Do quarto pequeno de um apartamento precário, vizinhos acordaram com o grito de seu morador. Um grito de desespero, angústia, como um susto terrível. Foi assim que o grito soou para eles, mas para Victor o que saiu de sua garganta foi um berro de súplica por ajuda, junto com uma dor alucinante.
Levantou grogue da cama, sentindo um volume estranho, como se da noite para o dia ganhasse peso. Estava sem roupas e ao se olhar no espelho do armário, percebeu uma grande cicatriz no abdômen.
Encarou-se por mais um tempo, seus cabelos a muito sem corte, olheiras fundas de noites muito mal dormidas, suas costelas começavam a aparecer na pele, a barriga um pouco sobressaltada — como se algo a mais estivesse dentro — e a luva em sua mão que nunca mais saíra desde aquele dia.
Estava determinado, e por isso tratou de se arrumar rapidamente, roupas folgadas e simples, confortáveis o suficiente para uma viagem de algumas horas até o estado vizinho. Acessou seu e-mail procurando a última mensagem, com um remetente sem identificação lógica, apenas números e símbolos que mantinham a pessoa anônima. Anotou o endereço e o horário do encontro, respondendo a mensagem apenas com um "A caminho".
A mala já estava pronta, uma mochila pequena com o suficiente para passar poucos dias. O dinheiro que havia guardado a tanto tempo para sua faculdade, agora seria usado como emergência. Daquele quarto horrível em que morava, todo o essencial já estava com ele, só faltava a coragem — que nunca morou ao seu lado. Com as chaves do carro no bolso, finalmente passou pelo batente da porta, trancou o quarto e caminhou até a garagem do prédio.
Com as mãos no volante, pronto para sair, e deixar aquele pesadelo para nunca mais voltar, suspirou dando a partida no veículo— presente de seu pai — e repetindo sempre a mesma frase:
— Tudo vai mudar.
Fora uma viagem cansativa, não pelo caminho e sim pelo o que aconteceu no percurso. Devido a noite de pesadelos constantes, Victor precisava de descanso, nem mesmo energéticos o mantinham acordado. Por isso, estacionou em um posto de gasolina para tentar dormir, o que não conseguiu.
Ainda era dia, mas pernoitado não conseguia dirigir, ao menos era o que achava. Deitado no banco de trás, começou a sentir sua perna esquerda fisgar, um leve incômodo junto de um arrepio — como o sopro de um ar-condicionado — depois a sentiu dormente, e aquele incômodo começou a aumentar, latejar, doer como um corte.
Levantou de supetão mais uma vez, pondo a mão instintivamente na perna e sentido o sangue quente escorrendo de um corte nela. A princípio aparentava superficial, mas a quantidade de sangue que jorrava mostrava que era profundo e perigoso. Era como se alguém o tivesse cortado, mas naquele carro só havia ele.
Sempre assim, sozinho e com medo, algo estranho acontecendo com seu corpo e a sensação de não saber o que estava acontecendo
Enjoado, foi logo cuidando do ferimento, um corte cuidadoso e de precisão cirúrgica. As bandagens que carregava consigo não foram o suficiente para estancar o ferimento, assim improvisou com roupas. Tinha medo de sair do carro e o levarem para um hospital. Tudo, menos um hospital.
Assim voltou a dirigir, quase apagando por diversas vezes, sentindo algumas fisgadas em sua outra perna toda vez que cochilava rapidamente no volante. Havia perdido uma quantidade considerável de sangue, mas teimoso e imprudente, Victor foi até o final.
Nem percebera quando chegou a madrugada, por volta das duas da manhã finalmente encontrou a placa de "Boas Vindas a Santa Bárbara". Era aqui que sua nova vida começaria, uma vida sem cortes, incisões e terrores noturnos, sem medo constante do que estava se tornando aos poucos.
Ao sair do carro sentiu-se mais leve. O peso da manhã havia aliviado, o corte em sua perna estava estancado e estranhamente cicatrizado. Mas estava faminto, como se a dias não comesse. As barras de cereal acabaram na metade do caminho e poucos bares estavam abertos no momento.
A cidade naquela hora da noite era pouquíssimo movimentada, mesmo assim os locais ainda em funcionamento podiam saciar sua fome. Sentou-se no primeiro restaurante barato e pediu qualquer coisa do cardápio, sua barriga roncava só de sentir o cheiro apetitoso da panela, entretanto houve um estalo em sua mente. Comer naquele bar seria muito desrespeitoso, ele era visita, mas quem seria seu anfitrião? Por que seria uma afronta jantar ali?
Mandou cancelar seu pedido, mas antes perguntou onde seria A Casa Sobrenatural das Brumas Etéreas para a atendente, que o olhou com estranheza. Era um lugar inexistente, ou ao menos pouquíssimo conhecido até mesmo para os moradores daquela cidade turística do interior.
Indo de bar em bar, se encontrou perdido no meio da Praça, encarando o mapa frente à estátua daquela que chamavam de Sonhadora. Ela apontava para trás, para um beco, um lado mais escuro onde o poste falhava em iluminar.
Se aproximando viu que não era um beco, e sim uma casa de paredes azuis e telhado colonial, com um vitral sujo de alguém desconhecido. Era bizarro, uma entrada simples com porta de madeira, e no tapete para limpar os pés estava escrito o nome do local. Pela primeira vez no dia Victor riu, muito mais pela coincidência do que pela felicidade. A porta se abriu ao encostar, dando uma leve surpresa para ele.
A sua frente havia uma mulher, de vestido preto com babados vermelhos, cabelos longos e tão escuros que se confundiam com o vestido, olhos profundos e marcados — que lembravam uma galáxia em imensidão — sua boca um batom rosa forte que destacava-se tão quanto sua pele. Era de uma palidez doentia que o fez pensar em oferecer ajuda.
Porém, diferente do esperado, ela o atendeu com um sorriso largo no rosto. A expressão cadavérica se mantinha, mas era familiar, amigável e convidativa.
— Vamos! Vamos! Entre rapaz, estava esperando ansiosa por sua visita — disse sorridente e animada.
O trazendo para dentro, a Mulher Pálida puxou uma cadeira. A mesa estava posta com um banquete maravilhoso, ainda bem quente,deixando o cheiro mais acentuado, e o que mais admirava Victor era reconhecer ali suas comidas favoritas. Estavam todas lá! Receitas de sua mãe, partos de restaurantes que ele já frequentou, algumas de sua infância que ele não comia há décadas. Olhava incrédulo, esperando permissão para comer.
— Fique a vontade, boas histórias são acompanhadas de boa comida — colocou um pouco do conteúdo da panela em seu próprio prato e depois serviu seu convidado — Aliás, é ótimo finalmente poder ouvir uma história de verdade. Não aguentava mais atender charlatões. Onde já se viu um vampiro que aparece na minha casa em pleno meio do dia? Ontem mesmo atendi um rapaz dizendo que sua falecida esposa deu a luz!! Haha, dá pra acreditar? — sua expressão mudou repentinamente, de alegria para uma raiva sinistra.
Após um tempo de silêncio e comilança, ela voltou a contar sobre seus últimos convidados, e como a maioria eram apenas desajustados procurando um lugar dentro do "clube" de atormentados que ela geria.
Victor prestava atenção em cada palavra da mulher, seus maneirismos e sotaques, tiques e a gargalhada, suas mudanças súbitas de feição. Era fascinante a maneira como ela se portava, mas por qual motivo? Victor não conseguia raciocinar direito e se perdia em pensamentos, abstraindo tudo à sua volta, até que a voz d'Ela lhe chamou atenção:
— Então querido, qual a sua história? Não precisa ser tão tímido.
— Desculpa, mas eu to aqui atrás de uma solução, não de entrar no clube. — o tom de sua voz era como o de um sussurro, com medo de uma reação exaltada.
Ela o mirou por um tempo, e com um sorriso de deboche voltou a incitá-lo:
— E como vou te ajudar se não sei nada sobre você?
— Sabe nada sobre mim? Olha esse banquete!
— Coincidência querido, coincidência. Vamos! Conte logo, ninguém além de mim ficará sabendo, pode confiar — seu rosto era sério, não havia sarcasmo ou brincadeira na sua voz.
Diferente de momentos atrás, a alegria de sua fala se tornou um tom sóbrio e triste, combinando perfeitamente com a interlocutora.
Pode confiar.
Quantas vezes ele havia ouvido essa frase? Quantas vezes ele realmente pode confiar? Victor percorreu quilômetros, queria se livrar logo daquele sofrimento. Não aguentava mais o medo de dormir e acordar... Diferente. E se a Mulher Pálida fosse seu elixir? E se ele pudesse confiar? Era tudo ou nada agora. E com um suspiro e cheio de coragem finalmente pôs seus medos para fora:
"Eu tinha sete anos na época. Estava doente, e nenhum médico queria cuidar de mim, eu era um paciente de risco. A situação foi se agravando até o ponto que eu precisava de uma cirurgia antes que a bactéria chegasse ao meu cérebro.
Meus pais estavam sem dinheiro, todos os medicamentos que eu tomei eram muito caros, mas já estávamos ficando sem alternativa. Era contratar aquele doutor suspeito, ou a minha morte.
Quando entrei naquela sala de cirurgia, me senti em outro lugar que não a minha cidade, que não o meu mundo. Ela parecia deslocada, o branco do azulejo era mais turvo, não sei dizer ao certo. Apaguei rapidamente, mas a anestesia me causou um efeito estranho. Eu não conseguia abrir os olhos e comecei a me debater gritando por meus pais .
Algo me prendia naquela maca, mas não eram amarras, eram mãos geladas e ossudas, eu berrava por ajuda desesperando, mas só conseguia ouvir um grunhido bizarro, e aquele grunhido parecia se divertir com tudo aquilo.
No momento em que acordei senti minha cabeça pesada e enfaixada, a cirurgia tinha ocorrido tudo bem, mas eu me sentia diferente, meu corpo avisava que havia algo a mais em mim, algo dentro do meu corpo, nas minhas entranhas.
Eu cheguei a reclamar, mas falaram apenas que era um efeito da anestesia e logo eu ficaria bem, eu não estava bem. Em baixo do meu umbigo havia uma sutura, ela não estava ali antes, NUNCA esteve ali antes. Aquilo foi ignorado.... Eles falaram que eu podia confiar, que tudo ficaria bem. NÃO FICOU NADA BEM!
Depois disso, toda noite de sono eu sentia um corte e algo sendo colocado dentro de mim. Não importava onde, eu poderia dormir dentro de um armário, onde só coubesse a mim, certificar de que estava isolado! MAS SEMPRE ACONTECIA, EU SEMPRE ACORDAVA COMO UMA COLCHA DE RETALHOS.
O pior dia foi com a minha mão. Por todos os deuses deste mundo! Eu lembro exatamente da dor terrível que senti ao ter minha mão arrancada durante sono e acordar com.... com essa coisa no lugar. E não, não vou tirar a luva enquanto eu tiver essa porcaria no lugar.
Eu não aguento mais, todo dia, todo santo dia é esse desespero, desde os meus sete anos de idade eu tenho medo do que eu tô me tornando, eu não sei mais o que eu sou, não sei mais quem eu sou. Mas sei que se eu dormir agora, eu vou me sentir mutilado e acordar com mais uma parte do meu corpo sendo trocada. Por favor, me ajuda."
Seu choro foi o mais genuíno que ela já viu, tanto que fez seu coração fraco bater novamente. Levantou-se da cadeira e foi até o rapaz, enquanto ele desabava em prantos, ofereceu um lenço e o ajudou a se recompor. Agarrou seu rosto em um olhar fixo e penetrante.
Victor quase se perdeu nas galáxias escuras que eram as órbitas de seus olhos. Não havia compaixão, nem ternura neles, apenas compreensão fria e exata. Seu sofrimento era real, e isso era bom para ela.
Retirou-o da mesa e caminharam até o porão da casa. Era nítido para ambos que hoje haveria um final, mas com algo em troca. Ao chegarem na porta, Ela o olhou nos olhos mais uma vez, sorriu, voltou a fechar o semblante e perguntou:
— Você quer mesmo o elixir?
— Sim — não era momento para dúvidas.
Então, com uma velocidade extraordinária, Victor foi empurrado para dentro do porão, a porta trancada e sem nenhuma luz que o fizesse enxergar, mesmo assim tudo estava claro, pois seus olhos não eram mais seus. Seu nariz estava afiado, conseguia sentir um cheiro muito específico e familiar, seus ouvidos captaram um grunhido falho e estridente. O chão de pedra começou a dar lugar a um azulejo frio. Tudo a sua volta começou a mudar, não era mais um porão em Santa Bárbara, mas uma clínica clandestina no centro da cidade de Campo Belo.
E o Doutor estava a sua frente, o esperando ansioso.
***
Trinta minutos se passaram e finalmente a porta foi aberta, e um ser exaurido e disforme saiu dela. Seus olhos eram como de raposas, pelos acinzentados cresceram por seu corpo, dentes caninos perfeitos para dilacerar a carne, orelhas pontudas, a sua mão direita já estava sem a luva, e não era possível distinguir o que estava agarrado nela. Entretanto, sua barriga apresentava a maior diferença, estava inchada como um balão, e aos poucos ia diminuindo fazendo um barulho grotesco de digestão. A Mulher Pálida o olhou satisfeita, e o segurando pelos ombros, perguntou:
— Então? Como se sente?
— Horrível. — Respondeu em uma voz densa e gutural.
— Claro! Agora você é um de nós... num ciclo tortuoso. Mas está tudo bem, você nunca mais vai ter medo de dormir e nem de estar sozinho... apenas lidar com a realidade de ser uma Criatura.
Com um sorriso malévolo, ela continuou.
— Boas Vindas, criança. Boas vindas à minha casa ancestral. As Brumas se alegram com seu nascimento, e eu também.
Deste então, Victor nunca mais voltou para casa. Victor não voltou do porão.
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