Um pouco antes do final da madrugada, Dia acordou com um sobressalto. Sentiu um calor subir pelas suas costas, uma sensação que já era frequente nos últimos meses e fazia sua cabeça doer. Sabia que Noite ficaria preocupado se soubesse, e sabia também que não conseguiria esconder por muito tempo.
Levantando sorrateiramente, ela se afastou um pouco do irmão e foi se sentar em uma área da beira da estrada onde a grama era fofa. Observando o céu que estava na hora mais escura, ela começou a murmurar uma canção.
Deseje o céu, sonhe com estrelas
Anseie pelo mar, canções de baleias
Clame por terra, vasta, firme e forte
Almeje a vida, a luz, a morte
Lembrando da voz de Yrina entoando aquela música, Dia se encolheu. Era a canção de ninar que a bruxa cantava para ela e seu irmão quando eram pequenos, há muitos anos atrás.
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Antes de partir do continente de Fearaniar, Yrina vagava por uma tundra em uma tarde nublada quando encontrou duas crianças abrigadas debaixo de um amontoado de pedras que formavam uma pequena caverna. Lá elas estavam sentadas, de mãos dadas e aparentemente dormindo. Apesar da aparência de humanos entre 6 e 7 anos de idade, ela sentiu que não eram crianças comuns, principalmente pelo fato de que mesmo depois de acordados eles não expressavam emoção nenhuma, nem quando ela os levou para sua cabana e tentou alimentá-los.
— Vocês sabem falar? — Ela encarava os dois, que apenas a observavam, enquanto os pratos com sopa esfriavam na mesa a frente deles. — Eu me chamo Yrienna, mas podem me chamar de Yrina. Vocês têm nomes?
Sem resposta, ela apenas suspirou e deu de ombros.
— Tudo bem então, eu posso dar um para vocês. Eu consigo dar nomes até para árvores! Eu fazia muito isso lá onde eu morava. Sabiam que macieiras gostam de ser chamadas por nomes compridos? Já os pinheiros preferiam nomes compostos.
Yrina era o que chamavam naquele continente de Deva, uma entidade não humana com características que eram consideradas divinas. Alguns deles eram tratados como deuses, outros como espíritos, mas todos tinham por natureza o papel de cuidarem e olharem por um lugar ou pelas pessoas. Não era um trabalho definido, os devas simplesmente faziam isso desde o início dos tempos, mas Yrienna, como era chamada antes, não estava satisfeita em zelar pela grande floresta onde nascera. Mesmo dividindo seu posto com Thariaknar, outra deva nascida no mesmo local que já era cultuada como deusa desde séculos antes, Yrina se sentia sobrecarregada e entediada. Ela então desistiu de sua posição e saiu pelo mundo, conhecendo lugares, pessoas e sentimentos novos.
— A floresta ficava linda nessa época do ano... Inclusive hoje foi o equinócio de outono. É uma data especial. — Yrina se debruçou na mesa, encarando as crianças. — Vocês sabem o que é um equinócio?
Os olhos dos gêmeos a encaravam, sem transmitir o mínimo de emoção. Era quase como se eles fossem apenas cascas vazias.
— Significa que o dia e a noite são iguais. — ela sorriu.
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O final da madrugada também era a hora mais fria, e Dia sentiu o abraço do irmão pelas costas a aquecendo.
— Eu quase esqueci dessa canção. — Noite apoiou o queixo na cabeça dela.
— Eu não, nunca esqueci. — Dia queria comentar que achava estranho não lembrar da imagem Yrina cantando, mas lembra da voz dela entoando aquela música para eles.
— Vamos indo? Acho que dá para chegar em Jhotar em algumas horas se formos andando.
A brisa fria da noite acariciou os cabelos deles, enquanto se preparavam para seguir na direção da imponente silhueta da montanha a alguns quilômetros.
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— Para de se mexer tanto, tia!
Daena ralhava com Katarina, tentando acertar o corte de cabelo irregular da mulher. Ela observava pelo espelho as pontas queimadas na altura dos ombros dela caírem no chão à medida que sua sobrinha cortava os fios dourados. O Impronunciável havia feito um belo estrago, e se não fossem as circunstâncias ela provavelmente usaria isso como motivo para encrencar com ele também. Mas desde que havia acordado do sonho com Tharia, Katarina sentia um buraco enorme em seu âmago que havia engolido grande parte do seu ódio, e o que sobrou era apenas um ranço residual que poderia ser resumido em "eu não vou com a sua cara".
— Se você não puxasse tanto meu cabelo, eu não precisaria me mexer!
— Vocês querem ajuda? — Darka, que observava sentado de longe, levantou a mão. — Eu sei cortar cabelo.
— Não! — Daena e Katarina responderam juntas, em tom irritado. Se encolhendo, Darka virou a cara.
— Acho que você já mostrou sua habilidade cortando cabelo, Darka. — Miko pontuou. — Elas estão tentando justamente arrumar o seu trabalho.
— Cê tá do lado de quem, Miko??
A oficina estava com um clima animado, Amara notou enquanto trazia alguns pães e uma garrafa de suco para o café da manhã de todos. Ele se sentou na mesa e ficou observando a cena sem saber exatamente o que estava sentindo, mas com certeza tinha uma pitada de ansiedade.
Antes de transmigrar para aquele mundo, Amara morreu em uma cama de hospital, sozinho, frustrado, com um computador no colo querendo deixar no mundo um rastro de que ele existiu. Quando acordou no corpo de uma NPC mecânica que havia programando, o alívio de uma segunda chance foi ínfimo perto do sentimento de não pertencer aquele lugar. Agora, estava tão conectado com aquela realidade e aquelas pessoas ali que não conseguia deixar de se sentir responsável por eles.
— O que vamos fazer agora? — Daena perguntou, terminando de limpar os cabelos dos ombros de Katarina. — Estou zangada e preciso quebrar alguma coisa.
— Vocês vão pra casa. Eu preciso resolver o problema que tá vindo aí. — Darka olhou de relance para Amara, que parecia distraído.
— Eu não tenho casa! — Miko levantou a mão com certa animação. — Posso ir junto?
— Não, dessa vez vai ser um negócio perigoso e não quero que se machuque.
Miko fez um biquinho e cruzou os braços, virando de costas para ele. Por experiências anteriores, Darka sabia que aquela pose significava pelo menos meia hora sendo ignorado piamente por Miko. Ele achava o comportamento engraçado principalmente porque era algo claramente adquirido pelo tempo que passou com Daena.
— Você não manda em mim, é claro que eu vou junto. — Daena falou, indo buscar uma vassoura.
— Ele não manda, mas eu sim! — Katarina ralhou, se levantando. — Seu pai deve estar preocupado!
— Mas o que você disse que vai fazer mesmo, Darka? — Daena ignorou a tia, que bufou de raiva.
— Eu vou te amarrar numa pedra e mandar pra Talphen. Seu pai deve tá super preocupado. — Ele colocou as mãos na cintura, tentando parecer firme. — Não quero problemas com o Estephan de novo.
— O quê? Você não se atreveria!
Daena cruzou os braços e se juntou a Miko na birra. Darka percebeu que Katarina olhou para ele com uma expressão esquisita, que ele resolveu entender como um agradecimento. Suspirando, ele relaxou um pouco.
— Olha, me desculpem, tá? Mas eu não quero vocês lidando com isso.
— O que exatamente você vai fazer, Impronunciável? — Katarina encarou Darka.
— Eu vou até a montanha de Jhotar.
— ... E?
— E o quê?
— O que vais fazer lá?
— Vou impedir a destruição do mundo.
— Como? — A paladina estava impassível.
Respirando fundo, Darka fechou os olhos. Ia contradizer algo que disse a aventura toda e não sabia se a reação seria muito boa.
— Vou acordar a Yrina.
O silêncio que se seguiu deixou ele nervoso. Katarina abaixou o olhar, pensativa. Se passaram alguns longos segundos antes dela falar.
— Você disse que não queria.
— Sim, eu disse. Mas agora eu preciso. — Darka inconscientemente assumiu uma postura defensiva. — Sei que falei isso ontem e hoje já tô me contradizendo, mas é que agora eu sei o que vai acontecer se eu não fizer nada. Se você tá preocupada que eu vá fazer alguma coisa ruim, então vem comigo.
Os sentimentos de Katarina eram uma confusão, e a falta de emoção aparente naquele momento era devido a dificuldade que ela tinha em processar o que sentia. Na noite anterior, depois do surto de identidade que teve, ela passou um bom tempo refletindo sobre o que Darka havia falado em relação a quem ela era. A sua conclusão foi que com ou sem Tharia, Katarina ainda era uma paladina, e amava seu dever de proteger as pessoas.
— Eu vou. Mas quero que explique melhor o que exatamente está tentando impedir. Se tu e tua mãe não são o problema, o que é?
Amara havia explicado mais ou menos sobre isso para Darka depois que a paladina foi descansar antes, e ambos concordaram em manter segredo sobre serem transmigrados e qualquer coisa relacionada a isso.
— Ok, então... Tem uns gêmeos que também mexem com magia, e os dois estão tentando fazer com que eu seja conhecido e temido por todo o mundo como um grande lorde ou coisa assim. — Darka gesticulava bastante enquanto falava, o que fazia Amara dar risadinhas e Katarina ficar ligeiramente irritada. — Acontece que pra isso eles estão destruindo coisas e tentando libertar a Yrina para usar o poder dela e do lugar onde ela tá selada pra devastar tudo, então tenho que chegar lá primeiro, acordar ela antes deles e impedir que eles acessem a fonte de magia que tá debaixo da montanha.
— Isso não foi muito convincente.
— Não foi nada convincente mesmo. — Amara completou, ainda sentado na mesa comendo um pão.
— Mas é verdade! — Miko interrompeu. — Eu vi eles e a senhorita Daena viu também!
Daena acenou com a cabeça que sim, ainda em pose de birra. Amara se levantou, limpando as migalhas de sua calça.
— Mas olha, pra ser sincero, senhorita Aurea, se o nosso amigo Impronunciável aqui fosse mesmo alguém tão ruim, você acha que ele estaria se dando ao trabalho de sequer explicar o que vai fazer? Eu não teria essa consideração toda se meu objetivo fosse destruir o mundo.
Katarina observou a expressão simpática de Amara, percebendo como aquele jovem parecia calmo demais com tudo aquilo. Algo nessa calmaria fazia com que ela sentisse uma estranha confiança naquele garoto, como se ele soubesse que ia ficar tudo bem.
— Faz sentido. Então vou junto, para garantir que eu seja a primeira a dar o golpe em você, caso esteja mentindo. Posso não ser mais abençoada por Tharia, mas sou uma guerreira que jurou defender seu povo. Não há benção que substitua isso.
— Uau, agradeço a confiança. Aliás, pra ser sincero você é uma pessoa muito bacana quando não tá tentando me cortar no meio.
Katarina foi pega de surpresa pelo elogio estranho, e sentiu um traço de vergonha que há muito tempo não sentia.
— Dispenso suas palavras! — Ela se virou de costas para todos.
— Então vamos comer e partir. — Amara entregou um pão com manteiga para Miko. — Yrina está esperando por nós.
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