Camuflado nos arbustos no meio de uma subida de uma colina, o grupo formado para atacar o esconderijo dos Seguidores de Naya observa o perímetro abaixo de longe.
— Alô, Luiz. Estão todos a postos?
— Positivo, Arthur. — Responde o líder Buloke a emissão do comunicador de voz.
Naquele momento, após todos estarem preparados para o ataque, houve uma separação daquela enorme equipe em dois esquadrões para dispersar as suspeitas inimigas de onde viria aquele ataque. Sendo assim, Raimundo, Luiz, Layla e Johan decidiram partir pela floresta, parando no topo da colina íngreme, tendo um distanciamento maior do esconderijo e Gabriel, Arthur e seus homens serventes a família Huberi chegaram pelo caminho por fora da cidade, se distanciando da pista, onde normalmente havia escoltas e mais monitoramento para possíveis invasões.
Essa estratégia servia necessariamente para possibilitar uma facilidade maior para os Huberi alcançarem a liderança daquele esconderijo como uma nomeada “equipe de frente” e assim, a equipe de Luiz e Johan serviria como um grupo de “reconhecimento” do perímetro, contendo possíveis reforços pelo entorno, tendo que invadir e conter as massas que ficavam ali, manchando bem mais as mãos de sangue.
— Pai. Sabe mais ou menos quando vamos ser liberados? — Raimundo, de cantinho, questiona num tom baixinho.
Luiz mexe na folhagem para conseguir liberar sua visão do local. Até então, tinham dois membros em patrulha e grupo de pessoas conversando com um garoto moreno segurando uma prancheta do lado de uma caminhonete. Não dava pra tentar nada com tantas pessoas ali.
— Eu imagino que eles apenas estejam esperando aquele carregamento partir primeiro.
— Faz sentido.
Tendo sua resposta, Raimundo abaixa sua cabeça para olhar o solo abaixo cambaleando com a visão turva enquanto respira profundamente para conter seus nervos.
“Respira... tá chegando a hora, você não pode fraquejar!”
Relutante consigo mesmo para continuar enterrando suas preocupações e medos para não virem a tona, o garoto tenta permanecer no presente já que decidiu abandonar sua possível alegria em função daquele momento e objetivo. Não podia errar... não mais.
Deveria ser mais como Gabriel e não ficar com os olhos nas costas dele, até porque, lembrava de si como um tipo de piada elaborada extensamente.
“O pai disse que estava tudo certo, então está tudo certo.”
Apagava a imagem da sua irmã em aparente desespero, correndo pra fora de casa com uma sensação amarga, entretanto, cobria sua perspectiva com um fino lençol claro e fechava os olhos para tentar enganar a si mesmo que a luz do Sol não o alcançava. Tal como, também se empenhava para empurrar aquela última memória agressiva na biblioteca, fechando seus olhos e pondo a mão sobre o peito. Caso ele deixasse aquelas emoções tomarem conta, elas desceriam rasgando como uma lâmina de liquidificador.
À vista disso, tentava esquecer aquele assunto de...
9 dias antes...
Aliviando um pouco a potência do Astro Rei com um clima bem mais ameno do que quando saíram da escola, aquela zona de alimentação com uma maior ventilação e extenso espaço entre as mesas contrastava bastante com o meio das estantes. Porém, apesar dessa temperatura, a última reclamação de Clarisse falava mais sobre o quanto ela estava se superando para provocar Raimundo do que qualquer outra coisa.
“Aí... Por que esse frio na barriga? Sempre foi assim.”
Concentrando a sua tensão em seus dedos no pequeno intervalo da fila de sorvete, Raimundo ainda tenta afastar aquele nervosismo bobinho que sempre sentia antes de conversar a sós com ela.
— Próximo!
Apressando o passo para resolver sua vida, não perdendo tempo, assim, Raimundo pede dois sorvetes de potinho de Morango e quando se dá conta, já está retornando onde sua companheira havia segurado o lugar cuidando da bolsa.
Desejando uma visão privilegiada enquanto conversavam, a jovem loira havia escolhido um balcão colado na janela, deixando a paisagem do parque do centro explícita.
Raimundo respira tão leve que soa imperceptível, todavia, sua presença acaba sendo sentida alguns passos antes dele chegar e então, Clarisse girava a cadeira esboçando uma expressão de surpresa ao mesmo tempo que batia algumas palminhas de euforia.
— Aí, que maravilha!! — Ela anseia pelo sorvete como uma criancinha feliz até segurar o potinho. — Depois eu te transfiro, viu?
— Precisa não, Clarisse. Tá em casa.
— Precisa sim.
A seriedade na rebatida comove o moreno, agora sentado na cadeira, que não consegue segurar a singela risada para essa resposta mais monótona na coletânea de experiências daquela dupla tão complementar quanto o reflexo no espelho.
Posto isso, Clarisse corta qualquer brecha de torta de climão.
— Mano, olha aquele cara, velho!
— Quem?
— Ali, todo de preto!
Buscando atenciosamente aquele alvo dos comentários de Clarisse, o Buloke encontra um cara alto de pernas longas utilizando uma calça cargo preta com detalhes brancas e um moletom de gola alta.
— Que isso, ele não tá feio não cara.
— Não é questão de estar feio, Raimundo! A roupa é bonita pra usar... no Inverno!! Ele tá usando esse negócio nesse calor!
— Há, há, há!
— Para de rir, cara! Eu fico desesperada só de olhar esse tipo de coisa.
— Há, há, há... como não rir?! E eu aqui pensando que você iria humilhar o senso de moda do cara. Há, há, há!
— Ah, não tem como, mano! Eu me irrito total vendo as pessoas usando roupa quente assim nesse calor! Sua irmã é a mesma coisa, viu?
— A Raissa? O que tem ela?
— Ela usando aquelas meias-calças no Verão me dá uma profunda agonia, porque tipo, apesar dela não ter as mesmas curvas que eu, as coxas dela devem suar pra caramba. Aí, que agonia!
— Hm... então tá explicado.
— O quê?
— O motivo de você andar com suas pernas sempre descobertas, uai.
— Ah, eu gosto. Nem é muito por necessidade não, é meu estilo mesmo! Por esses motivos que eu gosto tanto do Verão, sabe? — Seguindo a normalidade, pouco percebendo o comentário com atenção, Clarisse cruzando os braços, até que, rebobinando a fita como uma caçadora de Óvnis em vídeos antigos, o timbre dela muda na hora. — Pera aí, isso quer dizer que o senhor fica de olho nas minhas pernas, é?
Raimundo sentiu o constrangimento se contaminar como um vírus, então, logo escondeu suas feições do divertido olhar de julgamento da loira.
“Ele todo acuado é tão adorável...”
Mesmo com o esforço do seu amigo, dava pra perceber a vermelhidão das orelhas dele. Da mesma forma que eles interagiam desde quando se apresentaram um pro outro no passado, Clarisse não conseguia esconder seu entusiasmo contemplando aquela camada tão fundamental da razão que escorava suas provocações: sentia prazer em construir aquelas paredes para prender aquela pequena presa.
De acordo com esse pensamento, supor os motivos por ele parecer tão distante depois de entrar em contato com a sua família lhe causava um real sentimento de impotência que devia ser resolvido por mais que tentasse não se envolver.
“Eu gosto dele assim, caramba!”
Odiava pensar que ele estaria passando por algum sofrimento, ou até mesmo, iria entrar num caminho que o afastaria do que causa felicidade pra si. Portanto, não contendo seu nervosismo ao comparar os dois momentos, Clarisse moveu suas mãos antes do que havia previsto, acariciando o braço do jovem Buloke, surpreso, que vira seu corpo de imediato para a garota.
— Clarisse... O quê?
— Rai... tem alguma coisa acontecendo em casa?
— Ah?! Como assim?
— Você anda estranho demais ultimamente... É alguma coisa em casa? Ou... — A boxeadora encara no fundo dos olhos de Raimundo tal como se presenciasse a própria alma dele com seu toque de gentileza — tem alguma coisa a ver com a ideia que eu e o João tivemos no Festival? Tipo, se você não se sente confortável, a gente pode mudar as coisas, sem problema nenhum.
— Não, Clarisse. Não precisa...
— Eu só não quero mais ver você com essa cara!
— Que, cara?
— Essa sua cara de indiferença como se tivesse cumprindo um papel por consideração a gente! Se você não está se sentindo bem, fala caramba! A gente tá aqui e eu não quero que você se sinta pressionado a forçar alguma coisa! Eu quero te ver feliz.
“E te fazer feliz, seu imbecil!”
O coração da boxeadora dizia, por mais que não tivesse total certeza disso nos seus pensamentos. Não passava de questão de tempo para perceber.
Ecoando aquelas palavras na cabeça, Raimundo logo relembrou do olhar do seu pai na manhã seguinte pós retorno do último ataque aos Seguidores de Naya e pensou o quanto ele trilhou um caminho de sangue para proteger os sorrisos de quem era importante pra ele. Assim, o jovem cobriu a possiblidade de ser abrir com sua melhor amiga com diversas nuvens carregadas da desculpa de Luiz.
“Não posso hesitar... Tenho que proteger a Raissa e a Mamãe...”
Sem os poderes de graça que haviam desaparecido, seu pai seria uma peça inutilizável em comparação a antes no campo de batalha, dado que seus oponentes carregavam a força destrutiva da “Essência” como uma larga vantagem para vencer os embates. Logo, deveria ao menos tentar se arriscar em combate para cumprir seu “dever” como um futuro líder da família, colocando a cara a tapa mesmo não tendo despertado as cores da sua marca da vontade.
“Além disso, naquele dia, na Paschoal Oslo era eu que estava em perigo... Mas, eu estava lendo na biblioteca após um dia cansativo... poderia ser a Clarisse no meu lugar ou até pior, poderia ser o João e mais algum outro aluno inocente que seria brutalmente assassinado nessa disputa. Apenas por estudar numa escola com tanta história que eles sequer sabem...”
O garoto sente a pressão nos seus dedos, pois aquela mão macia estava tão quente que em condições normais seria o convite perfeito para Raimundo esquecer de todas as responsabilidades que seu pai lhe delimitou e permanecer tranquilo junto da garota que ama e seu melhor amigo.
“Eu não posso dar pra trás agora...”
As mãos se soltam e dando o primeiro passo a caminho de fora de onde aqueles braços o envolvessem, Raimundo se ergue e concede suas últimas palavras a quem tanto se importa com ele.
— Eu estou bem, Clarisse. Inclusive, obrigado pelo rolê de hoje. Mas... eu não posso parar agora. Não mais. — Agora estava tudo resolvido dentro de si, estava determinado a seguir mesmo que ela o envolvesse entre os braços.
“Eu não quero ouvir isso! Eu quero ver você feliz!”
Percebendo a distância se estendendo como um fio arrebentando, antes que possa terminar de raciocinar, Clarisse toma a frente do melhor amigo e o abraça com força, tal como envolvia suas almofadas quanto enfrentava crises. Não queria largar, não queria deixar aquele garoto tão puro dar lugar para alguém que ela não conhecia mais.
— Não sei o porquê, mas sinto que te largando eu vou deixar você cometer alguma besteira. Eu não confio nos seus pais. Mesmo.
Ao mesmo tempo que fingia para si mesmo que não foi afetada pelo Sandalismo, relembrava da trajetória da sua mãe que apesar das conquistas e da negociação que fez para sobreviver, antes do ponto de virada, foi configurada pela violência e ocupação dos espaços e também da vida de pessoas que estavam sujeitadas a viverem numa subcategoria da sociedade. Até porque, o possível assassinato de sua vó que levou sua mãe, Rosa Alvarez se tornar uma líder popular contrária a maneira cujo os “donos” daquela terra tratavam eles como fantoches.
Já que, como a história pouco contada de Sagitta passada por poucos moradores diz, Isabelle Alvarez era uma simples camponesa que detestava bebida por conta do odor que sentia das vielas de Tradições (antiga metrópole que ocupava os territórios de Carpe Diem e Pilares), o motivo por trás desse ódio se calcava na infância difícil que teve como atendente de bares, passando por inúmeras situações constrangedoras. Sendo assim, provavelmente Roger Adonis, o líder da família Adonis da época tinha inventado uma desculpa e havia a assassinado por reparar que ela tinha revelado para algumas pessoas de confiança que Rosa Alvarez era filha do nobre numa relação forçada que ela repudiava veementemente.
Por algum motivo, anos depois de liderar esse movimento contra as famílias serventes, sua mãe mudou a postura mais rígida contra eles e seu pai havia aceitado residir em Pilares, lugar onde havia sido determinado que estaria sobre liderança das famílias serventes ao contrário de Carpe Diem, que fora liderada por um dos cabeças da revolução na época, assim, agradando ambas as partes que estavam inconformadas com o passado.
Só que, Clarisse ao descobrir todo esse passado pela boca de seu pai, discordou da decisão da sua mãe e então, adotou apenas a indignação que ela nutriu durante um período, repudiando a fama que algumas figuras de pessoas que adotam essa doutrina que tanto prejudicou inocentes a diante. Apesar de nunca destilar nenhum tipo de intolerância a essas práticas, afinal, ela respeitava as escolhas de cada um.
Mas agora, ela não queria respeitar a possível escolha de Raimundo...
Tinha calafrios em pensar na imagem daquele jovem doce se transformando no que ela imaginava daquele nobre nojento que tirou o pilar da sua mãe e transformou a vida dela num inferno.
— Fica comigo, Raimundo.
De repente, a boxeadora fixa seu olhar no jovem, enquanto une forças nela mesma para não deixar as lagrimas escaparem. Tinha que ser forte para passar confiança a ele, porém, seu olhar era tão melancólico que abalou as estruturas do seu amigo.
A proximidade entre os lábios dos dois, a respiração quente que ressaltava o forte sentimento que envolvia eles, as palavras que Clarisse emitia e principalmente, as mãos de dela sob o rosto dele... Fazia, de fora, parecer que eles eram um casal bem próximo de se beijarem numa declaração de amor, mas, o conhecimento deles para com o outro era tão forte que sentiam o incomodo e medo do parceiro como se fossem eles próprios.
— Clarisse... eu não posso...
Seu peito apertou tanto que o medo de o perder fez ela
perder a cabeça dando um beijo em Raimundo. Um beijo cercado pelo medo,
desespero e servindo como uma última tentativa para manter ele ali. Não
obstante, Raimundo retribuiu, fechando os olhos e entrelaçando sua língua com a
da jovem loira. Seu amor estava mais claro do que nunca e esqueceu da sua convicção
por um momento, deixando ser dominado pela intensidade da garota cheia de
atitude. “Não vai embora” é o que parecia ser dito por aquele gesto no calor do
momento.

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