A favela do papagaio sem bico, a mais conhecida de Boombayacles, era um morro com casas sem acabamento, ruas sujas e comércios locais. Entre o povo desse lugar, vivia anões, elfos, humanos e algumas criaturas mágicas. A economia do Papagaio sem Bico sempre girou em torno de uma única figura. Seu nome era Draco e seu lar, um castelo de pedras, semelhantes aos medievais, no topo do morro, representava seu poder. Desigualdade levou as pessoas mais pobres a invadirem aquelas terras. Com o tempo, a criminalidade foi a única solução para sustentar suas famílias.
Kami se recordou dos dias vivendo com seus pais num barraco. Ela tinha só 14 anos. Foi nessa mesma época que ela conheceu seu namorado e fez a besteira de se encontrar com ele sozinha numa casa abandonada. Que época boa! Seu pai saía para entregar gás e sua mãe fazia faxina na casa dos ricos na zona sul. Ela nunca imaginaria que sua aventura às cegas com seu amor geraria a pequena Alice. “Talvez eu nunca teria me deitado com ele se soubesse o quão sofrido seria nossa vida”.
Antes que eles saíssem do templo da serpente, Thadeu entregou uma pílula nas mãos de Kami. “Todos os dias, antes de dormir, você vai tomar uma dessas” disse ele “Sua aparência irá mudar, nem mesmo seus amigos mais íntimos irão reconhecê-la. Quando ela tomou a primeira pílula, seu rosto se desfigurou, transformando ela numa outra mulher. Cabelos negros, pele morena e nariz empinado, esse era seu novo rosto.
Thadeu buzinou. Os pequenos elfos correram. “Esses moleques! Tem lugar para jogar bola, não no meio da rua!” pensou ele suspirando. Kami continuava desligada. O suor em sua testa. Aquela sensação de estar voltando para o passado fazia sua barriga formigar. Thadeu não poderia entender esse sentimento. Ele era um dos mimados da zona sul e ela apenas uma “favelada”. As pessoas fizeram expressões de espanto. Aquele veículo chique nunca passaria por lá, só tinha uma resposta para tal milagre acontecer, os donos eram membros do comando dragão cinzento!
— Kami… — disse Thadeu apontando seu indicador na direção de três homens armados.
— Já chegamos? — perguntou Kami, voltando a si.
— E lá vamos nós fingirmos ser capachos daquele lixo — afirmou Thadeu cerrando os dentes.
O chefão dos homens armados fez sinal para ele baixar o vidro. Eles tinham orelhas pontudas, corpo todo tatuado, usavam bermuda e uma corrente de ouro com o símbolo da grande deusa. Thadeu sentiu a ponta do fuzil tocar sua testa. Ele suspirou mais uma vez. Seu treinamento o fez capaz de matar coisas piores do que três viciados em perimpimpim, mas as regras eram claras, sem mortes.
— Como vai, rapaziada! — disse Thadeu sorrindo.
— Quem são os cês? Tá ligado que aqui é a casa do chefe, né?
— Fomos contratados pelo seu chefe, somos o pessoal novo que ele contratou.
— Como se o chefão precisa-se de proteção — zombou o homem.
— Você vai liberar a gente ou não? Estou sem tempo para gracinhas com noiados — falou Kami, para o desespero de Thadeu.
— Você tá me tirando? — perguntou o homem.
— Ela só tá zoando, não tá? — indagou Thadeu dando um tapa no ombro de Kami.
— É só uma brincadeira… — afirmou Kami — Você está muito tenso, não acha legal um pouco de piada para quebrar o gelo?
O homem não gostou nenhum pouco daqueles dois idiotas, mas, ao mesmo tempo, não queria dor de cabeça com Draco Griseus. Ele fez sinal para os outros liberarem o caminho. Thadeu acelerou para dentro do castelo. “Por qual motivo um idiota iria construir essa merda de castelo na favela?” Pensou Thadeu, olhando ao seu redor com uma expressão de nojo.
— Eu nunca entrei na casa dele — disse Kami tirando o cinto de segurança.
— Você se sente pronta? — perguntou Thadeu com um ar de preocupação.
— Como assim?
— Resumindo, você vai ficar cara a cara com o homem que matou sua filha… você acha que pode fazer isso sem surtar?
— É claro que posso! Além disso, ele também matou sua família, então não se preocupe comigo.
— Kami, a partir de agora, não somos mais os antigos Atiradores de Elite. Somos bandidos e traficantes, leais ao chefão e sua organização. Enquanto não descobrirmos a fraqueza dele, devemos manter esse disfarce…
— Sei o que tenho que fazer, me poupe de suas preocupações — disse Kami fechando a porta do carro com força.
Ela apertou a mandíbula. Uma mordida nos lábios. Sua mão começou com aquele formigamento maldito. Kami fechou os olhos. Lentamente ela deixou o ar entrar no nariz. Ela o segurou em sua barriga. 1… 2… Kami suspirou. Thadeu fitou seus olhos com uma cara neutra. Ele não queria dar na cara que tinha alguma relação com ela. Os capangas do chefão os estava guiando pelo castelo sinistro. As paredes eram cinzas, estátuas de antigos heróis enfeitavam os corredores.
— O chefe está esperando na sala dele — disse um elfo segurando uma AK-47.
— Vocês dois precisam deixar suas armas conosco — afirmou o companheiro do elfo, um homem magro com os dentes amarelados e o cabelo cor de rosa num penteado ridículo.
— Espere… — disse Thadeu. “Por que diabos o homem indestrutível tem medo de armas?”
— O que foi? Vai ficar de gracinha? — gritou o elfo.
— Entregue logo essa arma, estou ansiosa para conhecer o chefe — falou Kami.
— Se o chefe quiser, pode levar.
Thadeu hesitou por um momento. Seus revólveres tinham um valor sentimental. Banhados a ouro, suas armas foram gravadas com os nomes dos membros de sua família. Isso era um lembrete do porquê ele estava nessa loucura de ordem da serpente.
— Quer que a gente deixe você a sós com essa porcaria? — zombou o elfo.
— Não vou pôr a mão nisso, vai saber onde ele enfiou elas — completou o outro.
— Não sei onde enfiei, mas sei onde vou enfiar… — disse Thadeu se preparando para atacar — bem no olho do seu…
— Para com essa palhaçada — gritou Kami puxando as armas das mãos de seu amigo —, não to nem um pouco no clima para isso!
Os capangas continuaram suas piadinhas. Thadeu os seguiu com a cabeça baixa. Kami continuava apreensiva. Cada passo a aproximava do homem que matou sua filha. Escuro, somente a luz das janelas iluminava aquele pequeno corredor. As paredes pareciam que iria esmagá-los. Portas de madeira com desenhos de pessoas esquisitas. Pequenos blocos de tijolos cinzas com mofo verde. Janelas pequenas com vista para o céu. Tapetes vermelhos com desenhos de anjos lutando contra monstros sangrentos.
— É impressão minha, ou esse corredor está ficando pequeno? — indagou Kami.
— Coisa do chefe. Ele gosta de simbolismos — respondeu o elfo.
— E que diabos isso significa? — disse Thadeu sentindo as paredes apertarem seus ombros.
— É apertado o caminho que leva aos deuses, sacou? — respondeu o elfo com um olhar de desdém.
“Faz sentido, ele deve se achar um deus, por isso fez esse trocadilho.” já não havia mais portas, só uma pequena e apertada logo a frente. Thadeu olhou para trás e percebeu que todos andavam em fila indiana.
A pequena porta se abriu. O que tinha lá era muito maior do que aquele corredor estreito. Uma sala chique ao estilo medieval com mesas cheias de comida e pinturas antigas de deuses e deusas escravizando a humanidade. Os elfos os deixaram sozinhos. Até mesmo eles tinham medo do dono daquela área.
— Amada Sýnpam, protetora dos mortais — dizia um homem sem camisa de joelhos prostrados ante uma estátua da deusa Sýnpam —, abençoada seja pela eternidade! Peço que você proteja minha família… eles são o meu tesouro.
Família. Essa palavra causou arrepios em Thadeu. Era ele, o assassino, bem ali, diante dos seus olhos. O homem se levantou. Kami cerrou os dentes tão forte que ela sentiu o gosto do seu próprio sangue. Naquele momento ela tinha que fingir ser leal aquele monstro, algo difícil até mesmo para alguém treinado como ela.
— Meu nome é Malphas Veleno, mas as pessoas gostam de me chamar de Draco Griseus— disse o homem encarando os dois com um sorriso amistoso —, creio que vocês são Thadeu e Kami, certo?
— Sim… sim senhor — respondeu Thadeu. Como ele havia previsto, o assassino não associou os seus nomes às pessoas que ele matou, já que não guarda memórias de suas vítimas.
— Os meus contatos disseram que vocês dois são ótimos guarda-costas — falou Malphas enquanto pegava uma garrafa amarelada —, vocês dois devem estar se perguntando, como diabos o homem indestrutível precisaria de guarda-costas? A resposta é simples, eu não preciso. Aceitam uma bebida?
— Por que estamos aqui se você não precisa da gente? — indagou Kami.
— Simples, eu tenho filhos. Diferente de mim, um deus preso entre essas merdas, eles não têm poderes. São tão mortais quanto vocês dois. Uma coisa que aprendi com meu pai é que devemos proteger a família, mesmo que eles sejam inúteis e imprestáveis. Acontece que preciso cuidar dos negócios, não tenho tempo para lidar com meus filhos. Por isso contratei vocês dois.
— Não vamos trabalhar com o senhor? — perguntou Kam.
— Você é a única que está falando comigo sem medo — afirmou o chefão entregando uma taxa nas mãos dela —, isso é raro. Sabia que eu não sei o que é ter alguém que converse comigo há anos? Meus filhos são mimados e meus homens medrosos.
— Eu não tenho medo de você — rosnou Kami.
— Interessante, vejo que seu amigo aqui treme toda vez que você fala comigo — disse o chefão encarando Thadeu —, você parece um covarde, odeio pessoas de sua laia.
— Malphas, garanto que ele não vai decepcionar — falou Kami —, basta olhar para seus homens, nenhum chega aos pés desse sujeito.
— Você me chamou do quê? — perguntou Draco apertando o pescoço de kami.
— Malphas… te chamei pelo seu nome.
— Interessante — respondeu o chefão soltando Kami logo em seguida —, você não se parece em nada com os fracos que me cercam. Vamos fazer o seguinte, você trabalhará comigo e o covarde aqui cuidará da minha filha.
— O quê? — indagou Thadeu, para surpresa de Draco.
— Podem me chamar de santo, porque acabei de fazer o mudo falar — zombou — Está questionando minhas ordens?
— Não…, só queria fazer parte de sua equipe pessoal… — disse Thadeu sentindo suas pernas tremerem.
— Tenho dois filhos. Um já está sendo protegido. Queria dois guarda-costas para minha boneca, mas as circunstâncias mudaram. Preciso de uma companhia e sua colega me parece mais promissora nesse quesito do que você. O que significa que o estou designando ao cargo de protetor da minha filha. Se algo acontecer com ela, você morre. Simples, não acha?
Thadeu sentiu nojo. O que ele poderia fazer contra o homem indestrutível? Sorrindo, ele balançou sua cabeça com um olhar neutro. Kami engoliu em seco. O assassino de sua bebê tinha uma filha. O maldito ainda tinha coragem de chamar ela de boneca!
— Thadeu, vá até o quarto de minha filha e se apresente. Depois disso, ande com ela para onde ela bem entender. Seja meus olhos e ouvidos. Não permita que meus rivais façam mal a ela e, como recompensa de seu serviço, vou lhe entregar umas doses de perimpimpim sem custos adicionais.
Thadeu não queria ser babá de ninguém! Seguir o plano sempre foi mais importante que sua própria vontade, mesmo que isso o colocasse em situações constrangedoras. Ser babá da filha do cara que matou sua família era o cúmulo do ridículo! “Espero que esse plano dê certo”. A porta na sua frente era branca com desenhos de rosas e beija-flores. Ele respirou fundo. Bateu três vezes. Uma voz estridente mandou ele entrar. “Calma… muita calma… é só uma mulher, não preciso me preocupar…”
O quarto era bem mais simples do que ele imaginava. Uma cama de casal com um lençol laranja. Paredes mofadas. Alguns livros velhos nas estantes. Televisão de tubo. Deitada sobre o colchão, Melina Veleno acenou com um sorriso amistoso. Shortinho apertado, mini blusa, pele negra, cabelos cacheados cor caramelo. Thadeu, por um segundo, se esqueceu que estava diante da filha do chefão. Seu coração bateu forte. Ele nunca tinha sentido isso antes… espera, ele já sentiu esse formigamento, mas foi há tanto tempo. Naquela época ele era apaixonado pela professora de línguas místicas.
— O que você está olhando? — perguntou Melina.
Sua mente voltou ao seu lugar. O ódio que ele sentia pelo chefão o fez mudar para uma expressão neutra. Aquela coisa deitada na cama era um alvo. Para vingar sua família, ele teria que matá-la.
— Sou seu guarda-costas, me chamo Thadeu — respondeu.
— Meu pai disse mesmo que alguém viria me proteger. Pelo que ouvi, você é um ex militar de QianQian que está insatisfeito com o salário — falou Melina.
— Meu passado não te interessa — disse Thadeu com seu olhar neutro.
— Ui! Você não teme a morte. Gostei de você, mesmo sabendo que nossa vida juntos será bem agitada.
— O que você planeja fazer hoje?
— Eu não cogito fazer nada. Estou trancada em meu quarto assistindo televisão, então você está dispensado. Quando eu for para algum lugar, te chamo…
Thadeu nem deixou Melina terminar de falar. Ele saiu do quarto e bateu a porta com tanta força que o som chegou aos ouvidos dos capangas. Eles encararam Thadeu com expressões engraçadas. “É tudo que eu preciso, idiotas zombando da minha desgraça!”
— Se me dão licença, vou cagar — gritou Thadeu.
Ele correu para dentro do banheiro mais próximo. Tirou um pedaço de chocolate do seu bolso e comeu. Sempre que sentia raiva, um gosto amargo ficava em sua língua. Para tirar isso, ele comia doces. Além de aliviar o gosto ruim, fazia ele se lembrar dos jantares em família que seu pai trazia caixas de bombons baratos. Era horrível! Mas a intenção do seu pai era tão amável, que fazia aquele gosto de borracha parecer mais gostoso.
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