“Era uma fazenda pequena, mas plantávamos o suficiente para viver.” continuou Azurya. “Tínhamos uma vida simples de muito trabalho, mas éramos felizes.” ela esboçou um leve sorriso. O maior sorriso que já havia esboçado desde que a conheceram. “Papai, mamãe, eu e Dilan. Meu irmão caçula. Eu tinha doze anos. Dilan tinha seis. E como ele era esperto e curioso! Aprendia tudo tão rápido!” seus olhos brilharam ao falar do irmão. “Meus pais… eles acreditavam na bondade das pessoas e eram fervorosos adoradores de Carmine…”
“Carmine não é a Deusa da Vida?”, perguntou Zach.
“Sim.”, respondeu Azurya. “Ela também é conhecida como deusa da Colheita. Para meus pais todas as vidas eram sagradas. E assim nos ensinaram a enxergar o mundo. Certo dia, um senhor de idade apareceu cambaleante em nossa fazenda. Estava muito fraco, desnutrido, desidratado e parecia estar nos últimos dias de sua vida. Meus pais o acolheram e tentaram cuidar dele o melhor que podiam. Lhe deram cama - eu passei a dormir com Dilan - comida, água e, com a graça de Carmine, sua vida de volta. E com o passar dos dias aquele velhinho começou a melhorar e ficar mais forte. Em breve estava até com força para nos ajudar na fazenda. Sua saúde melhorou tanto que depois de uns dias seus cabelos brancos começaram a escurecer, ficando grisalhos e sua pele enrugada rejuvenescera. Todos ficamos muito felizes com a sua recuperação. Fizemos um jantar de comemoração certa noite em agradecimento a Carmine, por ter abençoado aquele senhor e lhe dado uma segunda chance…”
Zach começou a bater palmas como se a história terminasse naquele momento com um final feliz. Mas Azurya tinha apenas feito uma pausa, sua respiração ficando um pouco mais pesada e sua feição mais melancólica.
“Porém…”, a voz dela engasgou ao continuar. “No dia seguinte… meus pais amanheceram doentes. Agora saudável, aquele senhor decidiu retribuir a ajuda. Podia muito bem ter ido embora, mas decidiu ficar para cuidar dos meus pais enquanto eu e Dilan cuidávamos da fazenda. A cada dia que se passava a saúde dos meus pais piorava. Eu e Dilan rezamos muito para Carmine. Rezamos o dia inteiro, todos os dias, para que ela ajudasse nossos pais… mas nossas preces pareciam ser em vão. Tivemos que olhar, dia após dia, nossos pais definharem na cama, tão moribundos quanto o velho senhor quando chegou a nossa fazenda. E então… um dia eu acordei e… Dilan… ele estava chorando, segurando a mão de mamãe… eles… eles não estavam mais vivos.” seus olhos lacrimejaram.
“Naquele dia, enterramos papai e mamãe. Dilan chorou o dia inteiro no meu colo. O velho senhor disse para não nos preocuparmos, pois ele tinha prometido a nossos pais que cuidaria da gente. A vida parecia ter perdido o sentido. Eu comecei a questionar Carmine. Por que ela não me ouviu? Por que não ajudou meus pais? Eu não conseguia entender. Não conseguia aceitar. Eu comecei a odiar Carmine!” ela encarou a fogueira com ódio, fazendo as chamas dobrarem de intensidade.
“Até que, certa noite, tudo fez sentido. Estava fazendo muito calor e eu não estava conseguindo dormir direito. Acabei acordando no meio da noite. Dilan não estava na minha cama. Levantei assustada e comecei a procurar por ele. Nem ele nem o velho senhor estavam na casa. Enquanto procurava, percebi uma marca no chão embaixo da cama de meus pais. Parecia com o círculo de milhos que meus pais faziam no altar de Carmine quando rezávamos para ela. Porém, esse círculo era feito de sangue e tinha vários símbolos que eu não conhecia. Foi então que reparei que esses mesmos símbolos estavam espalhados pela casa, em locais de pouca visibilidade. Não sabia do que se tratava, mas imaginava que tinha algo a ver com tudo o que estava acontecendo. Saí correndo da casa e vi todo o milharal em chamas. Sem nenhum sinal de Dilan, dei a volta na casa e então vi a imagem que me persegue todas as noites. Meu pobre irmãozinho estava deitado no meio de um círculo, igual ao que tinha embaixo da cama dos meus pais. Sua boca estava amordaçada. Seus braços e pés amarrados e presos ao chão. Ele estava tão assustado! Ele me viu! Tentou gritar por ajuda! Na mesma hora eu desesperei! Eu gritei e corri na direção do meu irmão! Mas assim que cheguei perto o velho senhor me desferiu um tapa e me fez cair desacordada. Quando acordei novamente eu estava amarrada numa árvore e amordaçada. O velho senhor se ajoelhou em cima do meu irmão. Eu tentei me soltar, gritar, tentei suplicar para aquele senhor, para Carmine. Por que fazer isso com o meu irmãozinho? Ele só tinha seis anos! Seis anos! E aquele monstro me fez olhar tudo. Ele se ajoelhou no peito de Dilan, cortou seus punhos, seu pescoço e apunhalou seu coração e eu naquele momento eu já não pedia mais para Carmine salvar meu irmão, mas para me matar de uma vez porque a dor que eu sentia era enorme. Eu não conseguia para de chorar e gritar… “
Nesse momento Azurya desaba a chorar, cobrindo o rosto entre as pernas. Zach se levanta e vai confortá-la, abraçando-a. As chamas da fogueira começam a crescer de forma não natural, rapidamente consumindo o resto da madeira e transformando tudo em brasa. Rob começou a ficar preocupado, pois um fogo tão alto poderia ser visto a um raio de distância muito grande dali e poderia atrair atenção desnecessária para o local onde estavam acampando.
Levantando a cabeça, ela enxugou as lágrimas e tirou um colar de seu pescoço com um símbolo em madeira de uma mulher com vários braços em forma de galhos, com folhas e frutos nas mãos.
“Naquela noite, aquele velho maldito que matou meus pais e meu irmão simplesmente foi embora e me deixou amarrada na árvore. Eu e minha família não éramos nada pra ele. Ele apenas pegou o que precisava e seguiu seu rumo. Foi então que eu entendi que meus pais estavam errados. Não existe bondade em todas as pessoas. Algumas pessoas são apenas más e merecem morrer. Assim que eu me soltei, eu enterrei meu irmão e segui para a cidade mais próxima. Eu procurei a Ordem dos Magos para contar o que aconteceu, pois queria saber se foi um deles que matou minha família. Descobri que na verdade o velho senhor era um necromante e que a necromancia era proibida pela Ordem. Desde então eu me juntei à ordem e prometi a mim mesma que eu nunca mais iria suplicar aos deuses por atenção. Nunca mais iria mendigar para eles por ajuda. Eu mesma teria o meu próprio poder.” ela apertou o símbolo de Carmine em sua mão, encarando-o. “Porém, nesses últimos dez anos eu continuei carregando o símbolo de Carmine comigo. Parte de mim não conseguia ainda me separar da deusa e, no fundo, ainda acreditava nela. Então, ontem, em Berespar, quando o vampiro estava matando todas aquelas pessoas, eu me peguei mais uma vez suplicando para Carmine em silêncio, pedindo para que ela tentasse ajudar aquelas pessoas de alguma forma até o momento em que eu fiquei cara a cara com o vampiro e ele me levantou pelo pescoço. Eu lembro das minhas últimas palavras para Carmine. ‘Vai se foder, Carmine!’.” ela apertou o símbolo com raiva, rapidamente queimando-o e transformando-o em cinzas.
“Eu finalmente aprendi, de uma vez por todas, que eu só posso depender de mim mesma. Eu não quero saber dos deuses. Eu vou fazer de tudo para me tornar a maga mais poderosa da ordem e eu vou caçar aquele filho da puta que matou a minha família e destruí-lo eu mesma. Não importa o preço que eu tenha que pagar, eu vou perseguir aquele desgraçado até no inferno! E todos os que se colocarem no meu caminho vão sofrer e serão destruídos sem piedade!”
“Azurya! Azurya!” Rob gritou para a maga, tentando tirá-la de seu transe de fúria. Sem perceber, a maga transformou a fogueira numa coluna de fogo de dois metros de altura. “Apaga esse fogo, por favor!”
Sacudindo a cabeça, Azurya percebeu o incidente e num leve gesto de sua mão o fogo se apagou. Ela olhou para seu copo vazio e depois para Khelgar. “Nunca mais quero beber esse vinho élfico.” sorriu para o anão, e recolheu-se em seu saco de dormir.
“Acho melhor todos dormirem. Já está bem tarde e temos um longo dia amanhã.” disse Rob.
Zach estava em pé ao lado de Azurya, limpando as lágrimas de seus olhos, tomado por uma profunda tristeza por causa de sua história. Queria abraçá-la novamente, mas a maga já se recolhera em seu saco de dormir.
“Sinto muito.” foi tudo o que ele conseguiu dizer, bem baixo, quase que para si mesmo, e foi cabisbaixo para sua cama.
“O segundo turno é meu…”, Khegar disse para Rob antes de cair num sono pesado em menos de dois minutos. Não havia a menor chance do anão acordar de madrugada para vigiar o acampamento.
Isso não era um problema para Rob. Estava acostumado com a vida na estrada e preferia vigiar ele mesmo o acampamento. Na manhã seguinte ele arrumaria um tempo para descansar, durante a estrada. Precisaria apenas de poucas horas para se recompor.
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