Num cair da tarde, Sara descia a longa escadaria que conduzia ao subterrâneo de sua casa, equilibrando com cuidado uma bandeja com duas xícaras, um bule de café e um potinho de açúcar. Lá embaixo, percorreu um corredor estreito de paredes brancas até se deparar com uma porta dupla de ferro entreaberta. Usando o ombro e as costas, empurrou uma das faces pesadas, somente o bastante para conseguir passar. Adentrou um salão espaçoso e de teto alto, construído com blocos de pedra e colunas quadradas que se erguiam nas laterais. Era uma área de treinamento para magos e auranos — um luxo típico das famílias de ouro. O local era iluminado por algumas lâmpadas dispersas que nenhuma escada poderia alcançar.
Contudo, o salão em si não era o foco no momento. Sara se dirigiu para uma porta à esquerda. Ao abri-la, revelou um recinto de estantes abarrotadas, caixas de madeira e objetos cobertos, tudo cuidadosamente encostado nas paredes, deixando o centro do ambiente livre. Alana, de costas, estava sentada em uma banqueta, pincel na mão, contemplando o quadro que elas haviam prometido “pintar juntas”.
— Bem na hora, Sara. Minha criatividade está implorando por um pouco de cafeína — disse a irmã, girando na banqueta para encarar a recém-chegada.
Alana quase não havia dormido na noite anterior. Precisava finalizar a tempo aquele quadro para o aniversário do pai, e faltavam apenas algumas horas para ele chegar do trabalho. Por isso, Sara não ficou surpresa ao observá-la encher a xícara até a borda, embora tenha arqueado as sobrancelhas ao vê-la despejar cinco colheres de açúcar.
— Como tu consegue beber isso?
— Pela boca.
Sara revirou os olhos, aproximando-se do cavalete para observar o progresso de Alana. Nos últimos anos, o interesse da irmã pela pintura havia crescido de forma constante, talvez como uma tentativa de compensar a falta de talento para a música. Uma ironia, considerando que, para Sara, era a música que preenchia a ausência de uma aura que Alana ostentava com tanta naturalidade.
O quadro estava quase pronto. A figura de Camilo, vestido em seu uniforme branco de aurano, rodeado por uma aura escarlate, estava ao lado de uma mulher, também com roupa militar, envolta por uma camada de energia rosada, mas cujo rosto ainda não fora desenhado.
— Eu adiantei os detalhes da roupa, mas não quis desenhar o rosto da mamãe sem te ouvir — comentou Alana, entre um gole e outro de seu café açucarado. Os bolsos, botões, cintos e bordas desenhadas no traje aurano, nas cores correlatas à aura de cada um, estavam realmente bem feitos.
— Vamos terminar então — disse Sara, sorrindo enquanto se dirigia ao seu violino, guardado no estojo próximo a uma estante.
Os minutos seguintes foram preenchidos com arte. Não era a primeira vez que Alana usava sua música como inspiração para as pinturas dela. A irmã gostava de dizer que o som do violino era como duas mãos que usavam os braços dela como pincéis, transformando Sara em uma espécie de coautora da obra. E aquilo que Sara pintava com sua melodia naquele instante era o rosto de sua mãe, uma figura quente e acolhedora que sempre lhe soprava inspirações quando tocava. E não foi diferente dessa vez, embora a ocasião especial tenha temperado seu dom musical com mais energia.
— Pronto. Acabei! — exclamou Alana, com um brilho de realização nos olhos.
Sara parou de tocar e correu para admirar o quadro. O rosto da mãe estava igualzinho às fotografias. Diferente das filhas, ela tinha o cabelo curto, e diferente de Sara, era todo colorido, quase igual ao da Alana. Mas o tom de pele e os lábios finos foram passados para as gêmeas, mais parecidas com a mãe do que com o pai.
— Ficou perfeito — elogiou Sara. — Nosso pai vai adorar.
— É claro que vai. Aposto que vai pendurar na sala… Hm, mas vai ser ruim se alguém perguntar quem pintou — ponderou Alana, hesitando.
A irmã assinava todos os seus quadros com as iniciais “F.D”, uma escolha que preservava o anonimato e mantinha a pintura como um hobby, longe das expectativas de uma carreira aurana, que lhe era predestinada como uma fidalga.
— A mamãe era uma violinista. Não vejo por que você não pode ser uma pintora — encorajou Sara.
— Porque o violino dela era um artefato divino. Fazia parte do seu arsenal de magia.
— Quem sabe não existe um pincel mágico por aí? — brincou Sara, pegando um pincel molhado de tinta.
— Talvez. Mas o único artefato que vamos herdar é o violino de Buarque. Quer dizer, que você vai herdar.
A posse de um artefato divino era individual, mesmo pertencendo a uma família fidalga. Mas ele só poderia ser usado por alguém que fosse mago ou aurano. Para as gêmeas, isso significava que teriam que estar na Academia para reivindicarem a herança da mãe.
— Tem certeza que quer deixá-lo pra mim? — perguntou Sara, ciente de que, por tradição, o membro mais habilidoso da família era quem deveria ficar com o artefato. E ela sabia, só de olhar os cabelos da irmã, que Alana seria uma maga e aurana muito mais talentosa.
— Não sou eu quem toca violino — respondeu Alana. Pegou o pincel da mão de Sara e começou a limpá-lo. — Eu sou a que pinta de vez em quando… e que precisa ser uma aurana tão forte quanto Eliza Buarque. Enquanto eu cumpro as expectativas de uma família de ouro, você fica com a tarefa de ser tão boa no violino mágico como ela foi.
— Parece… justo.
— Na verdade, não — retrucou Alana. — O pai disse que era quando a mãe tocava que os homens ficavam mais caidinhos por ela. Me pergunto se ela tocava uma música mágica do amor ou coisa assim.
— Mas que assanhada, você. De quem tu puxou isso?
— Não foi do papai, com certeza. Talvez dela. — Alana voltou os olhos para o quadro, e Sara fez o mesmo.
— Quem sabe. A gente não teve a chance de conhecê-la.
Sara contemplou o rosto materno, sentindo uma saudade do que nunca viveu. Tal como ao longo de sua vida, perguntou-se como seria o dia a dia se a mãe estivesse viva; quais conversas elas teriam; qual o sabor da comida feita por ela, ao ser provada na mesa de jantar; quais histórias mágicas lhe contaria antes de dormir. Com certeza teria aprendido violino com ela. E juntas, teriam tocado e tocariam dezenas de músicas, fosse em casa ou num pólo comercial.
— Alana.
— Hm?
— Se a mãe estivesse viva… o que ela diria se eu falasse que quero ser uma aurana?
A pergunta pairou no ar, sem uma resposta imediata. Alana olhou novamente para a versão pintada de Eliza Buarque e encarou-a silenciosamente por alguns instantes. Enfim, veio uma resposta, mas não saída de sua boca.
— Ela te apoiaria.
Camilo entrou no recinto sem as filhas notarem. Ele vestia o mesmo traje militar branco com o qual fora retratado na pintura, mas também uma braçadeira vermelha com o símbolo da polícia neriquiana — um hexágono de fundo branco com uma estrela preta de cinco pontas no centro
— Vocês podem não ter conhecido a mãe de vocês, mas eu vivi sete anos com ela. Sei o bastante para presumir o que ela diria em certas situações — continuou o pai, enquanto as irmãs Buarque ouviam-no em silêncio, como se ele estivesse prestes a contar um segredo de família. — A Eliza… era uma pessoa muito doce. — Os olhos de Camilo encontraram o rosto de sua falecida esposa no quadro que seria seu presente de aniversário. — Diferente da maioria dos fidalgos que pertencem a uma família de ouro, seus olhos não rebaixavam os demais de sua casta. Até mesmo os vulgares recebiam dela uma deferência incomum. Como acham que um cara como eu, vindo de uma família de bronze, conseguiu se casar com ela?
— Talvez porque você cozinha bem? — arriscou Alana.
— Bem, não vou negar que, na época da Academia, ela preferia jantar no meu apê em vez de comer no bandejão.
— Um mago e uma maga que gostavam de passar a noite juntos num apartamento? Hmm. — Alana esboçou um sorriso travesso.
— Ei, calma lá, mocinha. A gente não…
— Então a mamãe… — interrompeu Sara, que parecia não ter acompanhado o andamento da conversa. — … não me impediria de entrar na Academia?
Camilo sorriu, aquecendo o coração de Sara antes mesmo de responder:
— Ela te apoiaria incondicionalmente… Assim como eu.
— Mas, pai, se é assim, se você acredita em mim, por que me mandou pra uma escola vulgar?
Na mente da garota, isso não fazia sentido. Como seu pai poderia dizer que a apoiava, mas ao mesmo tempo deixá-la recebendo uma educação mais atrasada que a de sua irmã? Sentia-se deixada para trás, com seu potencial sendo sufocado a cada dia.
Camilo pousou as mãos nos ombros da filha, os olhos carregados com a mesma ternura de sempre, mas com uma seriedade que a fez prestar atenção em suas palavras.
— Porque o resto do mundo não é como eu e sua mãe, Sara. Às vezes, precisamos nos resguardar de quem nunca entenderá o que carregamos por dentro. Você, de verdade, conseguiria viver normalmente numa escola fidalga? Aguentaria todo o desprezo, ou mesmo a comiseração, dos outros jovens?
— Mas essa será a minha vida quando eu entrar na Academia. Que diferença faz? — argumentou a garota.
— Muita — enfatizou ele. — Porque será somente na Academia onde você terá a chance de se provar. E quando fizer isso, não digo que terá uma vida normal, mas ao menos vai conseguir seguir em frente, em vez de apenas aguentar o tranco.
Aquelas palavras acenderam uma faísca de esperança no coração de Sara, refletindo-se no brilho azul de seus olhos. Com um sorriso doce, ela pegou o quadro e trocou um breve olhar com Alana, que a observava com um misto de orgulho e compreensão. A irmã, sem dizer uma palavra, apenas balançou a cabeça em concordância.
— Feliz aniversário, pai — desejou Sara, entregando-lhe o quadro e sentindo-se forte o bastante para encarar o futuro, o futuro onde ela, aos dezoito anos, se alistaria na Academia, pronta para ser chamada de maga Buarque.
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