Kami respirou fundo. O olhar de todos a perseguia como se fosse a mira de um sniper. Sobre suas cabeças, um lustre iluminava toda a sala. Cortinas clássicas de cor ouro enfeitavam as janelas de madeira. Cada membro tinha sua cadeira rústica posicionada nos cantos. No meio tinha uma pequena mesa redonda com duas cadeiras brancas e um sofá, onde o anfitrião mastigava pedaços de abacate com aveia.
— Kami — a voz de Malphas quebrou o silêncio —, você é nova por aqui, então nada melhor que conhecer os seus novos companheiros.
O primeiro homem, cuja aparência lembrava um morto vivo, sorriu. Seu nome era Marcos e todos o chamavam de papa defunto, não me pergunte o motivo por trás disso. Uma moça sensual com cabelos ruivos e rosto coberto por uma máscara de cera acenou. Anacrônica não gostava de falar muito, por isso usava essa coisa no rosto para não precisar sorrir para ninguém. O terceiro membro era um homem tão gordo que ocupava metade da mesa só para si! Seu nome era Puro Osso, apelido carinhoso dado pela sua irmã, a filha de Malphas. Por fim, Zé risadinha se apresentou. Sua boca era costurada, por isso desenhou um sorriso macabro em seu rosto. Ele usava roupas de palhaço e tinha um chapéu de bobo da corte.
— O Zé risadinhas é meu irmão — falou Malphas — e a mascarada é só uma diversão que gosto de manter por perto.
— Grande família — sussurrou Kami.
Os membros da mesa a fuzilaram com seus olhares de desaprovação. Aquele silêncio constrangedor foi quebrado pela risada de Malphas.
— Vocês devem estar se perguntando, por que diabos ela está aqui? — disse Malphas. — Vou começar com o básico, vocês são pedaços de lixo que só sabem lamber minhas bolas. Preciso de pessoas que me questionem.
— Isso não faz o menor sentido! — indagou Anacrônica.
— Quem manda aqui sou eu, não você, boneca de trapo.
— Papai, ela não é membro da sua família, tem certeza que devemos confiar nossos segredos a ela? — perguntou Puro Osso. Mesmo tendo 30 anos, ele insistia em falar feito um fedelho mimado.
— Concordo, ela mal conhece a gente, como que pode tá na mesa da família! — afirmou o Papa defunto.
O chefão fez uma careta. Todos ficaram em silêncio. Malphas não gostava muito de discussões na hora da refeição. Para ele, era um momento sagrado que tinha que ser aproveitado com carinho. Ele espetou seu palito no pedaço de abacate, levou até sua boca e mastigou bem devagar. O som do alimento passando pela garganta de Malphas era o único ruído que eles escutavam.
— Kami, meu filho tem razão — disse o chefão passando o pano de prato nos lábios.
— Você quer que eu vá embora? — perguntou Kami com medo daquele ser seu último suspiro.
— Todos aqui provaram seu valor, por isso ganharam o direito de sentar ao meu lado. Você é diferente dos outros, admito, mas não o suficiente para estar aqui.
— Malphas, essa mesa já está cheia demais para gente confiar nessa piranha — disse Anacrônica com um ar de ciúmes —, manda ela fazer alguma coisa útil e…
— Eu mandei você falar? — gritou Malphas.
— Não….
— Kami, como eu estava dizendo, todos provaram seu valor. Papa Defunto fez um serviço sujo que ninguém faria para mim, meu irmão também e Anacrônica matou o próprio marido para estar nessa mesa. Menos o Puro Osso, esse tem só a sorte de ter nascido meu filho. Você precisa provar que está disposta a dar sua vida por mim.
— Como eu posso provar isso a você? — perguntou Kami com medo dele pedir algo que ela nunca faria.
— Ultimamente, sinto que meu abacate tem diminuído. Sou um homem calculista, gosto de saber a quantidade de alimento que entra em minha casa.
— Tá querendo que eu compre abacate?
— Eu quero que você encontre o ladrão dos meus abacates e o traga até mim.
— Só isso?
— Por enquanto. Não se esqueça, gosto de fazer testes com as pessoas que deposito minha confiança — afirmou Malphas mordendo outro pedaço de abacate.
Kami resolveu começar sua investigação com o mais óbvio. Malphas possuía muitos funcionários. Seu castelo não era gigante, mesmo assim ostentava 80 pessoas trabalhando para garantir o funcionamento do seu lar. Eles eram pouco remunerados, alguns nem salário recebia, mas trabalhavam para pagar suas dívidas com Draco. Kami foi aceita muito rápido por Malphas. Isso soou meio estranho para ela. “Será que ele sabe quem eu sou? Não pode ser, ele só deve ter gostado de mim ou pretende fazer alguma coisa comigo”. Kami deixou seus pensamentos de lado e mandou reunir todos os funcionários do castelo em uma fila. Entre cochichos, cada um tinha o seu motivo para odiar a nova favorita do chefão. Mal chegou e já estava dando ordens! Eles queriam voltar aos afazeres, quanto mais tempo perderem com aquela palhaçada, pior seria a punição do chefe pela bagunça.
— Pessoal, preciso que vocês colaborem comigo — falou Kami com uma voz calma. — O chefão suspeita que um de vocês tenha roubado abacate da despensa. Eu resolvi reunir todos aqui para descobrir quem foi o culpado, assim ele não pune todos por uma maçã podre.
Os funcionários ficaram em silêncio. Quem seria o culpado? Pensou alguns, enquanto outros apenas rezavam a sua deusa Sýnpam por proteção. Kami foi treinada pelo próprio Haçane, lógico que ela se tornou uma máquina de detectar mentiras. Ela olhou um por um, respirou fundo e deixou seus pensamentos fluírem. Todos estavam agitados. Seria um pouco difícil descobrir a verdade. Sua mente trouxe uma memória antiga. Haçane disse que uma vez numa missão ele tinha que descobrir quem era o Ricardão que vinha namorando a rainha dos anões. Ele investigou todos os homens daquele pequeno reino, mas todos tinham um álibi perfeito. Quando estava prestes a desistir, viu o eunuco saindo escondido à noite. Como não tinha mais nenhum caminho, Haçane seguiu aquele homem, mesmo sabendo que se tratava de um castrado. Para sua surpresa, o Anão era o namorado da rainha. Ele escondia um feitiço que disfarçava sua aparência, por isso parecia ser um eunuco clássico. “Eu só não desconfiei antes do eunuco, por deixar o preconceito de que alguém daquela condição não poderia ser um amante cegar minha mente”
— O Chefe me deu autorização para matar todos vocês, ele disse que consegue outros para substituí-los — afirmou Kami apontando sua arma na direção de um velho encanador.
— Senhora, nunca roubaria a comida do meu Senhor! — disse ele quase chorando por sua vida.
— Não foi o que eu queria ouvir — gritou Kami atirando logo em seguida no pé do infeliz.
Todos ficaram com expressões de pânico. Ela apontou sua arma na direção de uma segunda pessoa e gritou: “Quem roubou o abacate do chefe!” Ninguém respondeu. Ela atirou logo em seguida. Kami não perdeu tempo e continuou atirando no máximo de empregados que conseguiu. É claro que ela não matou ninguém, mas acertou pontos-chave que causam muita dor.
— Para com essa loucura! — gritou uma mulher de cabelos negros, pele morena e corpo gordinho. Ela estava na fileira de homens e mulheres que aguardavam os tiros de Kami.
— Você aí, venha até mim — pediu Kami —, o resto pode voltar aos seus postos e, os que foram feridos, estão demitidos.
— Senhora, por favor, eu só disse aquilo porque estava com medo!
— Você roubou o abacate do chefão?
— Por que diabos eu iria roubar o abacate? Não posso comê-lo — disse a mulher trêmula.
— Você não pode comer? Por acaso é alérgica?— respondeu Kami.
— Eu… não roubei os abacates. Na verdade, sou encarregada de selecionar os melhores. Acontece que o chefão mandou eu provar os abacates, já que os últimos estavam danificados. Fiquei alérgica por alguns dias… passei minha função, sem o consentimento do chefe para Maria. Ela devia selecionar os abacates para mim e, em troca, eu ajudaria ela limpando os banheiros.
— Isso não explica o sumiço dos abacates.
— Eu também não sei, ela devia cuidar deles, não eu! — disse a mulher soluçando de medo.
— Você está liberada, não conte nada a Maria ou você será morta.
Malphas comia outro pedaço de abacate. Ele estava sozinho em sua mesa. Kami, de pé, observava em silêncio o seu novo chefe. “Eu não posso falhar, tenho que descobrir como matá-lo…” Kami sentiu alguém cheirando seu pescoço. O chefão não estava mais na mesa. Ele foi tão rápido que ela não conseguiu perceber o bastardo saindo do lugar.
— Você cheira bem — falou ele com uma voz baixa e rouca.
— Achei que seria sua empregada, não sua cortesã.
— Gosto do seu jeito — sorriu o chefão —, mas às vezes quando quero algo, eu consigo.
— Talvez outra hora — disse Kami, tentando chamar a atenção do chefão para outro assunto —, agora precisamos conversar sobre uma pequena rata chamada Maria.
— Quem diabos é essa Maria?
— O rato que vinha roubando seus abacates.
— Você é mais rápida do que eu pensava, parabéns — afirmou o chefão batendo palmas.
— Posso me sentar ao seu lado nas reuniões? — perguntou Kami.
— Ainda não.
— Como assim ainda não? Achei o rato, como você pediu!
— Lembra que eu disse gostar de fazer testes nas pessoas? — respondeu o chefão voltando à sua mesa.
— Teste?
— Tem uma coisa que odeio na humanidade é esse senso de bondade maldito que nos divide em duas classes. Os bons e os maus. O que define ser mal? Seria contrariar aquilo que as pessoas dizem ser o bem? Mas digo que se tirarmos a trave maldita de nossa mente, podemos ser Reis sobre essas pobres almas.
— Está dizendo que não acredita no bem e no mal? — indagou Kami.
— Pelo contrário, estou dizendo que esses dois conceitos existem e que podemos ignorá-los para satisfazer nossa vontade. Se quero algo, mesmo que seja mal aos olhos de alguém, ou até aos meus próprios, farei sem deixar a trave prender meus impulsos.
— Onde você está querendo chegar com tudo isso?
— Preciso saber se você divide a mesma crença que a minha.
— Eu… acredito.
— Precisa provar que acredita, por isso vamos visitar a casa dessa tal Maria. Você matará toda ninhada dela e depois se sentará ao meu lado.
— O quê? Me peça outra coisa — falou Kami, deixando as palavras escaparem de sua boca sem ao menos perceber o erro que cometeu.
O chefão deu um soco na mesa, partindo ela ao meio. Kami ficou paralisada. Seria aquele o seu fim? Ele pegou Kami pelo pescoço e a ergueu. Um sorriso maligno enfeitou o rosto de Malphas. As bochechas de Kami ficaram vermelhas. Sua vista estava escurecendo, enquanto seus pés já não se mexiam. Antes de receber o doce beijo da morte, o chefão a soltou.
— Você poderia ter perecido graças a essa trave que te prende — discursou o chefão como se fosse um profeta de uma nova ideologia. — Para sua mente, matar a ninhada de ratos parece ser algo ruim, mas, no fundo, você deseja fazer isso para conseguir algo maior. Derrube esse sentimento estúpido e me dê a mão. Vamos até a casa de Maria, seja lá onde ela mora, e tome seu lugar ao meu lado.
Kami encarou os olhos do seu inimigo. Ele sentiu que sua nova funcionária captou seu conceito sobre o bem e o mal. Ela se levantou. Suas pernas, ainda fracas, a fez cair. O chefão segurou os braços dela e lhe deu um abraço. Kami sentiu nojo, não do abraço daquele monstro, mas do que estava prestes a fazer.
— Você está certo, preciso destruir essa trave ou não vou conseguir o que quero — falou Kami com uma voz fraca.
— É isso que gosto de ouvir. Você verá a verdade das minhas palavras.
Malphas, pegando Kami pelos braços, voou rumo ao bairro de seu alvo. Paredes feitas de tijolos velhos e sujos revelavam a simplicidade daquela família. O bairro não era um dos melhores, rua com buracos, terrenos baldios e cachorros abandonados rasgando os sacos de lixo. Maria, morena com o corpo magro e os olhos cansados, ficou de joelhos diante do seu chefe. Kami encostou o cano de sua arma na nuca da mulher, provocando um pequeno ruído de agonia.
— Maria, meu pai uma vez disse que um rato, quando morto, ainda tinha uma família por aí só esperando o momento para roubar todo meu precioso queijo.
— Senhor, não roubei nada da sua casa…
— Cala sua boca — gritou Kami —, o chefe está falando.
— Obrigado, querida. Não adianta chorar, Kami descobriu que foi você a ladra que andou sumindo com meus abacates.
— Impossível! — disse Maria. — Sou a responsável pelos banheiros, não cuido da comida.
— Sua amiga contou toda verdade sobre sua troca de função — respondeu Kami.
— Aquela mentirosa, não acredito que ela fez isso! — falou Maria misturando lágrimas com suor.
— Maria, sabe outra coisa que meu pai dizia? — perguntou o chefão.
— Não faço a mínima ideia.
— Que um jeito legal de punir o rato era matando sua ninhada.
Kami abaixou sua arma. Maria implorou pela vida de seus filhos. Ela não deu ouvidos. Apenas deixou seus pés a guiar até aquela casa simples. O rosto de Malphas esboçou um sorriso enquanto o som dos tiros ecoavam pela rua. Kami saiu da casa com uma expressão neutra.
— Parabéns, você agora pertence a minha família, mas antes de partirmos, se livre desse pequeno inseto — disse ele cuspindo no rosto da pobre mulher.
Kami respirou fundo. As vozes em sua cabeça não paravam de julga-lá. Era como uma multidão gritando ao mesmo tempo. O som do disparo de sua arma fez as vozes ficarem em silêncio. Um vazio tomou seu espírito e o último censo de humanidade que um dia Kami teve, fora destruído.
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