Comia o meu cereal naquela manhã de quarta-feira, desanimada. Desacreditada. O que eu tinha feito para viver aquilo? Tinha certeza que não estava sonhando, mas, todo o meu passado me fazia acreditar que eu estava errada.
A porta abriu de repente. Por algum motivo segui o instinto de achar que era a única pessoa que podia me ajudar naquele momento:
— Pai? – Chamei, virando e desejando encontrar o homem que me criou. Sem sucesso. Me deparo com Vicent e Rossane, também não muito animados com o que estava acontecendo. – Por quê dou uma cópia da chave de casa para as pessoas? — perguntei mais para mim do que para eles.
— Katrin – disse Rossane, se aproximando de mim. – Como você está? Estamos realmente preocupados.
— Trouxemos sua mala – disse Vicent segurando minha mochila, já surrada, que eu havia abandonado no colégio no dia anterior.
— Obrigada.
— Meu bem, você não pode fazer isso consigo mesma – argumentou Rossane enquanto se aproximava de mim e me abraçava – olha eu sei o que você deve estar passando. Só que se você não se cuidar eu…
— Não! – respondi, a interrompendo. – Você não sabe,
Rossane. – Não aguentava mais. – Você não sabe o que é ver as
coisas e ninguém acreditar que você viu. Como é você mesma
não saber se aquilo aconteceu. Você não sabe como é real pra
mim! Você não sabe como dói ver e ouvir as coisas como eu.
Acordar todos os dias e ver a minha casa assim, arrumada,
normal, e ter que aceitar que nada do que eu vivi foi real!
— Katrin, por favor, não chora. – Suplicou minha melhor
amiga. – Estamos aqui para te ajudar. Isso vai passar – disse ela,
tentando me confortar em mais um abraço. Eu, por já estar
muito irritada, a empurrei e me levantei da cadeira:
— Cala essa boca. Vocês não entendem absolutamente
nada, não têm o direito de dizer que vai passar, se na verdade,
não vai. — Ela se irritou:
— Cala essa boca você! Desde que sua mãe morreu naquele acidente de avião e você jurou que ela foi morta por alguém anormal, estamos do seu lado! Nós te acompanhamos nas sessões psiquiátricas pra te ver melhor. Nós até compramos seus remédios com você quando seu pai estava fora! — A garota estava gritando um pouco mais alto. — Nós escutamos tudo que você viveu nos últimos dez anos. Quando os remédios afetavam sua memória, nós estávamos lá pra te lembrar do mais importante. – Rossane começou a chorar mais do que eu. Ela avançou em minha direção, talvez sem ter ideia do que iria fazer. Vicent correu e a segurou. – Você nem se esforça pra melhorar!
— Calma, você está fora de si – disse ele, jogando ela para o outro lado e nos separando. – Estamos aqui para ajudar, você lembra?
— Claro... – A garota estava claramente insatisfeita. — Nós
largamos tudo. — Começou ela, tentando se conter. — Saímos da
capital junto com você, mesmo bem pequenos, só pra ficar perto da melhor clínica do país e não deixar você sozinha e é assim
que você nos agradece?
Ela tratou de ir, enxugando as lágrimas, para outro
cômodo. Mesmo com raiva, ainda sentia-me profundamente
arrependida pelo o que tinha dito. Vicent começou a tentar me
acalmar:
— Olha, Rossane e eu não vamos para a escola hoje. Vamos ficar aqui e te fazer companhia. Você vai descansar e só. — Não respondi verbalmente, apenas ficou entendido que seria assim. Não vou mentir, não queria voltar àquela escolta tão cedo.
***
Estava no meu quarto. Não tinha falado mais com eles e logo seria o almoço. Aproveitei a manhã para mexer nas minhas bagunças e, por isso, estava um pouco mais calma. Tinha achado uma caixa de sapatos, no fundo do meu armário, com um monte de cadernos velhos dentro. Eu sempre escrevi muito. Várias coisas que me davam vergonha alheia, para ser sincera.
Os derramei sobre minha mesa e continuava lendo-os: nem tudo era ruim.
Estava satisfeita com minha leitura quase nostálgica.
Afinal, não lembrava de muita coisa da minha pré-adolescência por causa dos remédios que eu tomava por causa dos meus "probleminhas" .Até que então, ao me levantar da minha cadeira
pisei em um outro caderno que havia derrubado e não tinha
notado. O abri e me deparei com algo que devia ser realmente
velho. O caderno estava muito acabado, com páginas rasgadas e
sujas. Não lembrava de absolutamente nada dentro dele.
Tinham poucos rascunhos e uma longa história. Devia ser bem
antiga, porque a minha letra na época não era nem um pouco
bonita. Porém, a história me cativava um pouco por ser bem
diferente. Me joguei na cama e comecei a ler:
Lá estava ele: o menino de olhos bem escuros em cima
do telhado, descansando embaixo da luz da lua. Mais um dia
de trabalho chegava ao fim.
Parecia realmente entediante. Muita enrolação. O que eu tinha na cabeça? Resolvi, então, pular dois ou três parágrafos.
— Eu tenho uma doença incurável. Não devo viver mais
do que um ano — dizia Sarah Madeline. O menino,
incomodado, resolveu contar uma história. Nessa história um
mundo mágico existia. Nele, coisas impossíveis de se
imaginar existiam. Nesse mundo, a doença de Sarah poderia
ser curada.
Comecei a me interessar um pouco, mas, não era nada
especial. Fui pulando aos poucos e procurando alguns detalhes.
No fim só queria entender a história, e como ela nunca iria virar
um filme, não tinha jeito a não ser ler:
Sabe, às vezes eu sinto que minha vida não é real, sabia?
Como se estivesse em um pesadelo.
— Mas Sarah, você sabe ao menos definir o que é a realidade?
— Como?
— Exatamente. O que faz um sonho não ser real se, em
algum nível, ele ainda existe? Somos muito pretensiosos em
achar que só o que é real para nós é real.
— O que é real para nós? Não entendo onde quer chegar
com tudo isso.
— Se você olhar pras pessoas verá que só é real o que faz
parte da realidade delas. Seus sonhos não são reais. Mas e se
formos fruto da imaginação de alguém? Não somos irreais
por causa disso.
— Bem, eu acho que não…
— Está me vendo bem aqui? Porque eu estou lhe vendo
Sarah. Se nós podemos pensar e tentar apontar o que é real ou
não é real, o que vivemos é definitivamente real. Porque tudo
que pensa vive em uma realidade. Só é falso o mundo onde
ninguém para pra pensar se está vivendo uma realidade.
— Você fala coisas muito confusas às vezes, sabia?
Resumindo, somos reais e tudo isso que tenho passado
infelizmente é real.
— Não se você não quiser. Enquanto você estiver aí se
perguntando se o mundo que vive é real, ele será real. Mas se
alguém viver no meu mundo mágico, ele será tão real quanto
seus melhores e piores dias.
O menino se levantou e subiu na beirada do telhado. Com a lua de fundo estendeu sua mão na direção da menina doente e lhe fez uma pergunta.
— Sarah Madeline, você quer morrer na sua realidade e
renascer na minha?
Aquela história falava comigo. Não tenho dúvidas de que
sempre escrevi sobre o que sentia. Avancei para os últimos
parágrafos até a última frase, que estava meio rabiscada, o que
me chamou a atenção e, em seguida, me assustou: Sarah
Madeline morreu em todas as realidades.
Rapidamente joguei o caderno no chão e corri dali, talvez
emotiva. Fui para fora do meu quarto um pouco zonza até
terminar nos braços de Vicent, que se assustou.
Não disse nada com palavras, apenas aproveitei um pouco de sossego em seus abraços acolhedores. De repente, Rossane apareceu apenas observando a situação. Logo ela notou que eu estava assustada. Não trocamos uma única palavra. A garota me encarou por mais alguns segundos, como se tentasse ler meus pensamentos, até entrar no meu quarto para procurar o que me assombrava tanto.
Três minutos de um terrível silêncio que chegava a ser, surpreendentemente, ensurdecedor. Rossane saiu do meu quarto irritada com algumas caixas de remédios na mão. Ela não esperou um único minuto para estourar:
— É por isso que você está tão mal? Interrompeu o
tratamento, Katrin? Você está fora de controle.
— Eu não posso esquecer. – Comecei a chorar de novo
mas, naquele ponto, já não ligava mais. – Esses remédios vão me
fazer esquecer tudo. Eu não quero mais tomar eles. Nunca mais!
— Só senti o olhar de desaprovação da minha, até então, melhor
amiga. Empurrei Vicent do caminho e desci as escadas. Os dois
vinham atrás de mim quando me deparei com Shame entrando
pela porta.
— Katrin, eu…
— Agora não, Shame! – Cortei-lhe o possível pedido de
desculpas enquanto dava meia volta. Driblava meus amigos e
começava a subir em direção ao meu quarto novamente. – Agora
não.
Não adiantou.
Quando me dei conta, os três estavam atrás de mim
querendo conversar. Ninguém estava nem aí pro meu espaço.
Fechei a porta do quarto com a esperança de que respeitassem
esse limite. Enquanto corria pra juntar os meus cadernos
vergonhosos, estressada, procurava o que havia me dado um
susto há poucos minutos. Nem meu pânico parecia ser
respeitado, era inacreditável.
Shame, então, entrou:
— Katrin, escuta. Eu te amo. Estou aqui por você – disse
ele, provavelmente pensando que este deveria ser o momento
mais mágico da minha vida. Porém, tudo parecia artificial demais. Será que tudo, esse tempo todo, era apenas por dó?, me
perguntei enquanto ele caminhava em minha direção. – Esqueça
o resto. A partir de agora somos só nós dois.
— Ah, tá bom Shame! – disse Rossane, seguindo-o e
reclamando. – Pode parar com essa novelinha, que já deu. Não tá
vendo que o momento não é bom?
— Rossane, não me interrompa. Vocês já foram horríveis
demais com ela, pelo jeito.
— Não diga quem foi mau ou bom – Repreendeu Vicent. –
O que você sabe?
Os três começaram a discutir como se eu não estivesse ali. Não liguei. Minha cabeça estava despedaçada demais para ligar. Só tive vontade de ir pra minha sacada e pular, mesmo que a queda não fosse me matar, só buscando um horizonte menos terrível do que o caos instaurado no meu quarto. Me virei de costas para a sacada e instantaneamente fui surpreendida por uma voz familiar:
— Está procurando por isso? – Indagou a criatura de olhos que brilhavam em tom escarlate, de pé sob a beira da sacada. Ele segurava uma folha de caderno rasgada. Bati os olhos no fim da página e pude reconhecer aquela frase terrível rabiscada. Sabia muito bem que folha era aquela. – Você escreve coisas tenebrosas, sabia? — O quarto se aquietou imediatamente. — Você duvida do que é real ou não? – questionou ele, novamente, enquanto amassava aquele papel e o jogava em mim. Permaneci em silêncio. — Katrin Date… — Sorriu ele, enquanto me estendia uma das mãos. Eu, ainda confusa com tudo o que estava acontecendo, peguei a bolinha de papel e senti aquela folha em minhas mãos como se fosse uma experiência mágica. — Você quer morrer na sua realidade e renascer na minha?
Me virei, sem reação ao que estava acontecendo, para meus amigos. Eu sabia o que precisava ser feito. — Vicent. – Ele me olhou no fundo dos olhos. – Pega!
Joguei a bola de papel em sua direção. Ela bateu em sua cara e então, de rebote, Vicent a pegou. Ele começou a olhar para ela na palma de sua mão sem ter muitas palavras. Comecei, então, a dar passos incertos na direção da janela.
— O que você vai fazer? – indagou Rossane, totalmente chocada.
— Vocês sempre viram e ouviram tudo... – Os três não falaram nada. Apenas tentavam se aproximar de mim enquanto eu me afastava deles, andando em direção a sacada, como se eu fosse simplesmente pular. – A minha vida é tão real quanto as minhas histórias, não é? — Todos ficaram em silêncio por dois longos segundos.
Comecei a correr na direção dos braços da criatura de olhos vermelhos desejando algo novo ou, até mesmo, a morte. Senti os três preocupados correndo atrás de mim, tentando evitar o pior. Não liguei. Segurei aquela mão que era, definitivamente, quente. Ele me puxou com certa agressividade para perto dele. Quando me dei conta estava grudada nele. Um pouco envergonhada e surpresa. Ele era tão real quanto qualquer ser vivo que já encostou em mim.
Um salto: foi o que ele deu, explodindo minha humilde sacada em pedaços e nos fazendo voar dezenas de metros em grande velocidade, até pousarmos graciosamente no meio de uma rua enquanto vislumbrava a fumaça e a poeira abraçarem minha casa. Mesmo que minha cabeça pensasse em um milhão de coisas, só pude dizer uma: “Você é mesmo um bruxo?”.
Enquanto ele corria na direção do horizonte sem olhar
para trás. Enquanto via nossos corpos misteriosamente
desaparecerem aos poucos ele respondeu: “Não sou um bruxo,
sou um assassino”. E a partir dali tudo mudou. Meu destino
tinha sido redesenhado naquele dia. E agora só podia perguntarme: “Para onde ele estava me levando agora?”.
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