Enquanto isso, no terraço da escola onde costumava ficar junto da Aiyra nos intervalos, Raissa estava sentada, agora sozinha, comendo algumas guloseimas enquanto escuta música nos fones de ouvido. O azul do céu estava tão bonito que a sensação era de estar voando no ar e parecia que nada poderia atrapalhar essa paz.
Até que, alguém parece se aproximar, atrapalhando essa solidão ocasional como um imã de pessoas que poderiam estar imersas na tristeza.
“Ah, o professor Hugo!”
A nota mental chega ligeiramente, fazendo Raissa, logo depois de ser cutucada, retirar um dos fones de ouvido e abaixar a música para reparar no que seu professor estava dizendo.
— Oi, Raissa. Te atrapalho lanchando aqui com você?
— Que nada, profe. Pode ficar!
A menina ajeitou sua postura, puxando seu corpo um pouco pro lado, usando seu quadril. Sendo assim, o homem educado de óculos sentou numa pequena distância com a cacheada, com suas pastas o acompanhando no colo. Levando seu olhar para os doces de Raissa, ele não perde tempo para aliviar a tensão.
— Não sabia que você também era uma formiguinha?
— O quê? — Ela busca algum detalhe nela que evocava um sentido naquele comentário repentino, até alocar seu olhar no seu colo e se ligar que ele estava falando dos doces. — Ah! Seu bobo…
— Relaxa, guria. Eu também sou movido a doces e café quando estou corrigindo as provas de vocês. Não exagerando, tá liberado viver a vida da maneira mais doce possível.
“Que esquisito…”
O pensamento de Raissa foge da sua real resposta.
— Profe’, falando desse jeito, parece que você é um “porra louca” fora da escola.
— O quê?! — A tonalidade da pele dele começa a ganhar semelhanças com um tomate e as orelhas dele começam a soltar fumaça como uma chaminé. — Olha, Raissa. Eu não sou mais assim, viu? A vida adulta cobra, sabia?
— “Não é mais”, então quer dizer que você já teve sua fase garanhão? Hm…
— Isso é meio normal pra todo jovem, né? — De repente, ele deixa a provocação como uma resposta para sua aluna. — Ou isso é cometer algum crime?
A única forma de responder aquele tom bobão do Hugo era com uma risada crescente que contaminava aqueles dois como uma praga que leva eles a um clima agradável. Até que, o barulho cessa, deixando uma brecha para um questionamento sério que instigou o professor.
— Raissa.
— Oi.
— O que aconteceu com a Aiyra? Ela não veio hoje logo no dia do Festival. Ela tá bem?
Um respiro intercala aquele momento.
— Tá sim. Ela me avisou mais cedo que não viria porque iria resolver uma pendência pela tarde e depois encontraria comigo no Festival. Parece que ela resolveu faltar hoje pra arrumar energias para essa “tal coisa”.
— Nossa! Espero que ela consiga resolver essa questão, então. — Hugo deixa escapar um sorriso frágil como porcelana. — Eu até senti que você estava quieta demais hoje com a ausência dela.
— Não calamos a boca, né? Pode falar. — O professor foi fortemente enquadrado pelo olhar invasivo da aluna.
— Que nada! Oxi! — O professor coloca a mão no cabelo — Mas… bem, posso dizer que… um pouquinho? — Ele afirma com receio enquanto faz um gesto com os dois dedos.
— Mas tipo, eu me pergunto, o que seria tão importante que faria ela faltar aula pra resolver?
— Boa pergunta.
— Pois é! Mas eu tô feliz!! Vou encontrar um outro amigo meu que vai tocar no Festival.
— Sério? Que legal!
— Sim!! O Festival vai ser top!! Vai dar tudo certo!!
As esperanças afloram como raízes que se espalham pelo entorno daquela jovem alegre pelas suas atuais amizades que eram responsáveis por gerar expectativas no próximo evento especial que reuniria elas, e agora, não restava mais nenhum dia de espera.
(...)
A luz azul predominante da janela da lavanderia ilumina aquele pequeno espaço que estava ocupado pela garota de cabelos pretos colocando algumas roupas na máquina de lavar. O ar úmido daquele ambiente disfarçava a temperatura exterior de uma maneira que parecia que o mundo seguiria entregando situações ideais para nada ser estragado naquele dia.
Após deixar a máquina pré-programada para bater, Aiyra caminha até o sofá e entrega seu corpo para descansar um pouco.
“Os últimos dias foram estranhos...”
Fazia nove dias em que dormiu com sua melhor amiga e havia transferido, mesmo que sem intenção, a responsabilidade de proteger seu passado pra dona daqueles lindos cachos. A gentileza que amaciou seu coração foi diferente de todas as sensações de proteção que sentiu desde quando fugiu do ataque dos caçadores de recompensa no entorno de Araci.
Imersa nas recordações do sentimento que a contagiou durante o momento que sua companheira emitiu aquelas afirmações junto do calor daquele abraço memorável, apenas uma reflexão passava por sua cabeça: Será que é justo continuar enganando seu coração com outra pessoa quando na verdade ela não é mais sua prioridade?
“Aquela desculpa que eu disse no terraço pra Raissa, cada vez menos faz sentido pra mim...”
Aiyra junta o ar e solta três vezes até seu temperamento normalizar, sendo assim, quando havia se dado conta, ela já tinha mandado uma mensagem para seu namorado Gabriel por puro instinto.
Aiyra
Amor... boa tarde.
Você tem algum plano pra hoje?
Eu preciso conversar com você o mais cedo possível.
11:35✔
“Pelo visto, nem mesmo ligar o celular ele deve ter ligado...”
Ela pressiona o celular com um esforço de um abraço, cobrindo seus lábios retorcidos que estavam prontos para chorar incansavelmente, porém, reunia forças com seus olhos fechados. Por conta das suas últimas conversas com Gabriel, recordava que o namorado havia algo marcado com as famílias serventes naquela noite, posto isso, apenas dele visualizar aquela mensagem já seria um milagre absurdo.
“Seria irônico você chegar pela janela assim como naquele dia, né?”
Naquele instante, a sensação do seu coração era parecida com um tomate sendo esmagado por mãos nuas, já que seu órgão não era fraco, porém, o peso da aflição era como moedor. Doía muito raciocinar, só que a única possibilidade de futuro vinha numa nova certeza que deixava a garota sem ar:
— Eu vou... ter que terminar com ele.
(...)
Luiz Buloke está sentado em sua cadeira de escritório, observando o mapa da cidade enquanto bebe seu café. O caminho que rumariam até o esconderijo naquela noite não era tão distante assim da Zona Oeste da cidade, região, na qual se localiza as mansões tanto da família Buloke quanto Huberi. Com o ponto de encontro definido na estrada bem na fronteira para Floresta, eles apenas precisavam seguir a rota mais furtiva para evitar futuras dores de cabeças do plano elaborado sair do planejado.
A tensão aumenta progressivamente assim que o ponteiro do relógio indica o horário de meio-dia. Ao menos, seu filho já havia faltado para focar nos seus preparativos para evitar deslizes bruscos, porém, como será que estavam os nervos dele para participar daquele mar de sangue?
— Hm...
O líder da família Buloke já havia tomado sua decisão de manchar a conduta do seu filho, só que isso não anulava um pesar em imaginar Raimundo cruzando a linha que foi estabelecida naquela guerra e se perder na sede de sangue insaciável como aquelas bestas em formato de pessoas que atacaram Paschoal Oslo.
Pegando como exemplo, o usuário de essência Paulo Hernanez que segundo relatos, tinha atacado inúmeras pessoas inocentes em suas residências por conta do seu ideal. Bem, esses atos são rechaçados por todos envolvidos naquela batalha, sendo assim, Luiz teria que estar presente em quase todos os momentos para relembrar o código de conduta que já ensinou para seu filho nos treinamentos.
Em primeiro lugar, perceber a intenção nos olhos de quem você está atacando e saber identificar a fúria assassina que salta as pupilas.
Segundo, analisar a situação que a pessoa está, e assim, evitar atacar alguém que esteja apenas querendo se defender.
E terceiro, também por último, se possível apenas desmaiar os indivíduos que não tem chance de defesa dos golpes como crianças, moradores ou pessoas debilitadas.
Seguindo essas três condições, Luiz Buloke raras vezes se colocou numa situação de puro arrependimento por engano. Até porque, quando decidia cruzar a linha de decidir exatamente sobre a existência de alguém, ele tinha que ter em mente que estava perdendo uma parte de si, já que aquelas pessoas perderiam a oportunidade de seguir com suas famílias e amigos. Então, a mentalidade dele sempre era: eles ou eu.
Tornando-se cada vez mais, uma parte daquele campo hostil cercado de sangue, injustiça e hipocrisia. O que não deixava de ser irônico, dado que... onde havia humanidade em prezar alguém sem amparo depois de perder seus pais na sua frente? As possibilidades de um futuro desprezível seriam inúmeras como: seguir um caminho de vingança, enfrentar um trauma profundo pro resto da sua vida ou apenas desistir de tudo, resultando numa tragédia ainda mais melancólica.
Mas no fim, era mais fácil cobrir esses pensamentos com o lençol da desculpa de chegar a salvo para cuidar da própria família. O outro? Não era “digno” o suficiente para conseguir o privilégio de ser poupado, até porque, não entraria no campo de batalha se não estivesse pronto para morrer. Para Luiz, os oponentes eram apenas loucos que queriam mudar o “normal” a força como animais com raiva.
Toc. Toc.
Interrompendo aquela inércia de Luiz, que estava com uma nuvem de reflexões sobre sua cabeça, quem será que estava na porta?
— Layla! Tá tudo bem?
— Sim, não é nada na casa não. — O semblante da doméstica traz uma seriedade mesclada com uma preocupação que fazia tempo que o Líder Buloke presenciava. O assunto só poderia ser um. — Eu quero conversar com você a sós.
— Tranquilo. Pode entrar! — Luiz disse enquanto estendia os braços, tal como um tapete vermelho para a ruiva entrar.
Assim, ela aceitou o convite caminhando ligeiramente com os dedinhos das mãos unidos. Naquele momento, Layla estava utilizando sua roupa de serviço composta por um vestido laranja com uma manga tomara que caia com alguns babados, sobreposta por um avental branco também com babados e alguns lacinhos e sapatos pretos que contrastavam com o excesso de branco daquele uniforme.
Era raro pra Luiz presenciar Layla utilizando aquele uniforme, porque ele odiava encher o saco dos funcionários da casa quando os mesmos estavam no meio do expediente, por pura etiqueta mesmo. Sendo assim, as únicas vezes que trombava com ela nesses últimos anos era quando a moça estava indo embora ou no momento que chegava na casa de manhãzinha antes de levar as crianças na escola.
— O que aconteceu com os meninos? — Luiz não perdia tempo, questionando-a diretamente.
— Eu não estou aqui para conversar sobre o que aconteceu... estou preocupada com que irá acontecer com você levando o Raimundo para essa invasão.
— Olha, esse é o destino dele. Não adianta tentar passar a mão na cabeça dos dois sempre quando surge oportunidade. Não é por aí.
— Senhor Luiz, não quero parecer chata e entendo que seus planos incluem ele também. Porém, tudo isso passava pelo pressuposto que ele estaria com a sua marca da vontade despertada, né? Mas, nós dois sabemos que essa não é a verdade.
Era um fato incontestável que não tinha nenhuma brecha para desvios, sendo assim, Luiz deixou o ar acumulado se soltar.
— Você tá certa. Só que mesmo assim, se lembre que eu treine ele. Eu não seria um pai tão descuidado ao ponto de deixar meu filho partir pra um ataque que ele não estivesse pronto.
— Eu sei, senhor Luiz. Estou aqui o tempo todo, presenciei os treinamentos que você forneceu pra ele. Mas ainda com isso, eu tenho medo de deixar ele sozinho apenas com você e os outros membros das famílias que irão participar desse ataque. — A fixação dela com esse incômodo perturbava o líder Buloke de uma maneira que caso ele fosse algum personagem de RPG, estaria com a barra de “paciência” no limite.
— Tá, onde você quer chegar com isso?
A mulher colocou a parte superior do seu corpo sobre a mesa e estendeu as mãos para estarem à cima das mãos do seu chefe, com seus olhos de cor laranja assemelhando-se a uma maré baixa e calma.
— Quero que você me deixe ir pra invasão também.
Aquele pedido era surpreendente sóbrio, apesar do amor que Layla sentia por aquelas duas eternas crianças que fizeram ela amadurecer como um ser humano. Reforçando essa linha de pensamento com as imagens hipotéticas daquele jovem tão bonzinho sendo encurralado por um enxame de inimigos dispostos a cortá-lo em pedacinhos.
Sendo assim, não tinha como ignorar essa possibilidade e ir pra casa depois de um expediente sabendo que a qualquer momento a mensagem de texto escrita “De maneira inesperada, o Raimundo foi atacado pelas costas e está numa situação de quase morte” poderia ser recebida.
Só a notícia de que algum dos irmãos Buloke estaria em sério perigo iria ser capaz de fazer a fúria mover seu corpo para despertar uma figura que poucos conheciam.
“Hm... Igual daquela outra vez...”
As únicas mudanças da situação atual para a que se instaurou anos atrás eram a estatura de uma jovem moça ainda entrando na fase adulta e o uniforme da família Buloke que antigamente tinha a cor primária como o preto, antes de ser trocada pelo branco que se consagrou a cerca de dois anos. O semblante congelante e centrado ainda era o mesmo, só que agora, a decisão dependia apenas dele para liberá-la, então...
— Eu permito. Porém, com uma condição.
— Pode falar. Qualquer coisa que você delimitar, eu aceito sem nem pestanejar.
“Por eles, eu aceito!”
Ela conseguiu a resposta que queria, sendo assim, não importasse qual a condição do líder Buloke, tudo seria uma extensão do seu trabalho até então. Pois, apesar do vínculo empregatício com a família amarela (como a cor predominante do brasão), seu gás para continuar trabalhando naquela casa transbordando amor e carinho eram aquelas conversas doces em que compartilhava seu breve conhecimento sobre a vida para aqueles jovens que poderiam aproveitar de maneira diferente dela. Posto isso, compreendia o tomar das dores dos jovens Buloke que Luiz, como pai, incorporava por todo esse tempo, entretanto, essa certeza era como um curativo para uma ferida funda; não conseguiria progresso sem um verdadeiro remédio.
Esse remédio que estava distante, mas que Layla carregava nas suas falas com esperança. Pequena, solitária e carregada da lama da hipocrisia.
— Você terá que acatar minhas ordens e seguir meu plano à risca. Dentro disso, não sofrerá punições. — A citação fúnebre parece imbuir ectoplasma pelo ambiente como uma fumaça sufocante de uma câmara de gás. Só que, afogar alguém que seja parte do oceano é o mesmo que alimentá-lo.
Então, absolutamente nada chega a interferir na sua postura. De peito aberto para qualquer empecilho com uma naturalidade que soaria bizarra para algum indivíduo que surfasse no seu sorriso acolhedor.
Layla definitivamente... escondia coisas que só ela e Luiz Buloke conheciam.
(...)

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