— Por favor, não! Não! - Parecia que um rio se abriu nos olhos de Maria.
Ela sentiu a dor da pele se rompendo e o calor do sangue se misturando ao frio do metal que agora irá para sempre ficar em seu pescoço, demarcando que ela é um peso para a sociedade em que vive.
Fazem oitenta anos que todas as pessoas que diferem do “normal” devem ser marcadas com uma coleira de ferro com espinhos, esses que lêem os batimentos e podem eletrocutar a pessoa.
No dia seguinte, ao sair de casa, já recebeu olhares e pessoas desviando dela na rua. Sua coleira é de metal preto, que indica que ela difere das pessoas de “bem” em mais de uma coisa.
Tentando não chorar e conter a tremedeira, enquanto era afogada em pensamentos cruéis que vêm com as pessoas olhando-a, sentiu-se muito burra por deixar escapar(não precisa dessa vírgula aqui) para um colega, que se chama Maria Eduarda.
As pessoas no ônibus desviaram dela e, quando se sentou no banco de sempre, quem estava nos bancos ao redor saíram de seus locais e se amontoaram ao fundo do ônibus.
Vendo as reações, o estômago da garota se embrulhou, como podem sair de perto e evitar uma garota que tem apenas quinze anos como se ela fosse algum tipo de monstro?!
O desespero já estava pronto para tomar o corpo de Maria quando uma garota sentou ao seu lado sem se importar, mas ninguém mostrou reação e ela ficou sem entender já que essa pessoa não tem uma das coleiras.
— Você…
— Oi? - fungou.
— Se importa de abrir a janela?
— Obrigada!
A garota ficou encarando a que fez um pedido tão simples sem entender porque ela não se importou.
— Você não se importa?
— Com o que?
— Com isso. - Apontou para o pescoço.
— Isso parece estar te machucando, por que não tira?
— Não posso, não consigo.
— O que é isso?
— Você não sabe?
— Não…
O silêncio reinou entre elas novamente. Maria olhou ao redor e viu que as pessoas desviavam o olhar dela.
Uma das pessoas foi descer do ônibus e esbarrou a perna violentamente contra a da garota ao seu lado mas… atravessou?!
A garota resolveu testar, porque ficou curiosa, então tentou cutucar a outra.
— Ai, isso faz cócegas. Hahahahaha! - A mão dela atravessou o corpo.
— Minha mão…
Foi aí que a de mecha roxa percebeu que a de cabelo castanho escuro estava com a mão dentro dela.
— O que você está fazendo? Como? Tira daí, você está me assustando.
— Perdão. - Recolheu a mão rápido.
— Como você fez isso?
— Eu não sei.
— E se… - A garota parda tentou tocar Maria e a mão dela também a atravessou.
— Como?
As duas ficaram se encarando com os olhos arregalados e o ar esbaforido.
— É o meu ponto. Como você se chama?
— Maria Eduarda ou Madu - não se importou mais de falar que se chama assim já que está marcada para sempre. - e você?
— Me chamo Nicole. Foi um prazer, Madu!
O resto do caminho até a escola de ensino médio foi terrivelmente torturante, as pessoas que desciam do ônibus direcionavam palavras de ódio para a garota que só queria ficar quieta no canto fingindo que não existia mais desde que colocaram aquele treco nela.
Quando chegou ao local, viu o seu grupo de amigos, mas quando acenou e se precipitou para chegar perto deles, o grupo se desfez o mais rápido possível e saiu cada um para o seu canto.
Ser marcada, ser destacada para ser excluída da sociedade é algo que dói.
Os professores passaram a não mais responder suas dúvidas, só corrigiam seus exercícios por causa da obrigação.
Quando finalmente chegou a hora de ir embora, a garota já não mais sabia se tinha forças nas pernas para caminhar até o ponto de ônibus, então ficou parada um tempo, nos fundos da escola chorando.
Algum tempo depois a enxotaram de lá e ela teve que partir, pegou o ônibus e se sentou novamente no mesmo lugar que sentava todo dia.
— Olá, Madu! - Nicole cumprimentou. - Oh, você está chorando? Por que?
— Oi… Olá. - Enxugou as lágrimas.
— Queria poder te abraçar. O que essa coleira é?
— É por eu ser… - Fez uma pausa e então sussurrou: - trans e lésbica.
— Meu Deus, que horror! Como podem fazer isso só por você ser LGBT?
— É assim há oitenta anos aqui.
— E você tem quantos anos?
— Quinze…
— Eu também tenho quinze. Como podem, não te perdoaram nem por você ser jovem…
Nicole levou a mão no colar e, de alguma forma, conseguiu não atravessar. A sensação daquela coisa no seu dedo, mesmo que leve por não estar realmente ali na realidade dela, gelou o coração e passou um arrepio por sua espinha.
— Sinto muito!
Madu apoiou a cabeça na janela e ficou quieta quando, com o canto da visão, viu a outra digitar no próprio braço e aparecer uma tela.
— Uau! O que é isso?
— Isso? Você não tem essa tecnologia aí?
— Não, a gente tem celulares - falou tirando um smartphone do bolso.
— Uau, isso aqui já é velharia. Inclusive, se a tecnologia daí é tão antiga, como não ficou assustada por eu ser um fantasma para ti?
— Ah, é que eu estou passando tanta coisa que estava desejando tão forte conhecer alguém que não me julgue que só aceitei.
— Eu estava desejando isso também, mas no meu caso é por eu ser… você vê…
— Negra?
— Gorda…
— Não tem nada de errado nisso.
— Mas parece que para as pessoas daqui tem.
— E você? Por que não ficou assustada?
— Porque há relatos aqui de outras pessoas que já conseguiram contato com outros universos por compartilharem um desejo forte de comunicação com alguém que a entenda.
— Oh, interessante.
— Sim, estão chamando de evento Alma Gêmea.
— Como nas histórias de pessoas que são ligadas mesmo longe?
— ISSO! - As pessoas no ônibus a encararam. - Desculpa, me empolguei.
Ambas garotas riram, mas quando Madu tomou coragem para falar mais alguma coisa, chegou em sua descida.
Maria estava receosa por ter que se separar de alguém que a entendia, mas um pouco aliviada por poder se isolar em casa — mesmo que agora fosse uma casa com câmeras para o governo poder vigiar o que ela fazia.
— Descansa, viu?!
— Obrigada!
Elas tentaram tocar as mãos, mas esqueceram que se atravessam, então se encolheram um tanto envergonhadas.
Os dias foram passando e as duas sempre se encontrando no ônibus todas as vezes.
— Ohohohoho! Então você me acha gata?
— Niiiiiick! Não implica, aaaaah! - Escondeu o rosto com as mãos.
— Mesmo com…
— Já passamos dessa fase!
— Verdade! Eu também te acho gata, minha gordinha linda!
— Ah, meu Deus!
As pessoas que pegavam o mesmo ônibus com Madu todos os dias, que já a evitavam por causa da coleira de ferro, agora a evitam também por ela falar sozinha. E os xingamentos começaram a ficar mais agressivos.
Um certo dia, uma pessoa chegou a jogar lixo na garota, deixando Nicole muito preocupada e determinada a achar uma solução.
— Então você quer fazer ciência da computação, Madu?
— Sim, é uma área que me interessa muito e como ganha muito dinheiro, posso ter a chance de conseguir pagar alguém do governo para me livrar disso.
— Entendo.
— Mas duvido muito, só bilionários conseguiram até hoje.
Já se passaram quatro meses desde que as duas se conheceram, a conversa delas sempre é esclarecedora para Madu, que se sente encantada ao escutar todos os dias sobre o mundo de Nicole.
Ela tem se sentido meio engraçada, de maneira que só se sentiu algumas vezes por umas pessoas e que nunca teve coragem de contar por causa do medo de lhe acontecer o que aconteceu agora.
Esse sentimento que começou a aumentar desde que a amiga sugeriu que elas ficassem com as mãos sobrepostas no banco para se sentirem mais perto uma da outra.
Nicole dessa vez já estava no banco quando a garota entrou e, quando a viu, já colocou a mão no lugar que sempre deixavam. Um sorriso logo tomou o rosto de Madu que se apressou a sentar.
— Eu venho pensando.
— O que, Nick?
— O que você acha de relacionamento a distância?
— Não me importaria de ter.
— Digo, a distância de universos.
— Uau! Seria mentira se eu dissesse que não pensei nisso desde que te conheci.
— Eu também pensei.
Ambas ficaram quietas, se olhando nos olhos com um sorriso doce no rosto.
Era isso, agora Madu tinha certeza, o que sente por ela — o que mais desejava — era amor. Amar e ser amada pela Nicole.
— Eu - falaram ao mesmo tempo.
— Você primeiro.
— Nick, eu te amo!
— Ah, meu Deus! Eu ia dizer a mesma coisa. Eu te amo!
O silêncio reinou novamente, com as duas sem saberem onde enfiar a cara depois de terem se confessado para alguém de outra realidade.
A dúvida logo veio acompanhada pelo medo. O que elas fariam agora que sabem que se amam? O que seria do relacionamento delas?
Achando que seria consumida pelos pensamentos e incertezas, acabou por ser acordada de sua mente por Nicole, que colocou a mão ligeiramente dentro de seu rosto.
— Quer namorar comigo?
— Quero! Quero mais que tudo. Eu te amo tanto, Nick!
Um determinado dia, Maria entrou animada no ônibus, achando que veria a namorada, mas ela não estava lá.
Algumas semanas se seguiram assim, sem Nicole, e a garota achou que tinha sido abandonada.
Um corte se abriu dentro de seu peito, uma ferida pior que todo choque que o colar maldito dava quando falava seu nome.
Ela estava encolhida no banco, quando ouviu uma voz doce e sentiu cócegas no braço, então virou o rosto lentamente.
— Eu… Eu pensei que você não queria mais me ver.
— Eu fiquei doente, desculpa!
— Não precisa se desculpar, eu que sou idiota por pensar o pior.
— Você não é idiota, quando estamos sofrendo o tempo todo, é meio que quase impossível não esperar o pior.
Mesmo sabendo que se atravessavam, fizeram o ritual habitual de abrir um espaço no banco e sobrepor as mãos. O formigamento era o que fazia as duas se sentirem ligadas.
No dia seguinte, as duas estavam lá novamente. Mesmo que ambas estivessem de férias.
— Você está de férias, né?!
— Estou.
— Quer ficar até o ônibus ir para a garagem ou um dos motoristas expulsar uma de nós?
— Mais que tudo.
As duas conversaram sobre muitas coisas, Nicole contou como os pais ficaram muito interessados sobre ela, que começou um movimento dos artistas no país falando sobre peso e autoestima sendo gordos. Madu não tinha coisas felizes para contar, mas a namorada a consolou e escutou enquanto falava sobre terem confiscado o gatinho, que naquela semana ela desistiu de falar seu nome e começou a se apresentar de novo como Bernardo e outras coisas.
Em um determinado dia, Nicole chegou muito animada.
— Aí na tua cidade tem uma praça chamada Praça Santa Madalena?
— Tem sim.
— Esteja lá às dez horas de amanhã, olhando de frente para a rotatória e fique encostada na estátua. E, mais importante, pense muito em mim.
— Por que?
— Tchau!
— Nicole!
No dia seguinte, Madu seguiu a instrução da namorada, mas o tempo passou e começou a sentir os olhares maldosos direcionados a si, quando viu uma pessoa fazendo uma ligação e olhando toda hora para ela.
Sentiu o estômago ferver em ácido e ficou zonza com medo do que aquilo significa, pensou em sair dali. Mas a cada momento que sentia vontade de ir embora, pensava mais e mais em Nicole.
“Como eu queria que você estivesse comigo, Nick.”, “Eu te amo tanto, mas não sei se vou mais poder te ver se eu estiver certa do que acabou de acontecer.”
Um tempo depois, chegaram dois policiais na praça, um já com a arma apontada para ela.
— Se fizer movimentos bruscos nós vamos atirar.
— Vire-se de costas e-
— Madu! Madu!
— Nick?
— Coloque as mãos para trás.
— Estende a mão direita!
— Está escutando?
— Por que? Como estou te escutando?
— Confia em mim!
Ela confiou, ela confiou e estendeu a mão.
Assim que a mão dela estava para frente, o policial que estava falando, levantou a arma e deu a ordem para atirar.
O som das armas foi alto e Maria pensou que ia morrer ali, naquele momento, quando sentiu um puxão na mão e fechou os olhos.
Então sentiu dois braços envolverem seu corpo e lábios tocarem os seus.
Ela se afastou e olhou espantada para Nicole que está atrelada a um maquinário cheio de sinais de radiação, perigo de eletricidade e com várias pessoas de branco ao redor dela tomando nota.
— Como? O que?
— Bem-vinda ao meu mundo, meu bem! - Beijou-a novamente que, dessa vez, aceitou o beijo.
Madu não tinha visto as mãos de Nicole, ela estava com algumas ferramentas em sua mão. A garota, desde que ficou sabendo das pesquisas para conectar mundos e trazer pessoas de outros universos para o dela, entrou em contato com os cientistas da universidade que estava pesquisando.
Com isso, eles trocaram mensagens sobre o universo e ela aceitou participar do segundo experimento, embora o primeiro tenha dado errado.
Aproveitou a chance e descreveu para os pesquisadores o aparato que a namorada usava.
O beijo se aprofundou mais, enquanto os cientistas desarmavam todo o equipamento preso em Nicole, eles estavam fazendo o máximo para não atrapalhar as duas, dado o que foi contado.
Madu não queria se afastar ainda, mas a namorada afastou-a um pouco e mostrou em suas mãos o colar.
— Você nem percebeu e estava com medo de que iria doer quando tirassem esse treco.
Os olhos da garota se encheram de lágrimas e ela abraçou forte Nicole, sentindo-se mais acolhida do que jamais esteve.
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