“Eu tive aquele sonho novamente, aquele maldito sonho. Eu estava embriagado, todo molhado pela chuva que caía fortemente sobre meu corpo flácido, sentia a água gélida arrepiar minha pele já enrugada, isso teria que ser o suficiente pra me deixar um pouco mais são, mas a raiva que eu sentia no momento só podia ser contida com sangue, a mente de alguém tomado pela bebida não pode ser compreendida facilmente, aquela mulher, ela me irritava todos os dias com suas reclamações, dizendo que não tínhamos dinheiro pra educar nosso filho, que não tínhamos condições psicológicas pra lhe dar uma boa vida, e eu só fiquei com vontade de estrangulá-la, a cada dia em que acordava, porque sabia que aquilo era a mais pura e cruel realidade. Éramos uma família de merda, eu, um mero funcionário de uma fábrica de panelas, não ganhava nem 2 salários mínimos por mês e trabalhava 8 horas por dia, ela nem emprego tinha, cuidava da casa e do nosso filho, Giulio, mas mesmo assim, mesmo eu me esforçando pra dar o melhor para o moleque, ela sempre queria mais, porra, eu estava fazendo tudo que podia! Eu não tinha formação, não era uma pessoa tão inteligente, na verdade, me considerava bem esperto, eu era um dos melhores alunos na escola em matemática, mas devido aos meus pais serem bem pobres, não tive tantas oportunidades na vida, e por conta da bebida e do meu comportamento agressivo, deixei tudo ir pro ralo, agora eu era um rapaz de 34 anos que ia para o bar todos os dias gastar o que já não tinha com a cachaça mais barata que era vendida, voltava para casa e brigava com minha esposa, sempre me segurando para não espanca-la, ouvia o moleque chorar berrando enquanto eu gritava e quebrava os cômodos, algum dia, esses ataques teriam que parar, mas eu sabia que não seria eu a ‘ceder’, até aquela noite, em que a vi pendurada em uma corda no nosso quarto, o moleque foi jogado na cama, ele chorava enquanto a sombra do cadáver da minha mulher se movia pela parede iluminada por uma fraca luz que a refletia, sua expressão não parecia de dor, quando fitei seu rosto pálido com as veias quase saltando do seu pescoço, sua língua pra fora da boca e os olhos esbugalhados me fizeram deixar cair a garrafa de vodka que eu carregava, mesmo bêbado eu compreendia que aquilo era o inferno, quando toquei em seu corpo frio, senti que minha vida estava arruinada, ela já havia sido, a muito tempo, mas eu finalmente tinha encontrado o clímax da tragédia, eu olhei para Giulio, um pobre garotinho de um ano e meio que não tinha nada a ver com isso, ele estava embaixo do cadáver de sua mãe, e em sua frente, seu pai bêbado chorava enquanto soluçava. Me ajoelhei, bati a cabeça contra o pé da cama até rachá-la, eu me afundei até não poder mais sair da lama. Sabia o que me esperava em seguida, a justiça tirando meu filho de mim, eu perdendo o emprego que tanto sofri para conseguir, sendo despachado daquela casa alugada em um beco fedorento.
Estava morando com minha mãe, sem emprego, sem amigos, sem nada. Eu era uma casca vazia vagando por aí, assistia televisão todos os dias e lia a bíblia, as pessoas desesperadas tendem a procurar ‘Deus’ para sua salvação, e mesmo sendo um cético filho da puta, eu mergulhava na ilusão que me machucava ainda mais, até o dia em que ele apareceu.
De início pensei que era um sonho, eu havia parado com a bebida, não tomava nada desde aquele dia, a três anos, então não podia estar dopado com álcool, ele apareceu em frente à minha cama, me dizendo aquelas merdas de portadores, de um vírus que mataria vários, de uma chave dourada. Eu não entendi nada no começo, ele queria que eu acreditasse que ele me daria o poder de voltar dez minutos no tempo, três vezes ao dia, se eu aceitasse tentar pegar a chave de uma determinada pessoa. Eu estava fodido, estava na merda, pra mim, aquela alucinação era o começo da minha loucura, e dando um empurrão a ela, decidi me apoiar na insanidade e acabar logo de vez com minha alma que jazia em meu corpo apodrecido. Foi quando percebi, que não era uma ilusão. Acordei no outro dia pensando naquilo tudo, principalmente no desejo que eu poderia ter se conseguisse a chave. Ele me deu um relógio dourado, daqueles de mão, bem antigos, nele havia só um botão, ele me explicou como usar, eu poderia voltar no tempo por 10 minutos, durante três vezes ao dia, apertando o botão vermelho em seu centro traseiro, e se eu segurasse aquele botão por 10 segundos, poderia voltar para qualquer dia no passado, mas por uma única vez. Meu corpo permaneceria no mesmo local onde eu me encontrasse ano momento da ‘viagem’, mas por exemplo, suponhamos que das 14:00 às 14:03 eu tenha matado uma pessoa e me sentado em uma cama, se eu voltasse das 14:04 até às 13:55, em um lugar diferente do quarto onde eu teria cometido o assassinato, quilômetros de distância, o assassinato, em questão, teria acontecido? Um paradoxo que só pessoas que gostam de matemática poderiam compreender, mas ele me explicou que não, que qualquer ato cometido por mim seria anulado, mas somente isso, as outras coisas permaneceriam como ficaram no passado. Então, se eu tivesse voltado para 13:55, dois andares abaixo do quarto em que o assassinato fora cometido no futuro, eu nem teria chegado a entrar no quarto, caso eu, no futuro em que voltei, já estivesse no mesmo, suponhamos, desde às 13:50. Então eu teria a chance de matar a tal pessoa, ou não, mas eu permaneceria no lugar onde fiz a ‘viagem’. Ele também me disse sobre o vírus, se aquela pessoa ficasse com a chave por 90 dias, o mundo estaria bem fodido. Eu tinha a chance de ser o salvador da humanidade? Eu? Um verme rastejante às custas de minha mãe, sem sonhos, sem dignidade? Que piada era aquela? Mas foi quando testei aquele meu poder, que percebi que eu realmente, fui um dos escolhidos.
Não entendi o porquê, não entendi como aconteceu, mas eu tinha mesmo aquela porra de poder. Aquele relógio era real. Aquela história era real e o mundo estava correndo risco. Pelo que eu entendi da explicação dele, os dez portadores não iriam ter conhecimento do dono da chave, mas eles saberiam, quando ele recebesse a mesma, o número 90 iria aparecer na palma da mão direita de cada um, e a cada dia que se passasse, o número iria diminuir, até chegar no 0. Ele também nos deu dicas valiosas, disse que o dono da chave seria alguém daquela cidade, aquele era o ‘local’ da disputa, isso já facilitaria muito visto que não é uma cidade grande, mas, como eu iria descobrir quem seria tal pessoa? O número 90 poderia aparecer em minha mão, mas mesmo assim, eu não saberia quem tem a chave, não foi nos dado dicas sobre isso, foi então que comecei a supor os movimentos do tal dono da chave. Eu me tranquei em meu quarto por dias, esperando o 90 aparecer, comecei a pensar sem parar, eu mal comia, pois finalmente, depois de 3 anos sofrendo, tinha um motivo para viver, eu não ligava mais de ser um ser sozinho e desempregado morando com a mãe reumática, eu era um dos escolhidos para salvar o mundo! Eu...podia voltar no tempo. Eu não podia voltar no momento em que realmente queria, aquele dia... mas essa habilidade poderia ser útil se eu a usasse corretamente. Depois de fazer várias análises e levantamentos, o movimento mais provável do keymaster (como o denominei) seria, depois de receber a chave, ir até a delegacia. Ele poderia até acreditar na história toda que lhe fora contada, mas duvido que ele não iria procurar ajuda, eu mesmo faria isso, levaria a chave até a delegacia com medo, 99% das pessoas não acreditaria nessa história toda, isso era o senso comum, as pessoas são condicionadas a pensarem somente no óbvio, a agirem com acontecimentos cotidianos e naturais, se algo assim acontecesse, a pessoa pensaria que era uma pegadinha ou algum tipo de golpe, se eu não tivesse provado meu poder, eu jamais acreditaria, mas no caso do keymaster, não tinha como ele provar que aquilo era real, portanto, ele iria procurar a polícia.
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