Thadeu levou o copo até os lábios de Kami. Ela agradeceu com um piscar de olhos. Naquele horário, ninguém iria encher as paciências. Essa praça tinha um memorial de Abrek, por isso nunca foi conhecido por ser frequentado por famílias e sim por inconformados com a morte do antigo líder supremo.
— Sei que sua intenção é boa, mas ainda acho seu café com gosto de meia suja — zombou Kami.
— Meia suja? — disse Thadeu com uma careta.
— To brincando, seu café é bom, teve um dia que precisei trocar o óleo do carro e usei ele no lugar, deu super certo!
— Conheço esse seu humor… — afirmou Thadeu colocando o copo no banco de madeira.
— Como posso esconder de você o que sinto? Thadeu, treinamos juntos durante 20 anos, somos quase…
— Irmãos?
— É… irmãos — respondeu Kami se levantando com um ar de desapontamento.
— O que foi? Fiz alguma coisa? — perguntou Thadeu com aquela expressão de idiota que fazia Kami se segurar para não dar um tiro na testa dele.
— É o contrário, você não fez nada!
— Kami, acha mesmo que tenho poder para brigar com o nosso mestre? A única coisa que podemos fazer é concordar, ou nossa cabeça é arrancada do lugar!
— Pelo amor da Deusa Sýpam, você é muito lerdo… eu tô nem aí para o mestre, ou essa ordem da serpente maldita.
— Então, o que diabos você está querendo? — perguntou Thadeu logo em seguida.
— Nada…
— Nada? Eu não consigo te entender, não estamos aqui pela nossa vingança? Estamos muito perto de colocar nossas mãos na garganta do Draco Griseus… se você não começar a dançar conforme a dança, a gente perderá essa oportunidade.
— Thadeu, estava pensando no que você disse para mim…
— Que você deve seguir em frente?
— Isso… quando eu matar o chefão e toda família dele, quero deixar a ordem da serpente e construir uma nova família.
— Também penso nisso às vezes. Mas a dor que sinto, essa raiva de ter visto minha família ser massacrada, só desaparece quando mando esses infelizes ao inferno — afirmou Thadeu acariciando sua arma.
— Sempre o mesmo, matar é seu remédio para os pesadelos — zombou Kami — pena que eu ainda não encontrei meu remédio.
— Você disse bem, remédio. Ele não cura minha ferida, somente ameniza a dor. Acho que não existe cura para mim.
— Para mim, a única cura para meus pesadelos é ver a cabeça dos filhos de Draco Griseus arrancada de seus corpos. Apreciarei esse momento… Imagine quão triste esse monstro ficará quando ver quem ele mais ama morto…
— Você é minha amiga, juro diante de Sýnpam que vou realizar seu desejo — afirmou Thadeu acariciando o rosto de Kami.
— Jura… juradinho? — zombou Kami mostrando seu mindinho.
— Ju… — Kami o interrompeu com um beijo quente e molhado.
— Espero que você tenha compreendido o recado — brincou Kami.
Os dois voltaram para base e dormiram juntos. “Por que diabos ele está nos encarando por tanto tempo?” indagou Thadeu enquanto observava um quadro antigo. Nele estava desenhado o terceiro ancião da ordem. Barba cumprida, devia chegar aos pés, um manto negro e olhos vermelhos. Como uma pessoa tão sinistra pode existir? Kami se mexeu. Ela estava dormindo ao seu lado. Ainda não era de manhã. Thadeu era o único que não conseguia pregar os olhos. Claro que ele gostou de passar uma noite com Kami, sua… amiga? Ele não sabia mais nada!
Com cuidado, ele se levantou, pegou seu casaco e deu passos lentos rumo à janela, onde viu passarinhos voando num lindo jardim. Thadeu cuspiu em direção a grama. Mas em vez de colidir com a terra, ele caiu bem na tela que transmitia a cena. A base da ordem da serpente não é em cima, mas debaixo dos nossos pés! Ao mesmo tempo que a ordem gosta de manter discrição, eles também preferem deixar seus companheiros mais aconchegados. Por isso colocou telas em formato de janela que transmitia a natureza durante a noite.
— Inferno… porque eu ainda sinto esse treco — sussurrou.
Thadeu vestiu sua roupa e foi dar uma volta. Seus pensamentos eram muito barulhentos. Os gritos de sua mãe, como um pequeno ruído, o irritava. Aquele sentimento de impotência… de não poder salvar sua própria mãe apontava o dedo e ria da cara dele.
— Desgraça!!! — sussurrou um pouco mais alto.
— Pelo visto, você também não consegue dormir — disse o seu mestre, o velho cego.
— Haçane, meu velho, assim você me mata do coração! — zombou Thadeu.
— Está pensativo? Precisa de conselhos?
— Um pouco…
— Sua mente está cheia de confusão, presumo.
— Ouço minha mãe morrendo… e sinto aquele sentimento de impotência. Odeio me sentir assim, mestre.
— Esse sentimento é só uma mensagem — falou Haçane.
— Mensagem? — Não faz sentido nenhum!
— Não é para fazer sentido. Essa mensagem vem da própria Sýnpam. Ela te diz: O único jeito de salvar outras crianças de sentirem isso é usando a vingança como um motivo para acabar com esses monstros.
— Você está me dizendo que matar porcos como Draco Griseus é a missão da minha vida?
— Sim, meu jovem Thadeu. Sua missão é usar a sua raiva para servir os interesses da ordem.
— A ordem sempre escolhe meus alvos… — afirmou Thadeu.
— Por isso você deve confiar em mim. A ordem é a resposta dos deuses para os problemas de nosso mundo. Aquele que a ordem decidir que deve morrer, assim deve ser feito. Somos a cura da maior doença desse mundo.
— Doença? — perguntou Thadeu com uma expressão curiosa.
— A doença desse mundo é a fraqueza. Devemos eliminar tudo que é fraco, para não nascer outro Draco! — disse Haçane deixando Thadeu sozinho.
Ao amanhecer, Thadeu e Kami foram levados até uma sala secreta onde a ordem recebia seus convidados. Ele tentou se mexer, mas seus membros, atados com cordas, não permitiram. O mestre deixou bem claro que aquele era o único jeito de conversar com a pessoa mais importante do mundo. Mesmo assim, para ele, não era justo ter que ficar naquela posição. Kami não fazia nenhum barulho. Por algum milagre de Sýnpam, a quebradora de regras estava em silêncio.
— Por que está tudo escuro? — indagou Thadeu, quebrando o silêncio.
— Para vocês não verem o meu rosto — respondeu uma voz feminina alterada por algum tipo de dispositivo que a deixava mais grave.
— Mas que diabos! — gritou Kami — Pensei que estávamos sozinhos.
— E estávamos — respondeu Thadeu —, ela deve ter chegado agora.
— Gostei de você — sussurrou a voz —, parece ser um homem inteligente.
— Thadeu? Acho que você tá confundindo ele com outro homem.
— Kami, não tô achando graça!
— Calem a boca — gritou a voz — Meu nome é QianQian, vocês sabem o que isso significa, não sabe?
Quem não conhecia esse nome? QianQian era a líder suprema de toda Miragem. Nosso mundo foi tomado por ela graças a um acidente envolvendo uma criatura marinha chamada Tartabra. Esse monstro destruiu tudo pela sua frente, causando o caos por onde passava. QianQian, aproveitando essa oportunidade, usou todo exército de Turbidetes para tomar os países abalados e, para mostrar que não era uma simples humana, ela mesma derrotou a criatura. Miragem continuou sua vida, mas sem liberdade que outrora conseguiu. QianQian é a líder suprema, todos os líderes e chefes de estados devem obediência a ela. Se, por acaso, não seguirem as ordens da imperadora, eles recebem a visita de Mãos Turbina, sua general mais famosa. Ninguém nunca viu o rosto de QianQian. A única coisa que todos precisam saber é que ela deve ser temida.
— Líder suprema, perdoe meu linguajar — afirmou Kami.
— Silêncio, estou falando — disse uma figura mascarada emergindo das sombras.
Capacete negro adornado com uma espécie de véu que cobria o seu rosto. Armadura com detalhes escamados, semelhante às medievais, com um toque de tecnologia. Luvas de couro novíssimas e botas que pareciam ser de pele de dragão. Uma capa que chegava até os pés feita com couro de leão. Seus passos eram glamorosos, não é à toa que as pessoas conhecem ela como uma donzela que ganhou o poder de um deus. Thadeu ficou com medo. Aquela figura conseguia ser mais assustadora do que o próprio Draco Griseus.
— Nesse momento, a General Mãos Turbina está tentando eliminar o gato e a fada — afirmou QianQian —, vocês sabem que eles são uma ameaça para a paz de Miragem e pregam uma falsa vida fofa que somente tolos podem acreditar.
— O gato e a fada? Nossa missão é matar eles? — perguntou Kami.
— Não, eles pertencem a minha senho… — ela parou abruptamente de falar e, logo após suspirar, voltou a dizer — ao meu general Mãos Turbinas.
— Então, quem a gente vai matar?
— Como minha senhora… quer dizer… meu general, está lutando contra a praga do maldito gato e sua fada, não tenho tempo para eliminar uma pessoa que vem causando intriga em meu império.
— Draco Griseus? — indagou Thadeu.
— Isso — respondeu QianQian — Ele vem fazendo as pessoas duvidarem que meu império tenha o poder de manter a paz no mundo. Isso é ruim, porque se esse pensamento continuar, mãos turbinas não vai gostar nada e essas pessoas vão perecer por causa da própria língua. Antes que isso aconteça e a minha… quer dizer, meu general, perca a cabeça, acabarei com a praga do tráfico de perimpimpim.
— Quer dizer que finalmente vamos matar Draco Griseus? — perguntou Kami sorrindo.
— Isso! — respondeu QianQian. — …. Na verdade, vocês não podem matar ele. Ele tem super força, velocidade, consegue voar e tem raios laser nos olhos! Vocês precisam descobrir o motivo do Draco Griseus não querer tomar o meu império até hoje. Por que ele prefere ser um traficante, do que o chefão supremo? Se vocês tentarem matar ele, irão se dar mal. Por isso precisam descobrir o segredo por trás dele, qual é a sua fraqueza e como usá-la!
— E você sugere que batemos na porta dele e falamos: Senhor Draco Griseus, somos assassinos e viemos conversar sobre sua força? Vamos estar mortos antes disso! — afirmou Kami.
— Silêncio… — disse QianQian segurando o queixo de Kami — se você falar assim comigo de novo, farei você se tornar nada mais do que uma pasta de carne. Estou pagando um rio de dinheiro para sua ordem estúpida. Se vocês dois falharem, mãos turbina reduzirá toda sua ordem em cinzas.
QianQian voltou para as sombras. Um silêncio tomou o recinto. Kami não ousou fazer mais nenhuma pergunta. As luzes acenderam. Haçane, de pé em frente aos dois, comia seu cachorro-quente. “Estranho… nunca vi ele comendo em público”. Pensou Thadeu. “O que o medo não faz com um homem!”.
— Vocês ouviram, QianQian quer a cabeça de Draco Griseus e vocês dois foram escolhidos por mim para fazerem essa missão — falou Haçane quebrando o silêncio.
— Será que alguém pode me soltar dessas porcarias? — disse Thadeu.
— Vocês dois vão se infiltrar na organização de Draco Griseus — continuou Haçane, ignorando seu aprendiz — nossos informantes descobriram que ele abriu vagas para seguranças particulares da filha dele. Vocês dois, usando disfarces aperfeiçoados com magia, irão trabalhar para ele. Uma vez na organização, farão o que vocês fazem de melhor, espionar. Descubram a fraqueza dele e, logo após confirmarem ser verdade, usem ela para matá-lo.
— Não faz sentido, o cara super forte querendo guarda-costas? — indagou Thadeu.
— Cala boca, seu idiota — disse Kami.
— Vocês dois juram, diante da ordem da deusa serpente, que irão cumprir a missão? — perguntou Haçane.
— Juro… — disse Kami.
— E você?
— Mestre… juro juradinho — falou Thadeu, provocando uma risada em Kami.
— Fala direito, seu idiota!
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