— O quê?! — Sara não conseguia processar o que acabara de ouvir. Sua própria espécie havia matado um parente de sangue. — Mas por quê? Como isso aconteceu?
Camilo desviou o olhar para o horizonte, seus lábios se movendo como se revirassem as palavras antes de soltá-las.
— O meu irmão… estava apaixonado por uma humana.
A revelação deixou Sara boquiaberta. Dentre os relacionamentos proibidos na espécie neriquiana, esse era o mais grave. Humanos não tinham aura, não eram dignos de se ter como parceiros. Além disso, esse tipo de união gerava um filho cuja qualidade aurânica era próxima de um vulgar ou pior, com características visuais que nem sempre batiam com as de um neriquiano. O Conselho Aurano, é claro, jamais permitiria que as terras do além-Leviatã fossem habitadas por pseudo-neriquianos. A miscigenação não só era desencorajada, como severamente punida.
— A humana se chamava Odete — continuou Camilo, ainda com o olhar e a mente distantes. — O Célio a salvou de um ataque de desgarrados na cidade pacata onde ela morava. Naquela época, meu irmão era apenas um aurano cumprindo o seu dever de proteger a moça e todos os moradores da cidade. Não havia nada entre eles dois, tanto que, ao fim da missão, ele foi embora.
Sara levou uma mecha de cabelo para trás da orelha após o vento costeiro bagunçá-lo. Aguardou, ansiosa, a continuação da história.
— Um tempo depois, Célio retornou à cidade mais uma vez como um dos encarregados em fazer a proteção do lugar. Foi nesse período que ele e a moça passaram a se conhecer melhor. E, eventualmente, acabaram se apaixonando. Mas, claro, mantiveram tudo em segredo.
— Mas foram descobertos, não é?
— Sim. Porém não naquele momento. Eles ficaram um bom tempo juntos, e não só na cidade natal de Odete. — Camilo esfregou os olhos. Talvez uma só xícara de café não tenha sido o bastante para mantê-lo bem desperto. — Célio foi chamado de volta à Neriquia, mas prometeu que voltaria para vê-la em seu período de férias. E quando voltou, trouxe na cabeça um plano bastante arriscado. Reencontrá-la era apenas o estágio final desse plano. Antes disso, ele já havia invadido um cofre estatal e roubado esse par de espelhos sem ninguém saber. Um, ele deixou no porão da casa dele. O outro…
Os olhos de Camilo se voltaram para a cabana, e Sara acompanhou o gesto.
— Então, no começo, o artefato não estava na nossa casa — observou a garota.
— A ideia era que Célio e Odete pudessem ficar juntos enquanto ele estivesse em Neriquia. Para isso, seu tio desistiu da função de sentinela no além-Leviatã e pediu transferência para as forças policiais de Neriquia. Desse modo, ele poderia ver a humana praticamente todos os dias quando chegasse em casa.
— E quando foi que você ficou sabendo disso tudo? — perguntou Sara, atenta à quantidade de detalhes que o pai compartilhava.
— Em algumas semanas depois que o Célio se estabeleceu no país. Mas, Sara, me responda uma coisa. — Camilo pôs uma das mãos na cintura e encarou a filha com seriedade. — O que você faria, se nos passeios que a gente fez nas fronteiras com o além-Leviatã, você flagrasse um neriquiano, fosse ele fidalgo ou vulgar, de namoro com um humano? Iria delatá-los? Mesmo sabendo que isso levaria à execução deles dois?
Sara abaixou a cabeça, sentindo um peso hipotético sobre os ombros. Sem entender direito o motivo, surgiu em sua mente a imagem de duas colegas de classe namorando no pátio da escola. Elas eram de casta vulgar, logo, não havia problema nisso. Mas e se fossem duas fidalgas? Relação homoafetiva entre os fidalgos só era criminalizada se ocorresse beijo em local público, à vista de outros neriquianos. A punição para esse ato não chegava à pena de morte, embora já tenha sido em tempos passados. Mas supondo que ela estivesse nessa outra época e que suas colegas fossem fidalgas, teria mesmo a frieza de ser a responsável por ceifar a vida delas?
Talvez estivesse exagerando na comparação. Humanos não eram neriquianos. Esse tipo de romance era errado. Mas…
— Eu não sei — respondeu com sinceridade, a voz baixa.
— É uma situação complicada, ainda mais quando envolve alguém da família.
— O senhor o delatou? — perguntou Sara, apreensiva.
— Óbvio que não. Foi meu próprio irmão quem me contou sobre o relacionamento. Mesmo eu sendo contra aquele romance, mesmo implorando para ele terminar com aquela humana e nunca mais vê-la, ele confiou que eu o protegeria. E foi o que eu fiz. — Camilo fechou as mãos em punho. — Mesmo não sendo o bastante.
— O que aconteceu? Como eles foram descobertos?
Camilo lançou um olhar demorado para a cabana, o rosto assumindo uma expressão melancólica.
— O plano deles era… quase perfeito. Possivelmente teria durado anos, até décadas. Mas para qualquer plano dar errado, basta um único e pequeno deslize — disse, gesticulando com o dedo indicador e o dedão próximos um do outro. — Certo dia, aconteceu um imprevisto. Começou com Célio sendo convocado para uma missão no além-Leviatã. Mesmo atuando como policial, às vezes acontece de sermos chamados para trabalhos lá fora que necessitem de nossos poderes ou de conhecimentos sobre alguma região. Foi uma convocação extraordinária, então pagariam bem mais e ainda ofereceriam um bom adicional de férias. Meu irmão aceitou. E, antes de partir, veio até aqui se despedir de Odete. — Camilo balançou a cabeça, em negação. — E então a humana fez algo estúpido. Ela reparou que meu irmão havia esquecido sua cartela de curamida sobre a mesa, e, com medo de aquilo fazer falta a ele num momento de vida ou morte, ela atravessou o espelho para entregar o medicamento. Como só tinha se passado um minuto desde que Célio deixou a ilha, ela julgou que não haveria problema se corresse até a casa dele, afinal, meu irmão morava sozinho. Odete atravessou o espelho, subiu as escadas para sair do porão, e, na virada de um corredor, viu a silhueta de seu amado. Chamou-o de “querido”... e foi aí que tudo deu errado. Célio havia acabado de abrir a porta de casa para um aurano.
— Não acredito… — murmurou Sara, antecipando o desastre.
— Pois é. Foi um erro gigantesco. O aurano em questão tinha vindo buscar o Célio para se juntarem à equipe da missão. A última coisa que ele esperava era encontrar uma humana na casa. E para ele, a escolha por denunciar aquilo foi fácil.
— Quem era esse aurano? — quis saber Sara, sentindo um misto de raiva e curiosidade crescer dentro dela.
— Não importa — disse o pai. — Aconteceu. Pelo que eu soube, Célio ainda tentou suborná-lo, mas não teve jeito. A única opção, naquela situação, foi lutar uma batalha perdida. A humana aproveitou a confusão e desceu ao porão para atravessar o espelho. Felizmente, o aurano não percebeu para onde ela foi e achou que ela tinha fugido para as redondezas. — Camilo começou a andar lentamente de volta à cabana, e Sara o seguiu. — Você pode achar que eles tiveram muito azar nesse dia, mas também contaram com a sorte, pois eu cheguei à casa do Célio minutos depois. Meu irmão… já derrotado pelo outro aurano, se desculpou na minha frente. Ele disfarçou que eu não sabia nada sobre o romance, e eu fingi estar surpreso e decepcionado. — Sua voz fraquejou um pouco na última frase. — Antes de ser levado pra delegacia, ele ficou murmurando o nome de Odete. Eu entendi o recado. Então, enquanto ele era detido, eu menti dizendo que iria procurar a humana nos arredores, já que a viatura da polícia demoraria alguns minutos para chegar. Aproveitei esse tempo e vim para esse lado. Encontrei Odete sentada bem aqui — disse ele, parando em frente a um ponto onde a areia e a grama se encontravam. — Estava amedrontada, e ficou ainda mais quando me viu. Pensou que eu fosse matá-la. Foi a primeira e única vez que a vi. Célio tinha me convidado várias vezes para conhecê-la… e eu escolhi o pior dia — comentou com um sorriso amargo. — Eu consegui acalmá-la um pouco, e depois tentei convencê-la a pegar o barco e navegar para longe, se quisesse viver. Eu não esperei até ela seguir o meu conselho. Os auranos logo iriam chegar para revistar a casa, então eu fui embora. Por incrível que pareça, os policiais não encontraram o artefato, e quando tive a oportunidade de voltar para cá, dias depois, Odete não estava mais aqui. Mesmo hoje, eu não faço a menor ideia de onde ela esteja. Espero que esteja viva e bem em algum lugar no além-Leviatã.
— E meu tio?
— Você já sabe o que aconteceu com ele.
Camilo ficou em silêncio. Sara aguardou o pai declarar algo mais sobre a execução, mas suspeitou que essa parte da história era desconfortável demais para ser contada. No entanto, havia um detalhe importante ainda em aberto.
— Então, depois disso, você trouxe o espelho pra nossa casa? Não seria melhor tê-lo destruído?
— Seria. Mas preferi mantê-lo escondido, assim como meu irmão escondeu o amor da vida dele. É uma lembrança, Sara. E um segredo. E estou confiando ele a você. Quero que o guarde a sete chaves de todo mundo, inclusive da sua irmã. Pode ser que um dia eu conte a ela, mas esse dia não está perto.
Sara suspirou. Embora achasse inconsequente manter, no porão de casa, o artefato que incriminara seu tio, compreendia mais ou menos os sentimentos do pai. Camilo desejava, pelo resto da vida, emular a tensão e o peso que era guardar algo precioso, algo pelo qual seria capaz de desafiar as leis de Neriquia.
— Mas isso, é claro, se você não me denunciar por porte ilegal de artefato divino — brincou o pai, com um sorriso torto.
— Claro que não. Tá doido? Se bem que… será que consigo barganhar minha inscrição na Academia se eu der o espelho?
— Ei, ei!
— Tô só brincando — riu a garota, dando um leve tapa no ombro do pai. Em seguida, olhou-o com sinceridade. — Prometo que não vou contar a ninguém.
— Ótimo. Agora, vamos indo, que o sol está esquentando — disse ele, retomando a caminhada em direção à cabana.
Ao entrar na casinha à beira-mar, Sara observou o interior do recinto. Minutos antes, tinha achado o lugar estranho e misterioso. Mas, agora, ele lhe passava a impressão de ser vazio e melancólico. Solitário.
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