Marcos passou a noite extremamente ocupado, o sol já raiava no horizonte quando percebeu que, definitivamente, nenhum daqueles diagramas fazia o mínimo sentido. Na verdade, o problema era um pouco pior; nenhum dos diagramas poderia fazer o mínimo sentido. O problema em se procurar nada é que, geralmente, não se encontra muita coisa, sem contar o tempo perdido em uma tarefa inútil.
Os diagramas não podiam estar corretos porque, se estivessem, a situação seria muito pior do que qualquer previsão pessimista. Diante de seus olhos, centenas de milhares de números cintilavam, mudavam de posição, recalculavam, ficavam vermelhos e eram transferidos para caixas de diálogo em algum canto mostrando que havia um problema. Após a terceira revisão de código, considerando certos algoritmos de medição estatística, ele percebeu tristemente que provavelmente não havia nada de errado com sua simulação.
A Fuga da Piedade era uma das mais proeminentes em termos de crescimento e desenvolvimento. Devido à sua incrível ascensão no cenário nacional, era o foco de várias reportagens e já tinha um contingente de mais de 80.000 pessoas, enquanto dez anos atrás, era apenas um pequeno complexo habitacional com cerca de 3.000 habitantes.
Grande parte desse sucesso impressionante foi creditada à liderança de Antônio do Nascimento ou, como era mais conhecido: “Pai”. Inicialmente considerado radical e imprudente, suas estratégias não eram as mais cautelosas mas por sorte, ou não, ele conduziu sua comunidade a um crescimento exponencial, elevando-o a um status de quase divindade entre os locais. Era indiscutivelmente reverenciado. Houvesse algo como "índices de aprovação" na Piedade, os deles seriam bem altos.
O desespero de Marcos vinha precisamente do fato de que seus dados, nos quais ele tinha grande confiança, previam que a Fuga colapsaria num curto espaço de tempo, e não era como se os conselheiros do Pai parecessem fazer algo para mudar as coisas. Se a Piedade continuasse em sua trajetória atual, estava condenada à ruína. Como seria possível?
Com as duas mãos na cabeça, Marcos sentou-se e deixou-se levar momentaneamente pela punjante sensação de desespero que se fazia quase sólida através de sua respiração descompassada. Precisava urgentemente avisar alguém, mas não conseguia pensar em ninguém que o ouviria. Não podia simplesmente sair pelas ruas da Fuga anunciando o fim do mundo; seria certamente acusado de insanidade.
Se ele fosse diretamente ao conselho, eles nunca o ouviriam. Marcos olhou novamente para a tabela, inspirou tão devagar quanto conseguia, tentando acalmar-se, e decidiu fazer o que qualquer pessoa sensata faria: voltou aos computadores para reexaminar os códigos. Parecia uma criança que abre a geladeira diversas vezes seguidas, na esperança ingênua de encontrar algo gostoso lá dentro, a diferença é que tinha uma incômoda certeza de que não encontraria nada de errado em seu simulador.
Uma ideia! Isso tinha que funcionar, não porque fosse uma grande ideia, mas porque era a única que ele tinha.
Correu para seu quarto, revirou algumas gavetas cheias de bugigangas e fios, abriu seu armário olhando entre os montes de roupas, olhou sua caixa de recordações, fitou por alguns momentos uma foto de seu pai, que o segurava no colo enquanto era apenas uma criança; o momento não durou mais que alguns instantes, logo lembrou-se de que tinha um problema muito grande para resolver, guardou a foto na caixa, e voltou à busca. Foi em baixo de uma cueca jogada em cima de sua cama que encontrou um pequeno dispositivo de armazenamento de dados, não tinha certeza alguma sobre o estado de limpeza da roupa íntima mas, no momento, isso era irrelevante.
Pegou o dispositivo, conectou-o ao computador e começou a transferir arquivos cruciais. O volume de informações era tão vasto que analisá-lo sem o programa que passou meses desenvolvendo era impensável. Poucos minutos depois, a carga estava completa. Colocou o dispositivo no bolso, pegou sua mochila e saiu correndo, deixando a porta de sua casa entreaberta. No caminho, esbarrou em dois idiotas que corriam para algum lugar na zona norte da Fuga. Reconheceu um deles; era o Leopardo Louco, já tinha ouvido falar dele, diziam que ele era simplesmente insano.
"Desculpe, por favor." Exclamou Leonardo enquanto corria, tentando segurar uma bolsa que quase caiu devido à colisão.
Marcos ignorou e correu na outra direção, não sabia ao certo o porquê, mas tinha a incômoda sensação de que, se não se apressasse, as coisas poderiam dar terrivelmente errado.
A rua em que entrou era repleta de casas de madeira de diversas cores, uma camada de poeira varria calmamente o local na altura das canelas, levada pelo leve vento. Seu destino era uma dos casebres da viela, que não se destacava nem pelo tamanho e nem pela coloração. Deu algumas batidas na porta e, sem conseguir resposta alguma, bateu mais algumas vezes. Dois minutos depois, uma senhora que deveria ter pouco mais de 60 anos abriu a porta. Seus olhos entreabertos, roupas largas e amassadas denunciavam que havia acabado de acordar, o que lembrou o rapaz de que o sol mal tinha nascido. A mulher era Olga, mãe de Marcelo.
Marcos tinha muitas virtudes, mas aptidão para exercícios físicos certamente não era uma delas. Gotas de suor escorriam por sua pele preta, encharcando também sua camiseta branca. Seu volumoso cabelo se expandia ao redor de sua cabeça, como uma coroa natural, que emoldurava seu rosto numa espécie de halo negro. O jovem era magro, e preferia passar os dias em frente a um computador ou imerso em um livro, raramente enganjando-se em qualquer tipo de atividade física. Seu corpo, no entanto, cobrava agora o preço pelo evidente sedentarismo ao longo dos anos.
"Bom dia, dona Olga. Desculpe incomodar tão cedo, o Marcelinho está em casa?" Marcos perguntou apressadamente, com a respiração curta e ofegante.
"O que? Ele saiu de casa ontem à noite, me disse que dormiria em sua casa. Ele não apareceu por lá?"
"Sim, ele dormiu lá. Saiu da minha casa pouco tempo atrás, achei que já tivesse chegado aqui. Corri para cá para dizer que não vou poder comparecer ao nosso compromisso mais tarde; surgiram algumas coisas inesperadas," mentiu Marcos, sem saber o que estava acontecendo; não via o amigo há mais de uma semana, mas a última coisa que queria era causar pânico na mulher. "Ele deve ter parado em algum lugar antes de vir para cá. De qualquer forma, desculpe novamente por acordá-la tão cedo, preciso ir."
Virou as costas e correu na outra direção, decidiu que logo que terminasse o que estava fazendo, procuraria pelo amigo.
Em um país devastado pela guerra civil, agora fragmentado em comunidades muradas e isoladas, surge um homem com um poder tão único quanto enigmático. Abençoado com a rara habilidade de controlar todos os seus sentidos, este dom extraordinário molda profundamente sua interação com o mundo.
Neste complexo cenário de sociedades fragmentadas, sua percepção única torna-se tanto uma bênção quanto um desafio...
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