Ainda consigo sentir o vento no meu rosto, a brisa fresca de final de tarde. O cheiro de maresia e o barulho das ondas se quebrando. Era a melhor vista que eu tinha, era de longe a maior obra-prima que alguém poderia pintar, e o melhor: era real. 

Minha mãe veio me visitar ontem, tenho certeza, pois, ouvi sua doce voz dizendo que tudo ficaria bem, mas não consigo me lembrar de seu rosto, tem tanto tempo que não há vejo, desde que me trouxeram para cá… foi quase a força, eu acho… não importa. O que importa é que me prometeram um passeio novo amanhã, diferente. Estou ansioso para conhecer novos lugares nessa viagem incrível. 

Eu costumava ter alguns colegas de quarto. Eles eram interessantes, mas sempre diziam que não deveriam estar ali e precisavam ir embora, então os homens vinham buscar um por um e levá-los. Eu não os via mais, mas tudo bem, o importante era eles aproveitarem a viagem. Um deles, inclusive, disse querer conhecer o mundo, no dia seguinte levaram ele desse lugar, espero que tenha conhecido mesmo. 

Enquanto isso, eu não preciso do mundo. Minha casa e minha cidade são o suficiente. Talvez não seja ruim conhecer alguns outros estados, mas gosto do meu lugar. Gosto da vista e sinto falta dela. Aqui do quarto não dá para ver muita coisa. A janela desse lugar é minúscula e tem grades, parece um navio velho, mas se eu estivesse no mar eu estaria enjoado agora. Não é perfeito, mas parece uma aventura. 

Às vezes a luz do sol entra e bate no meu rosto e até parece que estou vendo o pôr do sol lá fora. Às vezes também consigo ver a lua, ela continua linda e costuma deixar o quarto iluminado a noite, parece até que é a única iluminação. Gosto assim, porque me deixa mais próximo da liberdade. Tem um tempo que não me sinto livre, mas com a viagem se aproximando, sei que vou. 

Minha mãe veio me visitar de novo, ela parecia mais nova dessa vez, quase igual aquando eu era criança, disse para mim que sentia minha falta, mas nem estou aqui há tanto tempo, certo? Suponho que mães sempre vão sentir saudade dos filhos. Eu disse para ela que voltaria logo; ou que pelo menos nos reencontraríamos rápido. 

É verdade o que dizem sobre se sentir sozinho mesmo rodeado de pessoas. Aqui costuma estar quase sempre silencioso, o barulho que escutamos ou vem de fora, ou dos homens de uniforme. Não conversamos por aqui, eles não gostam de nos ouvir, é estanho quando tentam nos calar. 

Ontem pareceu ter uma confusão do lado de fora, tinham muitas pessoas gritando, parecia até festa. Preferia estar junto, no calor do momento e gritar direto. Mas estava aqui, nesse lugar feito prisão… tudo bem, às vezes eu até gosto do silêncio, porque me faz pensar. Lembrei até da infância e de como era bom não ter preocupações como tenho agora. 

Preocupação… Minha família deve estar preocupada comigo, já são tantos dias sem me ver, sem saber como ou onde estou. Será que eles têm notícias minhas? Será que me procuraram? Mal lembro seus rostos. 

Tudo parece tão distante ultimamente. Como se eu estivesse em isolamento. E só o que tenho comigo são memórias, dores e cicatrizes. As dores demoram a passar, mas sei que um dia passa. As cicatrizes vão ficar, serão novas memórias, mas nem todas são boas. Tenho uma, no braço, e essa é ótima boa memória, foi quando meu pai estava me ensinando a andar de bicicleta e de repente perdi o controle; doeu, mas passou; ficou cicatriz, mas também a lembrança boa. 

Ficar aqui por tanto tempo me deixou com novas marcas, acredito que algumas dessas serão permanentes, mas tudo bem. Dizem que tudo pode virar história para se contar, imagino que essa eu possa, só talvez devesse deixar algumas partes de fora, como quando usaram aquele pedaço de madeira… 

O tempo parece meio louco aqui dentro, ele passa rápido, mas passa tão lentamente. Sinto que às vezes ele parece parar. Não há um relógio na parede, mas consigo ver o sol nascer e se pôr, assim sei em qual momento do dia está, mas jamais a hora certa. Com o tempo passando, sinto que estou preso por uma corda, ela está prestes a arrebentar, mas o que ela prende, onde prende? 

Hoje chegaram mais alguns convidados, eles parecem assustados, deveriam mesmo, ninguém gosta desse lugar. Eu não gosto, mas não é como se eu pudesse sair, ninguém pode. Exceto se eles permitirem. Eu tentei uma vez, sair. Não deu certo. 

Sinto mãos me carregando, meus pés estão arrastando no chão, não preciso andar por aqui. Eles me carregam sempre que preciso, sinto como se fosse da realeza. 

Oh! Finalmente estão levando-me para a viagem! Espero que seja dive… 

— Cala a boca detento!