— Esse é um pedido muito complicado, ela anda muito ocupada e eu não sei se quero abandonar meu irmão e minha família aqui. Eles me amam, sabe?
— Raissa.
— Ah?
— Eles não gostam de vocês de verdade. Logo você verá.
— Isso é mentira!
Aquela tensão construída por ali era um limiar de desconforto entre as duas, dado que Júlia nunca esteve tão incomodada com a família de Raissa até então. O ato de apagar um dos vestígios do povo Valente na sua amiga tão querida servia como uma afronta a ela, nutria a obrigação de intervir.
(...)
A curiosidade de Raissa pode esperar já que sua indignação com as palavras da sua companheira de brincadeiras havia roubado os holofotes. Naquela amizade, havia liberdade para qualquer coisa, menos o desrespeito com o que a jovem Buloke considerava seu tesouro: a sua amada família. Por isso, ela retornou a Mansão Buloke com um biquinho no rosto enquanto chutava as pedrinhas que ocupavam seu caminho.
Já fazia dias da purificação dos serventes, porém, ainda tinha alguns vestígios da festa sendo cuidados pela empregada ruiva que estava cuidando dos fundos da casa, realocando alguns itens nos seus devidos lugares. Foi então que avistou, de longe, a jovem travessa com um semblante diferente do habitual voltando da mata.
— Oi, Raissinha.
— Oi, tia Layla.
A resposta mostrou-se seca tal como algo automático que fugiu das explicações, então, isso resultou numa feição preocupada acompanhando os passos da menina em direção a cozinha.
“Aconteceu alguma coisa incomum com ela lá fora. O que essa garota que ela anda junto fez?”
Seu questionamento permaneceu apenas mentalmente, dado que tinha noção que a jovenzinha não fazia ideia de que Layla acompanhava seus passos fora da mansão. Pois, seus pais confiavam à funcionária essa responsabilidade de zelar pela integridade da filha deles, enquanto eles focavam nas prioridades mais emergentes dos mais importantes Fieis a Sândalo.
E com a ameaça Naya distante de Jardim dos Desejos, eles permitiam que a menina experimentasse uma rotina sem restrições e qualquer uma vigilância constante.
Com essa responsabilidade era complicado entender alguns conflitos que cercavam a cabeça da Buloke sem questioná-la diretamente, porém, sentia que ela não conseguiria guardar tudo isso pra si. A solução era segui-la até a mesa do jantar onde poderia vazar alguma informação que auxiliasse na sua investigação.
— Vai querer a salada?
— Ah, mãe...
— Só um pouquinho, Raissa... Olha seu irmão! — Sabrina insiste com a colher de servir na mão, enquanto aponta com o queixo para Raimundo, no qual, forçou comer o tanto de salada que estava no prato para motivar sua irmãzinha. — Você está adorando a saladinha, né filho?
— B-Sim! Eu estou abando! Cof! Cof! — Falar com a boca cheia quase não deu certo por conta do gosto das verduras que afetavam o paladar infantil do moleque. Mas, aquele tom conseguia convencer Raissa a ceder as súplicas de sua mãe.
— Só um tiquinho de nada.
— Já é uma coisa, viu! — A animação era evidente naquela exclamação.
Contornando a mesa, Sabrina se acomodou ao lado do esposo. A disposição das cadeiras obedecia uma organização fixa, adaptável a qualquer visita inesperada. Sabrina ocupava a primeira posição na ponta esquerda; no centro, Luiz, o patriarca. Raissa, a filha caçula, se sentava na ponta direita, no lado oposto a sua mãe, enquanto Raimundo, o primogênito, ocupava a segunda cadeira daquele lado. Convidados utilizavam os demais lugares, sem alterar o costume do lar.
A ausência de qualquer comentário deu sequência a oração de praxe que acontecia no inicio de cada refeição, conquanto que o questionamento não permanecesse no interior de Luiz por pouco perceber a presença da filha naquela tarde em que ele ficou um pouco mais descompromissado que o normal, evitando seu escritório por exemplo.
Onde sua filha estava?
Essa pergunta não poderia ficar guardada a sete chaves no seu baú mental. Tantos pensamentos assim poderiam ser espinhosos.
— Filhinha, o que você passou fazendo essa tarde toda? Não te vi pela casa.
— Aaah? Eu? — Não tinha o porquê mentir sobre tudo, menos aquela última situação que a chateou. Por isso, abriu o coração com sinceridade sobre o conjunto quase todo. — Fiquei a tarde toda brincando com uma amiga.
— Olha só... Você arrumou uma amiguinha pela vizinhança. — A curiosidade presente no sorriso de Luiz era tão positiva que ficou impossível não ganhar a atenção de todos da mesa.
— Faz um tempo já, o nome dela é Júlia, ela adora brincar comigo e de vez em quando, reclamamos sobre a vida juntas.
— Reclamam, é? Vê se pode. — O deboche se evidencia. — Reclamar de quê? Haha!
— Bem, dessa vez, ficamos conversando sobre o meu cabelo e ela me elogiou também. Eu gosto muito dela.
Essa última afirmação parecia perdida, pois, quando a palavra “gosto” foi emitida, o tom ameno da voz dela guardava resquícios de mágoa. Seus pais perceberam e logo franzem a sobrancelha.
— O que aconteceu entre vocês? — Luiz, largando os talheres, juntou as mãos em cima da mesa, observando-a com um sorriso bobo.
— Ah! Ela falou algumas besteiras que me chatearam, tocou em algumas coisas que, de verdade, ela não sabe de nada!
— Sério? Poxa. Traz ela aqui em casa para vocês se resolverem. Não é legal ficar brigada com uma amiga tão legal.
A paciência de Luiz tinha um propósito claro: identificar a pessoa da vizinhança cuja amizade da sua filha poderia abrir brecha e estreitar laços entre as famílias, dado que independente da popularidade deles, a rotina deles ainda era muito solitária até então. Assim, o patriarca já queria garantir uma ligação com alguém que provavelmente era da alta cúpula da sociedade pois para ter condições de morar ali, tinha que ser um “nobre”.
“Será que essa Júlia é uma Fiel a Sândalo também? Caso seja, provavelmente seus pais nos conhece. Hm... isso pode ser interessante.”
— Então é por isso que você não para em casa. Você prefere brincar com essa tal Júlia. Entendi.
Raimundo nutriu um incomodo que mexeu com todos ali, principalmente, sua irmã que tinha captado a mensagem.
— Não, Raimundo. Você não...
Entretanto, ela não conseguiu questioná-lo diretamente por conta da saída do moreno da mesa. Ele havia terminado sua refeição assustadoramente rápido e isso ocasionou num vazio impreenchível naquela janta, que, por mais que houvesse esforço de manter as aparências, se tornou outra completamente diferente de antes já que a ausência de uma peça era o suficiente para deixar o quebra-cabeças incompleto.
“Não é isso, Raimundo... É diferente. Bem diferente.”
À medida em que o tempo avançava, as reflexões tomavam a garota que quando percebeu, deitou sua cabeça levemente no travesseiro, ainda distante do seu irmão que dormia na cama de cima da beliche. Apesar de compartilharem o mesmo quarto, quando eles brigavam era como se eles morassem a quilômetros de distância.
“Não posso apresentar ela pro papai e pra mãe já que ela não gosta deles. Mas, com aquela proposta envolvendo a mamãe. O que ela tá querendo dizer?”
Em meio às incertezas, Raissa não tinha outra saída, teria que acertar as contas e esclarecer suas dúvidas com Júlia no próximo dia. Sendo assim, ela forçou-se a adormecer para avançar no tempo com mais velocidade.
(...)
No dia seguinte, ela salta da cama com um aperto no peito sendo o principal motivador para apressar seus preparativos para encontrar sua amiga nos entornos da sua casa. Raissa, logo, partiu em direção aos fundos quando cruzou com a ruiva que estava regando algumas plantas. Não obstante, a moça interrompeu seus passos com um educado “bom dia”.
— Opa! Bom dia, tia. — A menina coça a cabeça, espantada.
“Ela comentou tanto sobre a amiga dela ontem na janta, provavelmente deve estar indo resolver as coisas. É bom que eu não levante suspeita alguma. Só agir normalmente como sempre.”
— Toma cuidado por ai. Tá bom?
— Hm? P-Pode deixar!
Freando por alguns segundos, sem captar completamente o recado deixado pela sua cuidadora, a garota acelera, cruzando a floresta até chegar nas proximidades da árvore onde marcava os principais momentos das suas tardes calorosas. Assim, ela pegou um ar, até ouvir uma exclamação vindo logo atrás dela.
— Pensa rápido!
Raissa, prontamente, virou e estendeu o braço para pegar o que Júlia havia jogado. Era uma fruta brilhante com um formato de uma maçã, porém, prateada. Nunca tinha presenciado algo tão magnífico que fosse comestível, então, não tinha como sua primeira pergunta fugir dessa curiosidade:
— Isso é de comer?
— Ih, se é! — Júlia, agora, usando dreads completa sua caminhada até o tronco com um olhar convencido e, ao morder a fruta misteriosa, um semblante carregado de alegria se expande. — Talvez essa seja a parada mais gostosa que você vai comer na vida.
“Exagerada...”
— Vamos ver...
Seja como for, ela havia dado o primeiro passo, mordendo a fruta enquanto mastigava com tranquilidade. O gosto era paradoxal, já que enquanto a textura era crocante com o frescor sendo o destaque se distinguir de outras frutas mais pastosas, o sabor surpreendia com uma fusão do gosto viciante do doce de leite e a suavidade de um néctar de uma uva. Era intenso, transformador e pelo incrível que pareça, energético.
— Caramba, isso é mesmo mágico! — A garota tremia de emoção.
— Essa é uma das frutas do desvelamento, o nome dela é “Agraw”. Ela costuma ser usada pelo povo valente como um energético natural que revigora nossas forças. Sentiu um pico de animo vindo?
— Pior que eu senti um arrepio aqui. Nossa, que maneiro!
— Tem mais seis de onde essa vem.
— Seis? — A quantidade parecia um pouco irreal para Raissa, pois, considerando a diversidade da natureza do país que sua mãe apresentou, provavelmente teria mais do que apenas seis frutas. — Mas, essas frutas do desvelamento são naturais de Cygnus?
— Na mosca! Não, elas são frutas fabricadas pelos Valentes utilizando seu poder de desmaterializar as outras frutas e fundir o sabor de cada uma em uma nova receita.
— Isso é tão louco que eu não acreditaria antes de provar essa belezura.
— Acredite se quiser, Raissa. Nós, Valentes, sempre arrumamos um jeito de descobrir como desfazer o impossível e achar a beleza no novo. Você também possui esse dom dentro de você.
— E-eu? Como assim?
— Todos fazemos o possível para encontrar a felicidade em nossos anseios irreais. Por exemplo, meus pais, eles arrumaram um jeito de ser felizes juntos, se casando, mesmo que a vida deles seja se esconder da maioria da população.
— Que duro...
— A vida é assim, Raissa. Tão dura que temos que arranjar esforços mágicos para retornar a base de tudo. — Enquanto reflete, Júlia pega uma grande pedra no entorno da árvore e retorna ela ao pó utilizando seu poder. — Você não nutre um desejo dentro de si?
— Bem... Não sei, eu acho que eu queria ser uma inspiração pra alguém em alguma coisa. — Raissa sorri sem graça, e logo usa o cabelo como um subterfúgio para depositar seu nervosismo em uma ação. De uma maneira graciosa.
— Olha, você é uma inspiração pra mim.
— Sou?
— É. Tanto que eu... — Júlia tira do bolso dois galhos secos em formatos de anéis, estendendo a mão com um olhar confiante. — ...quero casar contigo, futuramente. Você me promete?
— O quê?! Mas nós somos...
— Minha mãe me disse para correr e garantir minha felicidade o mais cedo possível. — A garota se aproxima de Raissa, apoiando as costas das mãos sobre o peito da companheira. — Tenho certeza de que minha felicidade será ao seu lado, Raissa. Aceita a minha proposta.
— Esses são anéis...
— São a prova do nosso juramento!
O coração da garotinha Buloke disparava, suas orelhas queimavam como se estivessem sob o calor de um maçarico. Tinha saído de casa com o pensamento fixo de ajeitar as coisas, só que, ser pedida em casamento era uma cláusula em letrinhas miúdas que ela não esperava ler nesse contrato. De todo modo, não encontrou razões para dizer não.
— Pode colocar...
Ela entregou sua mão com uma confiança que só existia naquela amizade, assim, Júlia deslizou o anel de galhos secos sobre o dedo da sua jurada de amor como seus pais haviam feito com alianças de verdade, copiando-os. Então, ao concluir, pôs no seu anelar esquerdo também e selou seu juramento com um beijo na bochecha de Raissa.
— Uia! — Ela balbuciou, corando levemente.
— Agora, eu duvido que a bobinha, consiga me pegar!
Quebrando aquele clima fofinho entre as duas, Júlia retorna para o tipo de brincadeira habitual delas, mostrando que permanecia a mesma de ontem. Convidando ela para uma brincadeira de pega-pega que duraria a tarde toda e desafiaria Raissa a perder toda estamina que ganhou comendo a Agraw. Elas mal sabiam que aquele seria o último momento de diversão naquela tarde que gravaria seus registros no coração da Buloke para sempre.
(...)

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