Pelos labirintos do castelo de tijolos escuros, Daniel Paravel brincava com sua irmã. Duas crianças idênticas à primeira vista. Sardas no rosto, olhos castanhos, mesma estatura, mesma idade, roupas combinando — a mãe adorava vesti-los com o suspensório preto e camisa branca — os mesmos cabelos cinzentos destoando do resto da família. Eles gostavam de caçar os segredos de mais de dez gerações daquele castelo. Entrar em cada passagem mais apertada, pressionar e levantar cada madeira mal pregada e se decepcionar ao não descobrirem algum mecanismo.
O castelo da família era um verdadeiro parque de diversões para as crianças. E não seria para menos, até mesmo os adultos da casa gostavam de investigar os segredos escondidos por seus antecessores. Era o hobby da família.
Claro, para elas era muito mais fantástico e prazeroso conhecer cada detalhe do lugar. Não teria como ser diferente, afinal possuíam apenas a companhia um do outro. A alma viva mais próxima, que não fosse um Paravel, estava a quilômetros depois da floresta dos Sem Olhos — isto se existisse algo ao oeste.
Daniel e sua irmã eram verdadeiros investigadores. Apenas os dois, com uma pequena ajuda do tio Roberto, mapearam algumas das salas secretas e anotaram em um caderno o pouco das histórias que aqueles cômodos guardavam. Hoje era o dia de mais uma exploração, como fora todos os anteriores. Acordaram tão cedo que o céu sem estrelas lá fora ainda era escuro.
Sem trocar seus pijamas, correram até o esconderijo embaixo da escadaria principal. Acenderam suas lanternas e puseram-se a estudar aquele mapa tosco com uma sala nova, onde acreditavam haver mais segredos. Desta vez, empenhados, procuravam por uma lenda que seus pais contaram, sobre a velha biblioteca que Jônatas Paravel III construiu e, segundo seu pai: “Contém os segredos da família, do mundo ao oeste… Talvez até de todo o universo!”
Quebrando o silêncio da madrugada, os irmãos Paravel correram e tropeçaram pelas escadas até o quinto andar. Retiraram uma tábua do chão, onde escondiam uma chave dourada. Depois, Daniel pôs sua irmã em seus ombros e, agora mais altos, puderam abrir a porta que estava à sua esquerda no corredor. No quarto, amplo, empoeirado e cheio de olhos os observando, partiram até o baú ao lado de uma escrivaninha, onde ficava o quadro de Jônatas III
— Não esquece. Sem olhar diretamente para os quadros.
— Mas eles não param de me encarar. O que vamos fazer aqui Daniel?
— Eu tava lendo os ma… ma… as coisas que o vovô tinha escrito — com um clips e um pedaço de madeira, Daniel tentava arrombar o baú — Ele falava que nesse baú tinha a chave para a biblioteca.
— A gente já tentou abrir. Não adianta. Deve ter outro jeito
Com um click, Daniel quebrou mais uma gazua improvisada. Irritado, chutou o baú, que se provou uma péssima ideia, pois machucou seu pé. Dando pulinhos esbarrou na parede e derrubou um dos retratos pendurados, este caiu fazendo um baque seco e quebrou a moldura. Frustrado, e agora com medo de ser repreendido por seus pais, Daniel recuou devagar, chamando sua irmã para sair de lá também.
Entretanto algo havia chamado sua atenção. A mais nova dos Paravel caminhou até o que sobrara do retrato — sem olhar diretamente — e retirou algo que cintilava na moldura. Pequenas bolinhas coloridas haviam se espalhado. Assim, voltou sua atenção para o baú e notou buracos do mesmo tamanho por toda a estrutura. Tentando e tentando várias combinações, finalmente houve o click que tanto queriam escutar.
— Cinza, preto, branco e roxo. Melhor a gente escrever isso em algum lugar
— Droga! Não trouxe o caderno. O que tem aí dentro?
— Hmmm… Tem um ursinho de pelúcia com uma faca nas costas.
Curiosos, tiraram a faca e a espuma de dentro do brinquedo, contudo o que encontraram não foi exatamente o que desejavam. Era uma carta bem amarelada, com um poema estranho e sem autor aparente escrito nela.
Cinco andares alterna
Seis segredos enterra
Uma biblioteca decrépita
Com presença etérea
No sexto se manifesta
— Já li melhores. — disse Daniel. — Mas isso não faz sentido. Não tem nada além do quinto andar.
— Nós nunca saímos de casa também para conferir
— Mas não precisa. Não tem escada para subir mais. A não ser que…
— Que…?
Daniel disparou até o corredor, batendo nas paredes, no chão, puxando, empurrando e mudando objetos de lugar. Fazendo barulho suficiente para acordar todo mundo. Por sorte ninguém dormia ali, ou sequer chegava perto. Após levantar tanta poeira — enquanto espirrava — enfim achou uma parede oca, em frente às escadas que davam para o andar, e nela pendurada uma prateleira com livros. Um de capa Branca, um cinza, um roxo e um preto.
Eles se entreolharam e riram. Estava óbvio o que deveriam fazer, assim ordenaram as cores igual às bolinhas do baú. Porém nada aconteceu. Nenhum mecanismo fora acionado, nenhum alarme. Nada. E a fortaleza dos tijolos pretos voltará a seu silêncio, mesmo agora sendo manhã.
— A gente tem que tentar mais uma vez. Dessa eu mexo nos livros. Deixa eu subir nas suas costas.
— Na nani nanão. Você é pesado demais e não sabe diferenciar as cores Dan.
— Mas é a minha vez! Eu nunca consigo alcançar os lugares altos. Por favor irmã. — disse fazendo cara de choro
Bufando se deu por vencida. Abaixou-se e deixou ele subir em suas costas, mas nem ao menos conseguiu se levantar. O peso dele a pendia para trás, em direção às escadas.
Não houve tempo de reação. Quando menos percebera sentiu o alívio de tirar um peso dos ombros, porém seu irmão caíra como pedra rolando escada abaixo e produzindo o som horrível de algo quebrado. Helena correu em direção a seu irmão, gritando seu nome para que toda a casa ouvisse. Ele não respondeu, seus pais demoraram a chegar e quando se aproximaram, seu melhor amigo e irmão exibia um filete de sangue escorrendo do nariz, a pele estava começando a perder o calor, seus olhos estavam vidrados em direção a um dos retratos de seus avós e o pescoço do pobre menino de apenas dez anos havia se partido.
Comments (0)
See all