A voz da semideusa Rúbia se fez presente no quarto do hotel onde Sara e a irmã estavam hospedadas:
Você, fidalgo! Terá dezoito anos de idade até o final do ano? Então vá ao Centro de Alistamento de sua região, no dia 7.1 de Morganite, e faça sua inscrição para se tornar um mago. Não se esqueça de levar sua carteira de identidade, comprovante de residência, certificado de conclusão escolar e duas fotos 3x4. É sua obrigação, como escolhido dos deuses, representar o potencial máximo de nossa espécie. O seu futuro como aurano começa agora!
Sara sabia de cor e salteado o chamado para o alistamento acadêmico que estava sendo transmitido na TV, durante o intervalo de um filme. Eram as mesmas frases todo ano. Mudavam somente as imagens, começando com aspirantes a mago, em frente ao CA, seguidos por suas silhuetas vestidas em trajes acadêmicos enquanto caminhavam pela entrada do campus. O início do mês de Morganite sempre trazia consigo essa propaganda, um lembrete de que o fim do ano se aproximava.
Dessa vez, no entanto, aquelas palavras tinham um peso diferente. Sara as absorveu com uma expectativa de revirar o estômago. Finalmente, seus dezoito anos haviam chegado. Em teoria, como fidalga, deveria ser uma das escolhidas dos deuses para o exame de alistamento. Mas, na prática, ainda precisava conquistar esse direito.
Por isso estava naquele quarto de hotel, trajada com uma camisa social branca, calça jeans justa e sandálias de couro, enquanto esperava Alana terminar de se arrumar no banheiro para que, então, as duas pudessem descer até o saguão e encontrar o pai. Os três teriam uma reunião com Durval Montenegro, na sede do Ministério da Aura, para ouvirem a decisão do Conselho Aurano a respeito de seu alistamento. O supremo aurano negara informar a decisão por telefone, pedindo à família Buarque para se deslocar até a Central de Neriquia. De Lerofonte à capital do país, foi uma longa viagem de oito horas. Sara só podia pensar que Durval não seria tão insensível ao ponto de trazê-los tão longe apenas para lhes dizer um “não”. Por outro lado, o “sim” poderia exigir concessões políticas que a jovem talvez não estivesse preparada para fazer.
— Estou pronta — anunciou Alana, saindo do banheiro com um vestido de listras azuis e salto alto. — Podemos ir?
Sentada na cama, Sara assentiu com a cabeça, embora o desconforto em sua barriga não houvesse lhe deixado. As pernas pareciam moles, talvez incapazes de sustentar o peso do corpo.
— Será que vai dar certo? — disse ela, roçando levemente a palma das mãos sobre as coxas. — Vão me deixar fazer o exame? Vão me deixar entrar na Academia?
— Vamos descobrir — respondeu Alana, estendendo-lhe a mão e um sorriso.
Sara aceitou a gentileza e se pôs de pé, embora seus pensamentos ainda estivessem emaranhados em sentimentos conflitantes. A inveja pelos cabelos azuis da irmã, sempre presente como uma sombra, agora dividia espaço com o consolo de saber que Alana estaria ao seu lado, como sempre estivera.
*****
O frio na barriga retornou com força conforme o elevador subia os andares do imponente prédio do Ministério. Sara observava o ponteiro se deslocar lentamente pelas marcações dos andares enquanto esfregava as mãos suadas contra o jeans. Ao seu lado, Camilo e Alana se mantinham em silêncio, assim como os dois auranos que compartilhavam o espaço do elevador. Estes últimos lançavam um olhar indiscreto às duas irmãs, algo com o qual Sara já se acostumara e, portanto, preferia ignorar.
Quando as portas se abriram no décimo segundo andar, o trio foi recebido por um saguão de piso branco impecável, com paredes forradas com um tecido cinza que conferia ao ambiente uma frieza institucional. Eles se dirigiram à recepção, onde uma vulgar digitava agilmente em um computador.
— Temos uma reunião marcada com o supremo Montenegro — anunciou Camilo.
A recepcionista conferiu a informação na tela e, em seguida, indicou uma sala localizada no corredor à direita do saguão.
Alguns passos depois, o trio abriu uma porta preta e se deparou com um pequeno recinto que mais parecia uma sala de descanso do que um escritório formal. Sofás marrons confortáveis estavam dispostos em torno de uma mesinha de madeira polida. Uma grande janela aberta iluminava o ambiente, realçando os desenhos hexagonais em tinta preta nas paredes revestidas de papel creme. Apesar do verde das plantas que ornavam os recantos da sala, a cor mais destacável do ambiente vinha da camisa social amarela do homem sentado em um dos sofás. Durval tirou os olhos do livro que estava lendo, cujo título Sara pôde discernir quando ele o fechou — Suprema Neriquia —, e os direcionou aos visitantes.
— Por favor, sentem-se — disse ele, gesticulando com uma dureza que realçava a seriedade do momento.
Sara se acomodou em um sofá com Alana, enquanto o pai sentou-se sozinho em outro, de frente para Durval. A lembrança mais viva que Sara tinha do supremo aurano remontava à festa de quinze anos de sua irmã. Naquela ocasião, ele passara a impressão de ser um homem tranquilo e seguro, mas não exatamente simpático ou bem-humorado, uma marca que se manteve quando ele foi direto ao ponto.
— Bom, primeiramente, Camilo, sobre a sua requisição de abdicar da missão em Rolvenhain para permanecer em Neriquia no dia do alistamento… ela foi negada.
O rosto de Camilo se fechou, e Sara sentiu o peso daquela negativa cair sobre seus ombros. Sabia que a presença de uma testemunha — geralmente um dos pais ou algum outro familiar — era exigida para o exame. A família Buarque não estava ali somente por ela, mas também pela participação de Camilo como testemunha nos exames das filhas, uma vez que ele seria convocado para uma missão no além-Leviatã exatamente três dias antes da data do alistamento.
— Sinto muito, mas como deve ter lido no relatório que lhe foi entregue, sua magia de braço aurânico será bastante útil naquelas paragens — continuou o supremo. — Eu também sou pai, e entendo que queira estar presente. Mas embora o alistamento seja um evento marcante na vida de um fidalgo, só abrimos essa exceção para o dia do teste de graduação. Portanto, suas filhas terão que se conformar em não ter o pai como testemunha.
“Filhas”? A palavra ecoou no peito de Sara como um tambor. Seus olhos arregalados encararam o supremo aurano, mas a boca não conseguiu soltar a dúvida presa na ponta de sua língua. Felizmente, Alana estava ali para verbalizar essa pergunta.
— A Sara também vai fazer o exame?
Durval inclinou-se um pouco para frente e cruzou as mãos sobre os joelhos, olhando atentamente para a menina em questão.
— Bom, isso depende.
Camilo se remexeu na cadeira, e sua voz, grave, se fez ouvir.
— Depende do quê?
— Os testes de ressonância aurânica da Sara comprovam que a ausência de cor no cabelo dela não é meramente um problema estético. A guria, de fato, apresenta uma deficiência de aura. Em termos práticos, o corpo dela é como o de uma vulgar, mesmo que venha de uma família fidalga. E como todos nós sabemos, vulgares não têm a quantidade de aura suficiente para ativar o arauto.
Sara apertou as mãos sobre as pernas e respirou fundo. A tensão em seu corpo não a impediu de falar.
— Não tem como saber se eu não tentar
Durval ergueu levemente as sobrancelhas, a boca se mantendo numa linha reta.
— Falam em quantidade de aura — continuou Sara, com um leve tremor na voz —, mas é isso mesmo que faz aquela bola de cristal brilhar?
— É uma constatação científica, Sara. É assim que aquele artefato divino funciona — respondeu Durval, com firmeza, mas sem parecer arrogante.
— Será mesmo? — Sara desafiou, alvejando os olhos amarelos do supremo aurano. Era um momento de tudo ou nada, então não poderia demonstrar hesitação. — Eu sou uma anomalia dentro da comunidade fidalga. Vai saber se, tocando o arauto, eu também não provoque uma? Talvez… diferente dos outros fidalgos, o meu brilho vá ser muito pequeno, muito modesto ou mesmo muito breve. Mas desde que eu faça aquele globo emitir alguma luz, significa que merecerei estar na Academia, estou certa?
A visão futura do que acabara de dizer relaxou seu corpo, como se ali houvesse encontrado uma esperança sólida para suportar a tensão do presente.
— Hm, você não está errada — assentiu Durval. — Por isso, o Conselho Aurano decidiu não negar sua participação no exame. Em vez disso, eu e os outros supremos decidimos lhe oferecer uma… pré-avaliação, por assim dizer. Algo a ser feito aqui e agora.
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