Dezoito. Esse era o número composto pelas duas velas azuis espetadas no bolo de chocolate que seus colegas vulgares compraram para Sara em seu aniversário. Ela jamais teria imaginado que, ao final da última aula, seria guiada até uma doceria no pólo comercial de Helió. Normalmente, recebia deles um “parabéns” com abraço e nada mais — com exceção da Paola, que sempre lhe trazia um bolinho de copo em todo aniversário seu. Mas, dessa vez, além do bolo, haviam presentes também: livros, cada um com dedicatórias assinadas por seus… amigos?
Não. Colegas.
Apesar da convivência, Sara ainda mantinha sua identidade fidalga em segredo. Mesmo que a companhia daquelas três garotas e daqueles dois rapazes houvessem se tornado parte de sua rotina, tal relação era uma amizade limitada. Eram vulgares, afinal. Mas até que eram pessoas legais. Se ajudavam nos trabalhos em grupo da escola; compartilhavam gostos mais ou menos parecidos por músicas, filmes e livros; eram bons em jogar conversa fora; e às vezes brigavam entre si para se reconciliarem alguns dias depois, como qualquer grupo de adolescentes.
Sara também já tinha discutido feio com um deles, o Henrique. Motivo: o garoto se declarou e não soube lidar com o “somos apenas amigos”. Daí ele se comportou como um moleque ressentido por uma semana inteira, até cair na real e pedir desculpas pela infantilidade. Felizmente, a Fernanda estava a fim dele, e desde que os dois começaram a namorar, foi mais tranquilo para aquele desentendimento se transformar em águas passadas. Já em relação ao outro garoto, o Tiago, Sara sabia que não passaria pelo mesmo problema. Ele era gay.
Paola e Bianca, por outro lado, eram namoradas. Ver o carinho e a intimidade que compartilhavam, as mãos sempre entrelaçadas, os olhares apaixonados como se só existissem elas duas no mundo… deixavam Sara intrigada às vezes, até mais do que quando vira o Mostarda com o namorado na ilha. Pertencer a uma casta em que relacionamentos homoafetivos eram mal vistos — e criminalizados, se flagrados aos beijos em lugar público — fizera-a olhar torto para as duas meninas, o que Paola uma vez chegou a interpretar como ciúmes, algo que Sara precisou negar mais de uma vez. Mesmo que achasse estranho no início, aos poucos foi se acostumando. Aprendeu a olhar as duas lésbicas com naturalidade, como as pessoas da casta vulgar faziam. Ainda assim, havia algo inquietante em ver aquele namoro tão de perto, algo que fazia Sara questionar sua própria identidade. Com o tempo, temeu estar se tornando menos fidalga e mais vulgar.
E essa ideia a perturbava, pois não queria se sentir uma neriquiana de casta inferior. Bolo de aniversário e livros de presente não deixariam aqueles jovens mais próximos do que ela permitia. Eles não conheciam sua vida pessoal, já que Sara criava meias-verdades para ocultar sua linhagem fidalga e a existência da irmã gêmea. Não ocultava, porém, a sua perícia com o violino, pois era melhor dizer que gostaria de se tornar uma violinista do que uma aurana na frente deles.
Agora, aos dezoito anos, aquela amizade vulgar estava próxima de sua data de vencimento. Estudaria seus últimos meses naquela escola onde nunca desejou estar, e então partiria para a Academia. As vozes animadas de seus colegas cantando parabéns e batendo palmas, incitando quase todos naquela doceria a fazer o mesmo, não importava. Importava?
Ela observou a cena, sentindo-se estranhamente alheia àqueles (des)conhecidos.
*****
— Pa-ra-béns pras Bu-ar-que. Nes-ta da-ta azul. Mui-tas fe-li-ci-da-des. Mui-ta ma-gia na vi-da! — cantavam Sara, seu pai e sua irmã, reunidos ao redor da mesa de refeições e iluminados pela luz faiscante das velinhas “1” e “8” sobre o bolo coberto de glacê azul. — É aura, é aura, é aura, aura, aura. Ra-tim-bum!
Com o último bater de palmas, Sara encheu os pulmões de ar e a cabeça de pensamentos. De olhos fechados, soprou as velas no mesmo instante em que Alana fez o mesmo.
O cômodo mergulhou numa escuridão onde somente o lume colorido dos olhos era visível, principalmente os de Camilo, que resplandeciam como dois rubis. O aurano acendeu a luz do recinto, relevando seu sorriso sereno.
— Então… o que vocês pediram? — perguntou ele, retornando ao seu lugar na mesa, o olhar curioso sobre as filhas.
— É segredo — respondeu Alana com um sorrisinho.
— Aposto que foi um namorado novo — provocou Sara, considerando que a irmã estava solteira há mais tempo que de costume, já que trocava de namorado como quem troca de roupa. Não era mais possível contar nos dedos das mãos quantos garotos ela já havia beijado.
— E se for? Qual o problema? — devolveu Alana, erguendo uma sobrancelha desafiadora.
— Tipo, é uma ocasião especial. Você devia pedir algo mais… importante.
Alana suspirou. Parecia prestes a defender o seu direito de dar uns amassos, porém assumiu uma fisionomia taciturna.
— No ano passado, pedi que o Mostar voltasse a aparecer. E até hoje, nada. Nenhuma notícia dele.
O Mostarda… Sara se lembrava bem de sua fuga com o namorado, um vulgar chamado Felipe, rumo ao país de Liberfi. Na época, a mídia divulgou que o aurano estava em uma missão secreta, no além-Leviatã, e que não retornaria até que ela fosse finalizada. Mais de um ano havia se passado, e Alana, como tantas outras fãs, ainda aguardavam a aparição de Juan em frente às telas ou na página de uma revista. Os pôsteres dele ainda adornavam as paredes do quarto da irmã.
— Ele é um aurano, filha. Seja lá onde ele estiver agora, tenho certeza que está fazendo aquilo que precisa. — disse Camilo, lançando um olhar cúmplice para Sara antes de se voltar novamente para a outra filha. — Mas, diga, você pediu por alguém específico agora? Algum rapaz da vizinhança?
— Já disse que é segredo.
Camilo direcionou seus olhos para a outra pessoa na mesa.
— E quanto a você, Sara? Vai contar o que pediu ou também prefere manter segredo?
— Não é um segredo se vocês já sabem qual é — disse a garota.
A verdade era que, a partir dos sete anos de idade, seus desejos variaram apenas duas vezes. Começou com ela pedindo fios de cabelo azul como os da irmã; depois, na pré-adolescência, ao se conformar com o preto em seu cabelo, aspirou ser uma maga na Academia da Aura quando completasse dezoito anos.
— Não se preocupe. Foi a última vez que fez esse pedido — disse Alana, pousando uma mão gentil no braço de Sara. — Ano que vem, vai poder desejar outra coisa, pra variar, tipo um fidalgo gostoso num cavalo branco.
— Ah, fala sério, Alana.
Enquanto o bom-humor insuflava o sorriso das gêmeas, Camilo decidiu contar uma novidade.
— Durval Montenegro me ligou essa semana — disse ele, atraindo para si olhares imediatos de apreensão.
— O supremo? E o que ele disse? — Sara perguntou, empertigando-se na cadeira.
Seu pai havia se encarregado de entrar em contato com o diretor do Centro de Alistamento para pedir (implorar, se necessário) que Sara realizasse o exame de alistamento para a Academia, mesmo não cursando uma escola fidalga, pois, afinal de contas, era a linhagem que a qualificava a tal direito.
— Bem, ele disse que seu caso é um tanto extraordinário. E que, mesmo alguém na posição dele, não pode te incluir na listagem por conta própria. Por isso, a requisição será levada ao Conselho Aurano, e os supremos decidirão se aceitam ou não.
— E quando vamos saber a resposta? — Sara quis saber, com o coração aos pulos no peito.
— Não tão cedo — disse Camilo, com um suspiro. — Durval comentou que a decisão só deve sair uma ou duas semanas antes do alistamento. Teremos mais uns dois meses de espera,
Sara expeliu o ar com força, escorando-se no encosto da cadeira. Ainda não tinha o seu bilhete premiado para o CA, mas estava perto de obtê-lo. Bastaria suportar sua ansiedade pelos meses de Ametista e Esmeralda. Ela só queria uma oportunidade. Uma oportunidade para provar que era tão fidalga quanto os outros, tão fidalga quanto sua irmã.
— Você vai conseguir — disse Alana, com o sorriso que se esperaria de uma irmã e melhor amiga. — E aí, nós vamos estudar juntas de novo. Como era no Jardim.
Sara não tinha exatamente boas lembranças do Jardim de Infância, exceto pelo aconchego que Alana lhe proporcionava. Só por isso já valia a pena sorrir ao imaginar as duas com o uniforme acadêmico.
— Vamos cortar o bolo — disse Sara, pegando a espátula e oferecendo-a para que ela e Alana a segurassem juntas.
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