“Torel, eu sei o que você está sentindo. Olhe pra mim. Eu tenho um metro e dez centímetros de altura. Ninguém me leva a sério. Mas três dias atrás eu matei um vampiro. E meu amigo está ali em cima do muro matando orcs a trezentos metros de distância. Você acha que ele me aceitaria no grupo dele se eu não tivesse alguma valia? Acredite em mim. Pulque é um deus poderoso e poderá te ajudar.”
“Eu não preciso da ajuda do deus dos bêbados! Sai daqui!” disse Torel, com um tom forçado de rispidez.
“Isso aí! Tá virando homem!” o lanceiro ao lado de Torel lhe deu mais uns tapas nas costas e Torel sorriu timidamente, aceitando qualquer milímetro de aprovação que pudesse receber dos demais lanceiros.
“Ok. Como queiram. Que Pulque os proteja mesmo assim.” disse Zach, se afastando dos lanceiros.
Torel olhou para o Wee de soslaio e este deu uma piscada de volta para o lanceiro novato. Sem que os demais lanceiros percebessem, Zach pendurou uma garrafa de cerveja na cintura de Torel, em seu lado esquerdo. Torel olhou discretamente para a garrafa e depois ajustou sua posição e segurou sua lança firme como os demais. Deixou escapar um leve sorriso em seu rosto.
Obrigado, pequenino. Obrigado Pulque, pensou Torel.
Em cima do muro…
Separando os lados direito e esquerdo, havia uma guarita fechada de onde se podia despejar o óleo quente naqueles invasores que conseguissem atravessar o primeiro portão e a grade. O local era um pouco escuro, recebendo iluminação por duas pequenas frestas na parede e pelas portas entreabertas em ambos os lados. Neste momento estavam ali apenas Ezequiel e Azurya.
“Como você está se sentindo?” disse Ezequiel, terminando de fechar a atadura no ferimento da mão de Azurya.
“Bem melhor. Obrigada.” ela respondeu, olhando para a sua mão toda envolta em bandagens. “Você é muito bom nisso.”
“Três anos trabalhando para Xyxor Fystan. Acabei precisando aprender a me virar.”
Ela consentiu em silêncio. O silêncio entre os dois foi se prolongando até ficar incômodo demais.
“Precisamos nos juntar aos demais. Os orcs se aproximam.” disse Azurya, virando-se para voltar ao muro da direita, mas Ezequiel pegou em sua mão, parando-a.
“Azu…”
“Zique, eu não posso. Eu já te disse…”
“Azu!” ele disse, pegando em suas duas mãos e olhando-a fixamente. “Eu sei! Eu sei… mas você já me falou o que precisava falar. Agora é a minha vez.”
Ela ficou parada em silêncio, suspirou profundamente e lhe deu a atenção que ele queria.
“Eu nunca conheci alguém que sofreu o tanto que você sofreu.” ele disse. “Eu tinha apenas doze anos quando você se abriu para mim e me contou sobre a sua família. Aquilo me marcou. E se apenas ouvir a sua história me marcou, eu não posso imaginar como ter vivenciado tudo pode ter te marcado.”
“É pra isso que você quer falar comigo? Pra falar do meu passado? Eu não preciso ser lembrada da minha família. Eu penso neles todos os dias.”
“PORRA, AZURYA!” ele gritou, reclamando.
Ela levantou uma sobrancelha, como que dizendo: Você tem certeza que quer falar assim comigo?
“Deixa eu terminar…” ele disse em tom mais ameno, quase suplicando.
Ela suspirou mais uma vez e se acalmou.
“Eu não estou sabendo escolher bem as palavras…”
“Fala logo o que você quer falar e pronto.”
“Ok. Eu tinha dó de você. Esse foi o primeiro sentimento que eu tive. Dó.”
“Não preciso que tenham dó de mim…”
“Eu sei! E na medida que fui te conhecendo melhor eu percebi o quanto você era determinada. E a dó que eu sentia foi substituída por outros sentimentos como admiração, respeito e… paixão. Eu me apaixonei por você. Profundamente. Pela sua beleza. E eu sei que você nunca se importou com beleza e nunca se achou bela, mas eu acho você a mulher mais bela que já vi na minha vida! Mas a beleza é ainda a menor das suas qualidades. Você é brilhante! Tão inteligente. Determinada! Uma pessoa tão cheia de qualidades mas ao mesmo tempo atormentada por um passado tão terrível. E tudo isso junto, tudo o que você tem de bom e de ruim, eu me apaixonei por tudo isso. E qual não foi a minha felicidade quando eu percebi que você também tinha se apaixonado por mim. Foi o ano mais feliz da minha vida! Até que o destino resolveu nos separar…”
“Você me largou Zique!” ela disse, puxando suas mãos. Seus olhos lacrimejando. Sua voz começando a carregar uma tristeza que ela falhava em conter. “Você não entende! Eu não te culpo por ter ido com seus pais… A Ordem era uma casa fria, um lugar para dormir, comer e aprender. Mas eu não tinha ninguém. Quando eu soltei minha primeira magia, criei minha primeira gota d'água na palma da minha mão, eu estava tão feliz e tão orgulhosa de mim mesma, mas eu nao tinha ninguem com quem compartilhar e aquele momento de alegria rapidamente se tornou deprimente, escuro, vazio. Aí você entrou na minha vida e eu voltei a sorrir e um enorme vazio começou a se preencher. Eu não era apenas apaixonada por você. Eu precisava de você!” ela disse, pegando nas mãos de Zique e apertando forte. “Eu te queria para todo o sempre! Você era o meu chão! Você começou a dar um novo sentido para a minha vida. Eu comecei a sonhar em ter um futuro, casar, ter filhos, viver uma vida normal e feliz como todas as outras pessoas. E…e aí você foi embora! Você me deixou sozinha de novo!"
Neste momento ela começou a chorar e não conseguiu falar até enxugar suas lágrimas e se acalmar um pouco. “Quando você foi embora todos esses sonhos se desmoronaram e eu tive que aceitar que o meu destino não era ser feliz. A única coisa que restou para mim é vingar a minha família. E eu não posso permitir que distrações me desviem desse objetivo.” ela disse, limpando as lágrimas e se recompondo aos poucos.
Ezequiel deu um passo à frente, colocou as mãos na cintura de Azurya e disse bem perto do rosto dela. “Eu não irei embora nunca mais. Myandra nos separou quando éramos mais novos para que nos preparássemos para este dia, para o dia que ela nos uniria novamente. Eu não sou uma distração, Azu. Eu sou um apoio, uma ajuda, um parceiro, um aliado. Eu vou te ajudar a alcançar o seu objetivo. Eu vou caminhar ao seu lado e te ajudar a vingar a sua família. Juntos nós somos mais fortes e juntos nós destruiremos esse necromante e, depois que você vingar a sua família, nós poderemos focar em sermos felizes, em construir o nosso sonho juntos. Azu…” ele disse, colocando as mãos no rosto dela. “A única coisa que você precisa entender… é que eu te amo…”
Seu coração batia forte, acelerado. Suas mãos suavam frio. Sua mente entrou em conflito com o seu coração e gritava dentro de sua cabeça para empurrar o mago e enfiar um soco na cara dele, mas aos poucos o calor do beijo foi se espalhando pelo seu corpo e desmontando todas as suas defesas. As lembranças de dez anos atrás, de todos os momentos juntos, passavam a dominar a sua mente. Seus lábios macios retribuiam calorosamente o beijo de seu reencontrado amor. Se abraçavam, se beijavam ao mesmo tempo que choravam de alegria por finalmente se permitirem se amarem novamente.
“Vocês tão namorando de novo?” perguntou Zach, quebrando o clima. "Benção de Pulque?” Disse, oferecendo-lhes uma das garrafas de cerveja.
Os magos pararam de se beijar e se afastaram. Azurya pegou seu cajado do chão e caminhou de volta para o muro sem dizer uma palavra ou mesmo reconhecer a presença de Zach. Ezequiel também pegou seu cajado e andou na mesma direção que Azurya. Ao passar por Zach, ele parou e olhou para o Wee.
“Sim.” ele disse, sorrindo e piscando o olho. Saiu de lá em seguida e se juntou aos demais no muro direito.
Zach abriu a garrafa e deu dois goles. “Hoje vai ser um grande dia!” disse.
Momentos antes, no lado esquerdo do muro…
Julius e seus mercenários posicionaram-se em meio aos arqueiros, observando a marcha do exército orc a caminho da fortaleza.
“Por que vamos lutar de graça para esse Marques?” perguntou um dos mercenários para Julius, pouco se importando se os arqueiros a sua volta o ouviriam e, não apenas o ouviram, como alguns ainda o olhavam com desaprovação.
Julius manuseava o arco, testando a sua qualidade, enquanto respondia o questionamento de um de seus homens. “Os deuses jogam um eterno jogo entre eles no qual nós mortais somos meras peças descartáveis. Mas, se soubermos observar bem, perceberemos os movimentos dessas peças…”
Neste momento, se surpreendeu ao ver uma flecha voar pelo céu, cobrindo uma distância impossível e derrubando um dos orcs ao longe. Era a primeira flecha atirada por Rob. Vários gritos de comemoração vieram do muro direito e poucos segundos depois contagiou o muro esquerdo. Os arqueiros em volta deles todos comemoravam.
Impossível. Incrível… pensou Julius, se virando então para o mercenário ao seu lado. “… e ao perceber os movimentos das pecas…”, disse, apontando o dedo em direção aos orcs “…podemos identificar grandes oportunidades. Eu me recuso a ser uma peça no jogo dos deuses. Eu farei o meu próprio destino. E do mesmo jeito que eles usam dos mortais para seu próprio proveito eu pretendo usar do jogo deles para o meu.”
Viu mais uma flecha voando e em seguida mais um orc sendo abatido. Era a segunda flecha que Rob tinha atirado. Os arqueiros novamente comemoravam, desta vez seguidos pelos escudeiros nas escadas, batendo suas espadas em seus escudos.
“Lutem bem, sejam espertos e saiam vivos da batalha. Apenas após a vitória, poderemos ver como melhor nos movermos nesse tabuleiro para nos beneficiarmos.”
Encerrou com uns tapinhas no ombro de seu companheiro de muitas jornadas, que consentiu em silêncio para o seu líder. Ambos voltaram-se à frente da fortaleza a tempo de verem a terceira flecha de Rob voar e, tão certeira quanto as primeiras, derrubar mais um orc. O nome do arqueiro ecoava pela boca de todos da fortaleza.
Não sei onde Xyxor encontrou esses caras, mas eles são bons, pensou Julius e tentou pegar sua luneta para observar mais de perto os orcs, mas não a encontrava em lugar algum.
De volta ao momento presente…
A fortaleza estava cada vez mais próxima e, com isso, a vitória sangrenta que iria oferecer a Nazarth, o deus da morte. Não entendia, porém, por que o necromante tinha tanto interesse por essa fortaleza. Ela estava muito afastada da região onde aconteciam as grandes batalhas, ao nordeste.
Humanos patéticos, pensou Gulk’arik. Acham que com seus minguados arqueiros poderão derrotar meu vasto exército?
Chegando a duzentos metros da fortaleza, ele levantou sua mão e um de seus guerreiros soou a ordem com a trombeta. Todo o exército parou, organizado em filas e urrando um grito em uníssono. Depois de muitos séculos lutando contra os humanos, os orcs aprenderam a copiar seus métodos de batalha, substituindo seus ataques selvagens e caóticos por ataques estratégicos e planejados.
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