Kami sentiu o estomago embrulhar com o cheiro da fralda. Loira, olhos no formato de amêndoas e pele bronzeada, essa era sua aparência. Ela acabara de completar 17 anos e já tinha uma filha de 3 anos para cuidar. Pelo menos Alice estava dormindo. A pequena gritou a noite inteira! Kami não sabia mais o que era ter uma boa noite de sono. Ela tirou as fraldas do cesto e as jogou na lata de lixo. O barulho da panela de pressão chamou sua atenção. Kami estava cozinhando carne de panela com batata, comida favorita do seu esposo. O cheiro estava ótimo!
Sua casa era simples, só tinha dois cômodos. Maioria dos móveis estavam na cozinha, fogão velho, geladeira, sofá, televisão e uma mesa com duas cadeiras. No segundo comodo ficava um colchão de casal velho que ganharam da vizinha ao lado de um berço caindo aos pedaços, além de um guarda-roupa, brinquedos de criança e o banheiro. Quando chovia, gotas pingavam pela casa toda, por isso eles compraram muitos baldes. Sem forro no teto, só telhado, a casa ficava mais frio no inverno e o calor era insuportável.
Seus pais nunca aprovaram o casamento de dois adolescentes, por isso os expulsou de casa muito cedo. Para sobreviver nesse mundo sem muitas oportunidades, seu esposo se tornou algo que não era agradável aos olhos de Kami. Em Miragem, uma droga muito famosa estava em alta. Seu nome era Pó de Pirimpimpim. Dizem que foi os elfos que trouxeram para Mastigando amor e se espalhou como fogo em época de seca, outras afirmam que foi coisa das bruxas para fazer os mortais pagarem pelos seus crimes.
Para Kami, seu esposo vender pó de pirimpimpim era horrível! Tinha dois perigos em ser traficante de pirimpimpim. O primeiro era a polícia de Mastigando Amor que, segundo os boatos, estavam matando todos os vendedores, sem ao menos levar a julgamento. Quem iria desobedecer às ordens de QianQian, que havia acabado de entrar no poder? E o segundo era o próprio fornecedor…
— Amor, cheguei! — gritou a voz rouca do seu marido.
Ela até se esqueceu da comida. Correu em direção ao homem magro com o corpo cheio de tatuagens e o abraçou. Os dois se beijaram. Os olhos de Kami não conseguiam esconder o quão amava aquele homem. Ele era o seu porto seguro, a última pessoa nesse mundo que ela podia chamar de família.
— E esse cheiro gostoso? — perguntou ele.
— Se adivinhar, ganha um beijo!
— Nem preciso forçar muito, adoro seu cozido de carne…
— Vai lavar essa mão, seja mais higiênico e depois me ajude a arrumar a mesa! — disse Kami dando um tapinha no ombro dele.
— E nossa gatinha, ela te deu trabalho hoje?
— A gatinha tá dormindo, se você acordar ela, eu te mato!
A mesa não era chique, mas também não era feia. Kami e seu marido sentaram-se lado a lado. Ela fez questão de servir seu amor. Ele sorriu. As mãos de Kami passearam pelo braço dele até pousarem em sua cabeça. Ele mordeu um pedaço de carne.
— Eu sou sortudo em ter você — disse ele.
— Também sou sortuda em ter você — respondeu ela.
— Kami, preciso te dizer algo que estou escondendo há alguns dias — falou ele com uma expressão séria.
— O que foi? Alguma coisa errada em seu serviço?
— Convenhamos, eu não tenho serviço, sou a porcaria de um vendedor Do Comando Dragão Cinzento.
— Eu já disse para você que podemos mudar de vida, sei que na cidade tem empregos honestos e….
— Kami, você acha mesmo que conseguiríamos trabalho na cidade? — afirmou ele, fitando os olhos de sua mulher com uma expressão séria.
— É claro que conseguiríamos…
— Você não terminou os estudos e temos uma criança pequena para sustentar, eu nem sei ler! O que seríamos? Uma faxineira e um gari?
— Prefiro ser uma faxineira e você trabalhando de gari do que ver você vendendo pó de pirimpimpim para a porcaria do Draco Griseus!
— O chefão tem sustentado essa casa… e fala baixo quando for dizer o nome dele.
— Tá bom… o que você iria dizer? — perguntou Kami tirando a mão da cabeça de seu marido com uma expressão brava.
— O Draco Griseus… ele não paga bem aos seus vendedores, por isso comecei a fazer um negócio paralelo.
— Você tá tentando enganar o Draco Griseus? — perguntou ela assustada.
— Sim e não… tô pegando algumas gramas e não estou registrando no caderninho.
— Isso é loucura! — gritou Kami.
— Não se preocupe com isso, ninguém vai perceber meu esquema e o chefão nunca viu meu rosto, quiçá meu caderno de anotações! Esse dinheiro vai nos ajudar a ter uma vida melhor.
— Por favor… para com isso antes que seja tarde demais — disse Kami com os olhos lacrimejando.
— Não precisa chorar, confie em mim, vou tirar você dessa favela e dar uma vida boa a nossa filha….
Kami não conseguiu dormir. Seu marido era muito cabeça dura para escutá-la. Ela já tinha ouvido histórias de pessoas que morreram por muito menos, trabalhar para o chefão das drogas não era um mar de maravilhas, imagine roubar ele escondido! Antes que percebesse, a noite passou. Seu esposo levou a pequena para creche e Kami foi fazer faxina na casa de algumas clientes. De tarde, ela voltou para casa e se assustou ao ver o relógio. Era hora de buscar sua filha na creche. Ela correu até o guarda-roupa e pegou seu casaco velho. Naquele dia estava fazendo muito frio. Kami aproveitou para pegar duas roupinhas que não serviam mais na sua filha para doar no templo de Sýnpam.
— Abençoada seja Sýnpam, minha deusa protetora — disse ela guardando as roupinhas numa sacola.
Crianças jogavam bola na rua. Ela sorriu. Kami continuou seu caminho, descendo o morro rumo a única creche da favela. Os governantes não ligavam muito para a comunidade, ainda mais que ali vivia uma mistura de elfos, orques, humanos e anões. Talvez as coisas poderiam mudar com o governo de QianQian, diziam alguns, contudo, para Kami, o mundo continuaria a mesma porcaria. Os mais pobres continuaria sendo apenas mão de obra e os ricos enchendo os bolsos do governo de dinheiro.
— Kami! — gritou uma elfa gordinha carregando duas sacolas de Figo-de-barbaria.
— Boa tarde, Dona Frigg! — disse Kami com um sorriso.
— Hoje sobrou tudo isso de Figo-de-barbaria da minha horta, toma essa sacola para você — falou a elfa entregando aquela coisa pesada a Kami.
— Obrigada, que Sýnpam te abençoe — agradeceu Kami.
— Cadê a pequena Alice?
— Tô indo buscar ela agora — afirmou Kami com uma expressão assustada. Ela estava atrasada e a professora não gostava quando acontecia isso.
Ela agradeceu mais uma vez a dona Frigg e correu rumo ao portão azul da creche Pequeno Dragão Dourado. Kami, recuperando o fôlego, percebeu ter algo errado com o portão. “Não era para o senhor Torsten estar no portão esperando os pais?”
— O que diabos está acontecendo, cadê os pais e as crianças? — indagou Kami em voz alta.
Ela tomou coragem e abriu o portão por conta própria. A corrente despencou rumo ao chão. A creche estava escura. Kami caminhou pela pelo corredor rumo ao parquinho de areia. As salas parecia ter sido abandonadas. Nada de professoras ou tias da limpeza. Ela chegou no parquinho, mas não conseguiu enxergar naquele escuro. Kami olhou para o lado e viu um interruptor. Ela foi até ele e o apertou. As luzes se acenderam. Seu rosto fez uma expressão de espanto. Bem no meio da areia, de joelhos, estava seu Marido diante de Draco Griseus. As pernas dela começaram a tremer. Ela tentou gritar, mas o medo a fez perder a voz.
— Amor? — sussurrou Kami.
— Querida, estava esperando você chegar — disse Draco caminhando a passos lentos.
— Draco Griseus, por favor, sou eu que te roubei, deixa minha esposa em paz…
— Mandei você falar sem minha autorização?
— Não… me desculpe.
— Ótimo — falou o chefão enquanto se aproximava de Kami.
Ela parecia uma criança miúda perto de Draco. “É verdade o que disseram, ele se parece com um gorila!” Ela sentiu os dedos ásperos passearem pela sua bochecha. Kami não podia fazer muita coisa, aquele era o homem mais forte de Miragem!
— Kami, certo?
— Sim…
— Quando eu era pequeno, um rato entrou em minha casa. Ele roubou um pedacinho do meu queijo. Sabe, eu não ligava para isso. Meu pai viu isso acontecer e me perguntou por que diabos eu não pisava na cabeça daquela desgraça. Eu respondi que era um pequeno rato, ele não fazia mal a mim e só pegava um pedacinho do queijo. Meu pai disse uma coisa para mim que eu não liguei muito na hora, mas hoje faz um tremendo sentido. Ele disse “Se você não matar o rato, ele fará questão de roubar todo o seu queijo, ele não quer só o suficiente, ele quer o que é seu e, pouco a pouco, ficará com tudo.” Sabe o que eu fiz? Deixei quieto e, certo dia, meu queijo sumiu.
— Onde está minha filha… — perguntou Kami usando o resto de coragem que tinha.
— Espere, estou terminando meu raciocínio — disse Draco Griseus tapando a boca de Kami. — Foi então que tive a ideia de rastrear o rato, matar ele e sua família, pois assim não nasceria mais ratos querendo o que é meu… Meu conselho é sempre o mesmo, mate a família do rato. Seu marido é um rato, você é uma rata e sua filha uma ratinha….
Antes que o chefão pudesse terminar sua frase, Kami sentiu seu coração ser tomado pelo instinto materno. Sua reação foi bater a sacola de Figo-de-barbaria no rosto de Draco, fazendo ele gritar, não porque sentiu dor, mas sim devido aos pequenos espinhos que entrou em sua boca e furou sua língua.
— Sua filha de uma mãe infame!
Kami correu em direção ao seu marido, mas antes que pudesse chegar, Draco Griseus apareceu atrás dele. Ela gritou. O homem quebrou o pescoço do seu esposo apenas usando o seu dedo indicador. Mais uma vez sua coragem a guiou. Ela bateu no rosto do chefão, mas ele era tão forte que os ossos da mão de Kami se quebrou.
— Você não vai morrer… pela primeira vez vou deixar que um rato viva — disse Draco pegando a pequena mulher pelo pescoço.
— Onde está minha filha… — sussurrou Kami tentando se libertar.
— Sua filha? Joguei ela rumo ao céu e deixei que caísse — sorriu ele com um ar psicótico —, tem partes dela ainda que os faxineiros precisam limpar.
— Não… seu monstro!
— Quero que você viva com isso… sinta a impotência de ser uma rata sem poder nenhum contra um deus.
Os braços de Kami estavam amarrados na maca. As enfermeiras fizeram isso para ela não tentar tirar a própria vida de novo. A ambulância trouxera Kami há dois dias com convulsões e partes do corpo quebrados. A polícia não quis fazer muita coisa a respeito dela, ainda mais que seu marido era um vendedor de pirimpimpim. Kami não se mexia. Ela não queria comer e muito menos falar. Sua vida fora destruída, por que querer continuar insistindo em viver? A sensação de impotência era como um demônio que não te deixa em paz.
— Senhor, tem certeza que essa é a mulher que procura? — disse a voz da enfermeira vindo atrás da porta.
— Tenho certeza — respondeu à voz rouca de um velhinho.
Logo em seguida, o velho cego acompanhado de um jovem da mesma idade de Kami entrou naquele quarto amarelado. O velho se sentou de frente para Kami e o rapaz se contentou em ficar em pé fitando os olhos mórbidos dela.
— Você deve estar sentindo uma raiva… uma dor terrível que te consome como traças corroendo a madeira — disse o velho.
— Mestre, ela está morta? — perguntou o jovem.
— Thadeu, fique em silêncio, não está vendo que essa pobre alma está precisando de ajuda?
— Me desculpe, mestre.
— Kami, você deve estar desejando a morte. Você acredita que esse é o único caminho para se livrar dessa dor terrível. Poderia concordar com você, acho que há alguns anos até diria que isso é sábio.
— Ela não mexe nem os olhos… vamos embora, tem mais pessoas que podem entrar na ordem.
— Thadeu, se você falar mais uma vez… — ameaçou o velho.
— Tá bom, vou tentar me controlar.
— Kami, eu tenho a cura para essa dor. O remédio se chama vingança. E se eu disser que posso transformar você numa máquina de matar e que essas habilidades podem ser a chave para matar Draco Griseus?
Kami mexeu finalmente os olhos. O nome daquele monstro a fez cerrar os dentes de raiva. Thadeu sorriu. Kami só queria fazer Draco Griseus sentir a mesma dor que ela estava sentindo naquele momento.
— Shiva Kami, quando você tiver o sangue de Draco em suas mãos, essa dor que você está sentindo irá embora. Na verdade, toda alma semelhante a ele que morrer em sua mão, fará você se sentir melhor.
— Eu quero… — disse Kami com uma voz frágil e fraca —, me transforme nessa máquina de matar que prometeu.
— Thadeu, acabamos de ganhar mais um atirador de elite para ordem da serpente! — afirmou o velho com um sorriso no rosto.
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