra, a abraçando apertado, quase derrubando-as no chão. Anysia continua parada em choque, mas quando escuta a risada da outra, abraça-a tão apertado quanto. Minutos de abraço depois, elas se afastam minimamente, o suficiente para ainda estarem se tocando e sentindo a respiração uma da outra. A humana leva sua mão a bochecha da ex-ninfa e enquanto acaricia, aproxima-se selando seus lábios. É a primeira vez que ambas fazem isso, mas as bocas parecem se conhecer a vidas, parece certo. Os corações estão calmos e as mentes em branco. As testas coladas e as respirações sincronizadas. O mundo agora se encaixa, o mundo agora é o melhor lugar para se estar. Elas podem finalmente se tocar. Elas podem ficar finalmente juntas.
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