Um estrondo e alguém é arremessado atravessando as portas maciças de madeira. O evento inesperado pega quase todos de surpresa, exceto Safix, que elegantemente levanta sua mão esquerda apontando-a para o corpo, voando na direção de Mandipha e Aine, criando uma barreira em formato de domo.
O corpo colide com a barreira, onde o indivíduo tosse com o impacto, caindo no chão.
— Tio Alber! — Mandipha exclama chocada, se levantando para ir até ele.
— Não se aproxime! — Comanda Alber, tio da parte materna de Mandipha. Sua estatura é pouco maior que Kemiro, medindo dois metros de altura; seu corpo é tonificado com músculos perfeitamente esculpidos.
— Pelo visto, você se esqueceu na casa de quem está neste momento.
Kemiro adentra a sala segurando outro guarda de Mandipha em sua mão esquerda pelo pescoço. O jovem guarda tenta se soltar, mas a pegada de Kemiro continua firme, não machucando, mas impossível de se escapar.
Confusa, Mandipha apenas olha apreensiva para Kemiro, que mantém seu sorriso enigmático. Usando de toda sua capacidade analítica excepcional para compreender este desenvolvimento, ela reflete:
Kemiro não é violento sem razão. Com certeza, quem iniciou esta confusão foi Tio Alber. Porém, Kemiro nunca reage a nenhum tipo de provocação, eu já comprovei esse fato. Então, ele tem um motivo para reagir. Mas, o que poderia ser?
— Eu estou curioso. — Introduz Kemiro, interrompendo o foco de Mandipha. — De todas as provocações que você poderia ter utilizado pra me testar. Que audácia sua, dizer a mim, o dono desta casa, que eu devo esperar para ser anunciado!
Kemiro continua adentrando a sala com passos calmos, mas, em todos os fragmentos das portas que ele pisa, são esmagados como se fossem folhas secas.
Por mais que ele esteja trajando uma camisa de mangas longas, seus músculos, que não possuem volume como Alber, emanam vitalidade o suficiente para condensar o ar frio do ambiente.
— Haha! Eu sabia que os boatos de você ser um completo aleijado eram um monte de besteira.
Exclama Alber, limpando o sangue escorrendo de sua boca, enquanto a dor em seu rosto o faz refletir:
Minha guarda estava alta e, mesmo assim, eu não consegui reagir. Por um instante, pareceu que eu estava congelado. Isso é algum tipo de Lei ou foi seu par?
— Pelo visto, você é competente, mesmo sem o auxílio de seu par! — Alber provoca.
— Por favor, você não precisa se esforçar tanto apenas pra mendigar informações de mim. Aqui está uma informação por conta da casa. Azarthine não está presente neste momento. — Kemiro levanta sua mão direita para Alber, balançando-a em provocação. — Que tal? Nada para se preocupar, certo? Por que você não vem aqui? Eu sempre quis saber o quão macio é o pelo de vocês da Casa Hauveron?
Uma veia aparece na testa de Alber irritado em como Kemiro é malicioso em provocar onde mais irrita os membros da Casa Hauveron, em serem tratados como animais. Porém, Alber já conseguiu algumas respostas que almejava. Suspirando, ele diz:
— Não. Eu vou me desculpar, pois não foi minha intenção desrespeitá-lo em sua morada. Eu apenas queria ter a certeza de que minha irmã e sobrinha fizeram a escolha certa. Dito isso, desculpe-me, mas você poderia soltar meu aprendiz. Você já provou suas capacidades.
Levantando o jovem guarda, que pesa quase cem quilos acima de sua cabeça sem dificuldade, Kemiro analisa o guarda, todos os presentes notam como o sorriso de Kemiro intensifica. Então ele diz:
— Você pode ter começado esta bagunça, mas eu decidirei quando terminá-la.
O jovem guarda, pela primeira vez, demonstra sinais de sufoco quando Kemiro injeta de sua Ma’Jia dentro do jovem, isso causa todos da Casa Hauveron a terem um sobressalto, incluindo Aine.
— Você tem ideia do que está fazendo? — Alber grita agitado.— Você se atreve a ir contra o decreto da família Real e ferir alguém da minha Casa?
— Haha! Não seja dramático. Estou apenas seguindo os costumes da Casa Hauveron.
O comentário de Kemiro faz os integrantes da Casa Hauveron paralisarem em surpresa.
— Costumes? Do que você está falando? — Indaga Alber, visivelmente surpreso.
— Entre os mandamentos da Deusa Maranshipha, se diz que um indivíduo deve estabelecer sua posição através da força, pois um não pode reinar enquanto o outro não se submeter. Também que abandonar um membro da família em necessidade é escarnecer a própria Maranshipha, certo? — Kemiro pausa e analisa a expressão de Alber, notando o olhar emocionado, que Alber logo suprime, Kemiro continua. — Ah! Eu espero que meu leve soco não tenha realmente te machucado. Se sim, me desculpe.
Kemiro diz com uma expressão falsamente sincera.
Leve? — Reflete Alber. — Nunca escutei tanta besteira na minha vida! Eu fui arremessado igual a um boneco de pano.
Sentindo-se frustrado, Alber questiona:
— Você não está errado. Estes são dois dos princípios sagrados para nós. Mas, onde nessa situação, suas ações se encaixam em não abandonar um membro da família? — O ar em volta de Alber esquenta, enquanto ele intensifica seu espírito, fazendo uma energia de cor vermelha emanar de seu corpo. Com um olhar sério, ele encara Kemiro exclamando. — É bom que você não esteja tratando nossos princípios sagrados levianamente, caso contrário, eu terei que puni-lo.
Sentindo-se ansiosa, Mandipha apenas pode observar o desenvolvimento de toda a situação sem interferir, pois qualquer interferência numa disputa entre integrantes da Casa Hauveron é considerada um desrespeito. Porém, ela ainda se sente aliviada pensando:
Desde o anúncio de nosso noivado, Kemiro nunca demonstrou muito interesse em mim. Por quase um ano, eu tenho tentado me aproximar dele sem maiores resultados. Já estava perdendo minha confiança como mulher.
Mas, descobrir que ele tem conhecimento de nossos princípios ao ponto de aplicá-los, é uma prova de que meus esforços não foram em vão. Mas, ainda fica a questão do motivo de ele ter resolvido demonstrar tal resolução. O que poderia ter acontecido?
— Eu posso garantir que não está entre meus interesses chacotear as crenças dos outros. Mas, eu fico um pouco triste de você me excluir assim. — Kemiro volta sua atenção para Mandipha, que tem um leve sobressalto quando ele dá uma pescadinha sorrindo provocativamente, enquanto diz. — Nós já somos praticamente da mesma família, não?
Todos os presentes são pegos de surpresa com a atitude incomum de Kemiro. Em especial, Safix e a irmã mais velha de Mandipha, que possuem expressões de desagrado. A irmã de Mandipha, em especial, possui uma expressão agravada, por notar que o interesse de Mandipha em Kemiro foi atiçado, pela maneira erradica com a qual a ponta de sua cauda se move.
Que audácia deste garoto! Ele está sendo mais interessante do que jamais imaginei. — Reflete Alber, se controlando para não sorrir.
Aparentando não ligar para as palavras de Kemiro, Alber demanda:
— Pare de dar ródeos e me responda!
— Ok! Porém, eu vou deixar que ele responda por mim.
Kemiro abaixa o jovem guarda no chão e dá um leve tapa em seus peitos. O guarda imediatamente vomita um bocado de sangue.
— Almer, você está bem? — Indaga Alber com uma voz trêmula. Mas, antes de poder se aproximar, ele para ao ouvir a indagação de Almer.
— Mas, como… Como você fez isso? — Almer pergunta, após usar sua Intenção para analisar seu corpo e compreender o que Kemiro fez.
— É como os fios embaralhados de um fone de ouvido. Primeiramente, você deve saber onde estão as pontas e partir delas é desembaralhar ambos os lados juntos. No final, apenas dar um último “puxão”. Nada de mais. Por que você não tenta se transformar?
Todos da casa Hauveron estremeceram, preocupados com as palavras de Kemiro. Alber sendo o primeiro a reagir:
— Do que você está falando? Almer, não faça isso. Você sabe das consequências!
Mesmo ouvindo as palavras de Alber, Almer apenas pode engolir seco, olhando para Kemiro, como se estivesse tentando encontrar uma resposta.
A expressão de Kemiro, pela primeira vez, muda de um sorriso para uma expressão confiante, dizendo:
— Você já tem a resposta, por que está fazendo uma pergunta? Hesitação apenas obstrui o progresso.
Fechando suas mãos trêmulas, Almer não diz nada, apenas fecha seus olhos, suspirando. Logo ele começa a emitir uma energia pura, como um fluxo de água corrente.
— Almer… Eh?
Notando a energia, Alber tenta reagir e impedir seu aprendiz de continuar. Porém, o fluxo de energia se intensifica ao ponto de o corpo de Almer ser coberto, o que faz Alber paralisar.
O brilho em volta de Almer se distorce, e sua forma humanoide começa a se desfazer como uma massa derretendo. A massa toma uma forma quadrupede.
O brilho começa a se desfazer, logo uma figura, semelhante a um tigre branco, emerge.
— Al… mer? — Incrédulo, Alber sussurra.
O tigre, Almer, olha para Kemiro, uma intensa mistura de emoções, mas antes que pudesse dizer algo, ele nota que Kemiro está com seu sorriso enigmático novamente, agora acenando sua cabeça na direção de Alber.
— Tio Alber. — Comenta Almer, com uma voz falhando em suprimir suas emoções.
Mandipha reage primeiro, silenciosamente ela vai até Almer, o abraçando com lágrimas escorrendo em seus olhos.
— Parabéns! Almer, parabéns!
Como se saíssem de um transe, todos os integrantes da Casa Hauveron vão até Almer, lhe abraçando e o parabenizando.
Excluindo Kemiro, os presentes estão surpresos pela sequência de eventos, mas não compreendem a significância da transformação de Almer.
Interessante. — Reflete Kemiro. — De acordo com minha investigação, aqueles que adoram a Deusa Maranshipha são abençoados e desenvolvem atributos animalescos. Entretanto, aqueles que, por algum motivo, não conseguem se transformar completamente, são considerados indignos. Especialmente para um descendente direto da Casa Hauveron.
Enquanto reflete no momento quase religioso, os pensamentos de Kemiro são interrompidos, quando ele nota Mandipha vindo em sua direção em silêncio.
Seus olhos ainda escorrem lágrimas cheias de emoções. Mandipha não diz nada, apenas abraça Kemiro fortemente. Apoiando sua cabeça nos peitos de Kemiro, ela diz com um tom baixo:
— Qualquer que seja o motivo de você ser capaz de tê-lo curado, não importa. Mesmo que você não entenda, o que você acabou de fazer aqui é algo que serei grata por toda minha vida.
Kemiro não retorna o abraço, apenas deixando Mandipha agir como quiser. Ele reflete:
E pensar que algo simples, como rearranjar alguns pontos de fluxo interno de Ma’Jia, me renderia um resultado tão positivo.
Voltando sua atenção para Mandipha, que é praticamente uma cabeça mais baixa que ele, Kemiro nota as delicadas orelhas redondas de Mandipha que se parecem às orelhas da foma bestial de Almer.
Abaixando sua cabeça, Kemiro usa sua mão direita para apoiar a orelha de Mandipha, que está virada para trás, a direcionando para frente e sussurrando:
— Não se preocupe. Eu consigo pensar em uma ou duas maneiras de você me agradecer por toda a vida.
O corpo de Mandipha treme levemente enquanto ela levanta sua cabeça rapidamente, olhando para cima, apenas para ver de perto os olhos acinzentados de Kemiro, quase sendo enfeitiçada pelo movimento dos círculos de sua Akrava.
— Se você continuar me encarando assim, eu vou ter que te beijar. — Kemiro sussurra.
Finalmente, percebendo a situação em que está, Mandipha tenta se afastar de Kemiro. Sem querer, ela acaba usando sua força sobre-humana, porém, antes mesmo de conseguir processar o choque por usar tal nível de força, espanto sobrepõe suas emoções ao perceber que Kemiro não se move ou treme, mantendo-se firme no lugar sem esforços.
Pega desprevenida, suas capacidades analíticas entram em conflito e sua mente se torna uma bagunça, tentando analisar toda a situação. Mandipha apenas pode corar intensamente, enquanto tenta murmurejar palavras para conseguir escapar.
Em contraste com o turbilhão na mente de Mandipha, Kemiro está refletindo seriamente:
Bem, mesmo após refletir tanto, eu não consegui encontrar uma resposta para fugir desse casamento arranjado. Eu sei que é impossível fugir da minha família. Mas eu ainda não compreendendo a razão da Casa Hauveron para oferecer sua Sacerdotisa para um casamento arranjado com alguém de uma casa de suporte. Mas, talvez… talvez, eu possa encontrar alguma felicidade nesta farsa.
Se enganando com doces mentiras, Kemiro apenas sorri, notando o desespero de Mandipha em tentar escapar de seu abraço sem conseguir encontrar palavras para o que dizer.
— Ei! O que você pensa que está fazendo?
A irmã de Mandipha, despercebida, coloca seu rosto com uma expressão distorcida em ira entre eles. Ela encara Kemiro, pronta para arrancar um pedaço dele.
Surpreso com a hostilidade palpável, a sobrancelha de Kemiro treme. Porém, ele apenas dá um passo se afastando dela, trazendo Mandipha, que não resiste, junto com ele.
— Kyaah!
Surpreendendo Mandipha, Kemiro lhe abraça ternamente, sorrindo para a irmã, dizendo com um tom confuso:
— Não entendo o que você quer dizer. O que há de errado entre noivos se abraçarem?
— Aawuu!
Mandipha congela com o desenvolvimento inesperado. Veias saltam pelo rosto da irmã com seu sorriso e hostilidade subindo a outro nível.
— Hahaha! Entendo! Perfeito! Permita-me presenteá-lo. Você pode escolher qual lado vai apanhar primeiro! — Liberando sua Ma’Jia, a irmã parte para cima de Kemiro.
Os empregados da propriedade ficam confusos com sons de móveis e paredes sendo quebrados, somados a gritos desesperados e gargalhadas de Kemiro que atravessam a noite.
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