As crianças não costumam jogar à noite, por isso Thadeu escolheu o campo de futebol para ensinar sua nova aprendiz. Ele andou pensando se era uma boa ideia confiar na filha de Malphas. Angélica não tinha uma resposta agradável, para ela, o melhor seria matar a infeliz. Além disso, ele nem cogitou contar a verdade para Kami. Imagine o que ela faria com Melina? Ele teve calafrios só de pensar! Para sua sorte, quando ele estava deitado naquele lixo que Angélica chamava de cama, Isniffi surgiu por meio de sua magia de comunicação. Thadeu levou um susto. Não é sempre que uma entidade vermelha aparece na sua frente como um fantasma da força!
— Comeu os doces que pedi? — indagou Isniffi.
— É claro que não! Você quer que eu morra de diabete?
— Que lástima, você não conseguiu completar o dever de casa, como que vai se tornar um super-herói?
— Tá louco? Não quero me tornar um super, na verdade, não pedi sua ajuda e nem quero ver seu rosto bizarro de menina, chega de encher minha paciência! — gritou Thadeu.
— Desculpe… — o pequeno, segurando o choro, começou a encará-lo com seu olhar meigo e inocente —, meu rosto é feio… não consigo mudar, já tentei… às vezes, me sinto um monstro…
Thadeu, em outros dias, teria mandado aquela coisa se mandar, mas seu coração se apertou. Isniffi, mesmo magoado, ficou de costa em vez de desaparecer. Thadeu sentou ao lado do pequeno e, com uma expressão de culpa, pediu desculpas. O pequeno sorriu e o abraçou, mesmo sabendo que não poderia sentir o seu amigo, uma vez que estava na forma fantasma.
— Não precisava pedir desculpas, Isniffi está acostumado a ser chamado de monstro.
— Não acho que você tenha se acostumado. Seus olhos escondem um sofrimento… — disse Thadeu.
— Antigamente, Isniffi era duas pessoas… não consigo me lembrar de nenhuma das duas. Quando a bruxa Yumiko fundiu essas duas pessoas, nasceu o Isniffi! Não sou natural, como você ou Emika, sou produto de um experimento. Às vezes, quando penso que fui uma pessoa normal, meu coraçãozinho pesa, começo a me julgar e sinto vontade de sumir. É tão ruim…
— O que você faz para esse sofrimento desaparecer?
— Apenas aceito quem sou, não posso voltar para trás e mudar as coisas, apenas seguir o fluxo da vida até que um dia encontre meu destino.
— Me diz, você tem mil anos, correto? — indagou Thadeu.
— Sim, mais ou menos isso! Se for contar os anos que Isniffi era duas pessoas, talvez conte mais.
— Quem eram essas duas pessoas que você tanto diz?
— A primeira se chamava Isniffi, ele era um bárbaro semideus e tinha Emika como sua mãe e aliada; me identifico como ele, tenho seu poder e corpo, além disso, sinto que Emika é minha mãe e amo ela desde o dia em que fui criado pela bruxa.
— Já ouvi as histórias sobre esse bárbaro, macho e pegador de rainhas casadas e princesas virgens. Teu histórico é bem extenso, meu amigo — zombou Thadeu.
— A segunda pessoa se chamava Ayaka Puper Puper. Ela era bem jovem, além de ser aprendiz de bardo e muito fofinha! Isniffi tem sua aparência e personalidade, acho que herdei a mente dela, mas sem nenhuma memória.
— Bizarro, por isso você se parece com uma menina — afirmou Thadeu —, mas mesmo assim você prefere ser o Isniffi! Confuso, admito, mas compreendo que esse experimento da bruxa não foi nada benéfico para essas duas pessoas.
— Concordo, Isniffi nem sabe se elas estão vivas, ou se vivem em mim… Isso é tão ruim! É um vazio que me deixa muito triste.
— Posso te ensinar algo?
— Isniffi é o seu professor, mas pode falar!
— Nada é permanente, exceto a mudança. Você não deve se preocupar se eles estão vivos ou com sua aparência, isso está fora do seu controle, apenas se concentre no seu presente, deixe o passado no museu — falou Thadeu com uma expressão séria.
Aquelas palavras foram o suficiente para ele parar de dar ouvidos aos pensamentos contrários a Melina. Ele tinha que dar uma oportunidade para ela. Isniffi o encarou com um sorriso e lhe deu mais uma instrução: escutar músicas fofas antes de dormir. O que diabos isso tinha a ver com se tornar um super-herói não foi respondido. Thadeu apenas concordou com o pequeno e voltou a dormir. No outro dia, durante a madrugada, ele se encontrou com Melina no campo de futebol. Ela vestia roupas de frio. Thadeu, sem camisa, impressionou sua aprendiz.
— Cara, você tá mais machucado que mulher de malandro! — zombou Melina enquanto encarava as cicatrizes no corpo dele.
— Mulher de malandro? — indagou Thadeu com um olhar sério.
— Não acha melhor a gente ir para a parte que você me treina?
— Isso daqui não é um treino… Na verdade, preciso que você desperte seu poder. Primeiro, você precisa saber quem eu sou. Meu nome é Thadeu Orestes, não devia estar dizendo esse nome para você, a filha do meu inimigo, mas um sentimento estranho vem confundindo minha cabeça.
— Que sentimento?
— Não faço ideia, desde o dia que encontrei aquele gato, venho abrindo minha mente. Acredito que tem um pouco de verdade nas palavras que ele disse sobre misericórdia. Nosso inimigo não tem misericórdia, essa palavra pode até soar como ofensa para ele.
— Você admite que já pensou em me matar, ou nunca teria esse sentimento de misericórdia, se é que pode ser chamado de sentimento!
— Não sei nada sobre Misericórdia e, até agora, não a usei e nem cogito usar, mas com você é diferente, eu sinto que devo… não sei. Se você quiser confiar em mim, escutará tudo o que tenho a dizer e irá praticar as loucuras que encontrei no livro da ordem da serpente sobre poderes mágicos e coisas do tipo.
— Se eu recusar sua ajuda? Posso recusar sua proposta e correr aos braços do meu pai revelando sua identidade. Você me mataria como fez com anacrônica?
— Não tenho motivos para matar você, pode partir se quiser, conte a verdade ao seu pai. De qualquer maneira, eu estou confiando minha vida nas suas mãos, se você me trair, o erro não é seu, mais meu em dar ouvidos a um gato falante que cheira a morango.
— Está bem, vamos logo com isso, a noite tá acabando e eu quero dormir ainda com a lua no céu!
Thadeu sorriu. Ele pegou um livreto de seu bolso. Feito de couro de cobra, com páginas amareladas, aquilo era um manual da ordem da serpente feito para despertar forças ocultas em seus membros que tinham antepassados anormais. Baseado nos quatro elementos da natureza, o manual tinha a missão de despertar esses poderes, caso o indivíduo não demonstrasse nada de espetacular, ele pereceria. Não tinha escapatória, ou você sobrevive com poderes, ou falece sem nenhum.
O capítulo do fogo foi iniciado naquela segunda. Thadeu, usando um encanto, fez com que o campo ficasse em chamas. O fogo ficou contido naquele espaço e não podia ser visto por ninguém, a não ser o conjurador e quem ele queria que enxergasse. “Como um vaso de barro, você precisa passar pelo fogo para ficar forte. Não se preocupe, as chamas são falsas, elas causarão dor, mas não irão queimar seu corpo.” afirmou Thadeu com um olhar de preocupação. Melina entrou nas chamas com um pouco de receio, mas sua coragem falou mais alto. Como Thadeu disse, a dor era insuportável. Sua pele ardia, mas não queimava, era como se estivesse sendo cozinhada por um troll, mas sem estar numa panela! Ela não aguentou e gritou, obedecendo sua voz, o fogo desapareceu. Thadeu sorriu. Ela passou no primeiro teste, a resistência. “Eu menti para você, esse fogo era de verdade… você poderia ter morrido só de tocar nessas chamas. No manual existem quatro elementos, esse primeiro teste desperta a resistência. Existem milhares de testes de fogo, o instrutor deve escolher o que mais se adequa ao seu aprendiz, no seu caso, quis o mais extremo, já que acredito que você é herdeira da força do seu pai.
Na noite de terça-feira, Thadeu convidou Melina a encontrá-lo num prédio alto. Ela não recusou o convite. Ele a esperava com duas bebidas e um bolo que havia ganhado de Angélica, por algum milagre, esse não estava vencido. Depois que comeram, Thadeu mostrou o segundo capítulo do manual. O teste do ar consiste em provar se seu aprendiz tem a habilidade de voar como um pássaro. “Esse é muito perigoso, você pode se machucar se der errado.” disse Thadeu logo após mostrar o que aconteceria se ela fracassasse. Melina concordou em se jogar do prédio sem paraquedas. Thadeu a confortou. Ele tinha um plano B para salvá-la da queda. Melina se posicionou e, após um grito de Thadeu, se jogou do prédio. Ela não conseguiu voar. O som dos seus gritos chegaram aos ouvidos de Thadeu que, em resposta, se jogou do prédio e a pegou nos braços, acionando o paraquedas em seguida.
— Pelo visto, você não sabe voar — zombou Thadeu.
— Depois dessa, eu nunca mais vou subir num prédio!
— Amanhã é o teste da água, melhor se preparar, não quero morrer afogado!
Como previsto, Melina fracassou no teste da água. Foi graças à habilidade de Thadeu que eles conseguiram sair vivos daquele rio sujo. O único que ela passou foi o do fogo, isso não era o suficiente para enfrentar Malphas. Ela precisava de força ou seria derrubada pelas mãos de seu próprio pai. O Teste da Pedra, como era chamado, foi criado para despertar a força do indivíduo. Thadeu havia aliviado para Melina nos últimos testes, mas nesse ele não poderia fazer isso. Era crucial que ela passasse por ele. Eles foram até uma mata, onde Thadeu pediu para ela entrar numa caverna e alcançar o final dela com vida. Melina achou fácil, ainda mais que ganhou equipamentos para tal feito. Sem muitas dificuldades, ela chegou ao seu destino. Para sua surpresa, um bilhete flutuante a aguardava. Nele estava escrito: “Aqui começa seu verdadeiro teste, boa sorte, se você fracassar, receio que vou lamentar minha vida inteira.” Um som de explosão a assustou. Ela sentiu que o chão começou a tremer. Em resposta, às paredes desmoronaram, rochas caíram do teto e o desespero tomou o seu coração.
Sem dar ouvidos a sua mente, Melina correu rumo a saída enquanto o teto desabava. Pedras caíram em seu caminho, mas ela conseguiu se desviar. Seu coração acelerou. Um som mais forte chamou sua atenção. Metade do teto despencou em cima dela. Mesmo usando sua força, a pedra não se movia. Diferente dos outros testes, Thadeu não estava ali para ajudá-la, ela teria que sair dessa encrenca sozinha. Para piorar, mais rochas despencavam, aumentando mais ainda o seu desespero. Uma voz doce chamou pelo seu nome. Era sua mãe, não como ela lembrava, mas uma jovem cheia de sonhos. Ela olhou para Melina e esticou sua mão com um sorriso. Melina desprendeu seu braço e tentou alcançar os dedos da sua mãe, mas cada esforço a deixava mais apertada, causando uma dor insuportável. “Por que você não contou a verdade sobre meu pai?” indagou Melina. A sua mãe sorriu e sentou ao seu lado. Ela passou sua mão na cabeça de Melina e a beijou. A resposta de sua mãe não precisou vir em palavras. O amor materno foi o motivo que a manteve viva, ou ela já teria desistido. “Mãe, eu prometo que vou fazer ele pagar pelo que fez com você… juro diante da deusa Sýnpam!”
Melina sentiu o amor de sua mãe e, como resposta, a força de seu pai despertou. Ela ergueu a rocha. Seus braços doíam e suas costas parecia que iria trincar, mesmo assim, a rocha foi erguida por suas mãos. Melina correu mais rápido que pode. Sua mãe continuou sentada em meio aos destroços da caverna. Ela sorriu para sua filha, como se sua missão estivesse comprida. Melina quebrou algumas paredes e conseguiu alcançar a saída. Thadeu aguardava por ela com um olhar preocupado. Ao ver sua aprendiz sair com vida da armadilha que ele mesmo fez, um sentimento de alívio o tomou. Melina ficou com vontade de espremer a cabeça daquele infeliz, mas o sorriso dele e o orgulho que ele sentia era tão verdadeiro que ela apenas o abraçou.
— Me desculpe, segui o que estava no livro… — disse Thadeu.
— Que se dane o seu livro, você conseguiu, sou forte! — comemorou Melina.
— Não o suficiente, você vai precisar treinar antes de enfrentar o seu pai, mas já é o começo.
— Treinar? Nem ferrando! Ficarei, no mínimo, 1 ano sem me esforçar. Cara, você quase me matou!
— Você está toda suja, tem um lago aqui perto, vamos tomar um banho e depois está livre para voltar para casa.
Thadeu foi o primeiro a entrar no lago, seguido de Melina. Ela tirou a camisa e a calça, mas continuou com as roupas de baixo. O coração dele bateu mais forte do que o comum. Melina sentiu o olhar de Thadeu e não perdeu tempo. Ela puxou ele para seus braços e o beijou. Os pensamentos conflitantes de Thadeu cessaram e ele se entregou à paixão.
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