2 de Abril, Dia 5 da Gincana
Estava começando mais um dia de competição da gincana. Mas, nesse dia, a competição seria silenciosa.
Uma das salas de aula foi organizada para receber a competição de xadrez. As carteiras foram empilhadas, e apenas o necessário para comportar até três jogos simultâneos foi montado.
Miyu e Adonis estavam cara a cara, prontos para começar seu confronto estratégico e intelectual.
A professora Mira estava responsável pela sala e informou as regras:
— As regras são simples: perde aquele que zerar o ponteiro ou ganha aquele que der o xeque-mate no outro. Durante todas as partidas de xadrez, o silêncio deve ser mantido.
Como esperado, o silêncio se mantinha na sala. Todos os competidores jogavam concentrados. A partida entre Miyu e Adonis estava equilibrada.
— Você joga bem. — disse Adonis, quebrando o silêncio.
— Hm!? Você tá levando esse jogo a sério? — perguntou Miyu.
— Eu sim, mas você parece tensa, né!? Tá até me olhando esquisito. — provocou Adonis.
— Do que você tá falando, hein!? Eu tô normal. — Miyu respondeu incomodada.
— E esses boatos, você não parece tão incomodada com eles. Tá gostando, é? — Adonis perguntou irritado.
— Que? Claro que não. Mas não adianta nada dar ouvidos. Uma hora isso para. — Miyu respondeu.
Adonis ficou em silêncio. Era a vez de Miyu jogar. Ela percebeu a falha que Adonis deixou no jogo e utilizou seu cavalo para derrubar a rainha dele.
— QUE!?? A MINHA RAINHA! NÃO VALE! — exclamou Adonis, que acabou se irritando com a jogada.
— VOCÊ QUE SE DISTRAIU! — respondeu Miyu aumentando o tom de voz.
— Silêncio durante os jogos. — pediu a professora Mira.
Incomodado, Adonis rangeu os dentes e se levantou, apoiando as mãos na mesa, empurrando a cadeira para trás. Miyu se assustou, sentiu-se tensa com a atitude dele, não demonstrou muita reação, mas seu coração disparou.
— VOCÊ SE ACHA BEM ESPERTINHA, NÉ!? PODE SE PREPARAR, NÓS VAMOS TIRAR ISSO A LIMPO NAS PERGUNTAS E RESPOSTAS. — disse Adonis, apontando um dedo para Miyu, chamando ela para o desafio.
"Que... criança...", pensou Miyu vendo a situação.
Pátio da escola
Naquela mesma manhã, os competidores da categoria artística haviam finalmente terminado a pintura dos painéis.
O time dos Oceânicos havia desenhado um oceano e um sol. O time das Geleiras havia feito montanhas congeladas. Já Yukino, no time dos Bombeiros, havia feito um bombeiro com uma mangueira apagando um incêndio.
A diferença de nível entre as obras era visível. Vários alunos foram ver e alguns ficaram parados comentando sobre as pinturas.
— Cara... — comentou o primeiro.
— O povo terminou os painéis. — comentou o segundo.
— Cara... olha o do primeiro ano. — comentou o terceiro.
— Cara... — comentou de novo o primeiro, boquiaberto.
— Isso não é justo, eles chamaram alguém que sabe desenhar... — comentou o segundo.
— Vamos pedir para anular a prova. — concluiu o terceiro.
"Todo ano é esse mesmo discurso." pensou Yukino, que estava discretamente no local ouvindo os comentários.
7 anos atrás
Yukino, desde cedo, criou gosto pelo desenho. Enquanto a maioria das meninas queria brincar de boneca, ela ia para o lápis e papel. Ela era considerada diferente e era difícil para os seus colegas compreendê-la.
Quando ela tinha sete anos de idade, participou de uma exposição com desenhos infantis de vários colégios. Apenas os melhores haviam sido escolhidos e o dela estava lá.
Muitos pais e curiosos olhavam os cartazes e comentavam. Ao olharem o desenho de Yukino, a maioria fazia os mesmos comentários, o que chamou a atenção dela, que ainda era uma criança.
— Esses pais não têm vergonha? Fazendo os desenhos da exposição da criança? — disse um homem.
— Depois a criança cresce achando que todo mundo vai fazer as coisas pra ela. — disse outro homem
"Hum? Mas aquele desenho ali é o meu.", pensou a pequena Yukino.
— Mãe, tão achando que não fui eu que fiz o meu desenho. Posso ir lá e dizer que fui eu sim? — disse para sua mãe.
— Acontece, filha. O que importa é tu sabe que foi tu que fez. — respondeu a mãe.
Aos oito anos de idade, na segunda série, outro evento marcou sua vivência. Durante o intervalo, quando ela já havia saído de sua sala, quando um grupo de quatro meninas começou a comentar sobre Yukino.
— Ela é esquisita, né!? — disse a primeira.
— Só fica ali quieta, deve ser CDF. — disse a segunda.
— Ela saiu, vamos ali na mesa dela ver o que tem? — propôs a terceira.
Elas se dirigiram até a mesa de Yukino e começaram a mexer nas coisas dela que estavam em cima.
— Ela fica desenhando? — se espantou a primeira.
— É bonitinho, mas ficar desenhando é coisa de criança. — debochou a segunda.
— A gente não é criança? — indagou a terceira.
— Ai, tu entendeu, né! Do infantil, de 5 anos. — respondeu de volta a segunda.
— É tipo aqueles desenhos que passa na TV, né? Minha mãe disse que são violentos e do demônio. — a quarta comentou enquanto pegava o desenho nas mãos para analisar.
— Deixa eu ver, deixa! — pediu a segunda.
— Aiai, não puxa! — reclamou a quarta menina.
As duas ficaram puxando a folha, uma para um lado, outra para o outro. Com isso, um rasgo surgiu e partiu o desenho em dois. Elas se entreolharam, suando frio.
— E agora? O que a gente faz? — perguntou a primeira.
— Ah, deixa aí, daí ela também aprende que não é pra desenhar na aula. — comentou a quarta.
As quatro saíram da sala e foram lanchar normalmente. O sinal do fim do recreio ressoou e todos voltaram para a sala de aula.
Ao chegar na sala de aula, Yukino se deparou com seu trabalho rasgado, partido ao meio. Seu olhar atônito, incrédulo, encarando suas mãos que seguravam as duas partes de seu desenho, sem saber o que fazer.
Ao fundo, a quarta garota do grupo viu a cena, e, com um sorriso debochado, começou a conversar com Yukino:
— Ixi, Yukino, rasgaram teu papel? Mas não é bom fazer essas coisas aí, ninguém vai ser teu amigo.
Apesar da pouca idade, a desenhista já sabia diferenciar um tom de voz de deboche. Ela se virou para a garota e perguntou, brava:
— Foi tu, né?
— Tu tá me acusando? Eu to sendo tua amiga e avisando. — reclamou a quarta garota, encarando a menina.
Nisso, toda a sala, que até então se encontrava alheia à situação, agora prestava atenção. Muitos ficaram em silêncio. Mas alguns começaram a tecer comentários sobre a atitude de Yukino.
— A esquisita tá ameaçando ela. — disse um aluno.
— Eu sabia que ela não era flor que se cheire. — disse o outro.
— Devem ter rasgado por que ela fez mal pra alguém. — outro começou a gerar rumor.
— Nossa, ela é tão quieta, não imaginava isso. — comentou outro aluno.
A professora chegou, silenciando a sala. Mas Yukino percebeu que seus dias seriam diferentes a partir dalí.
Depois daquele dia as coisas só pioraram. Nada do que estava acontecendo tinha um sentido lógico. As pessoas encontravam qualquer motivo para criar implicância, e o fato de ter gostos diferentes do que era considerado "comum" parecia ser um tempero a mais para a crítica dos colegas.
Alguns alunos começaram a aproveitar as oportunidades. Quando Yukino estava distraída para puxar o cabelo dela ou praticar alguma agressão física que ela não conseguisse perceber de onde estivesse vindo.
Os materiais que ela levava, e que eram próprios para desenhos, começaram a aparecer quebrados. Ela precisou tomar a providência de sempre levar seu penal consigo.
E, como se aquilo não fosse o suficiente, boatos sobre ela começaram a se espalhar pela escola. Eles eram os mais absurdos possíveis, coisas que ela não gostava nem de lembrar que ouviu.
Não adiantava falar com os professores. Eles teciam comentários do tipo:
"Ah, é brincadeira"
"É só não dar bola;"
"São crianças, não sabem o que tão fazendo."
Yukino também era uma criança, mas mesmo assim, sabia que era errado fazer aquilo. No entanto, por causa dos professores não darem ouvidos, ela tinha medo de contar para a mãe dela, pois algo dizia que era ela quem estava errada.
Ela chorava, mas não era de tristeza, dentro dela, a raiva aumentava e o sangue fervia tanto que se escapava em forma de lágrimas. A indignação com a própria impotência diante de tudo o que estava acontecendo fazia com que ela se sentisse mal.
Aos poucos, o grupo de meninas, que rasgou os desenhos naquele dia, começou a espalhar boatos. Ela nunca descobriu do que falavam, ninguém contava pra ela, as pessoas apenas se afastavam.
Então ela começou a se sentir sozinha. Até que um dia, pensamentos sobre atentar contra a própria vida começaram a percorrer sua mente. Foi quando ela percebeu que tudo estava indo longe demais.
— Tá... agora já foi demais. Eu tô realmente deixando situações ridículas controlarem a minha vida. Se eu fizesse qualquer coisa contra mim mesma, minha família que ia sofrer. E nada garante que as pessoas que me fizeram mal iam se dar conta. Ninguém vai viver minha vida, ninguém vai fazer meus desenhos. — disse a pequena Yukino para si mesma.
Apesar da pouca idade, a capacidade de reflexão e de cruzar informações era bem desenvolvida em Yukino. Com isso, ela conseguia ver as coisas sob um plano geral e ver as consequências de muitas escolhas.
— É isso, não tem nada de "deixa pra lá". Vou dar jeito nisso. A mãe odeia confusão, mas sinto muito... — Yukino começou a dar coragem a si mesma.
Ela estava decidida a encontrar maneiras de contornar seus problemas. Como faria, ainda não tinha certeza, mas sabia que precisava ter a iniciativa.
— Que droga... Só quero ver aplicar na escola amanhã. — lembrou a si mesma.
Apesar de toda a coragem, ela ainda era uma criança testando novas maneiras de viver. Se até um adulto ficava apreensivo em mudar suas atitudes, uma criança ia sentir também suas dificuldades.
No outro dia a tarde começou sem grandes novidades. Os alunos faziam fila para entrar na sala de aula, cada turma com o seu professor. E na fila da segunda série, uma gritaria estava acontecendo entre duas estudantes.
— PROFESSORA, A YUKINO PUXOU MEU CABELO! — gritou a aluna de cabelos amarrados.
— NÃO PUXEI, NÃO! EU NEM CHEGUEI PERTO DE TI HOJE. — respondeu Yukino.
— PUXOU SIM! — rebateu a aluna.
— NÃO PUXEI, JÁ FALEI! — continuou afirmando.
Como aquilo não teria fim, a professora decidiu intervir. Ela encarou a aluna que estava acusando e perguntou:
— Mas tu viu ela puxando o teu cabelo?
— Não, mas me falaram que foi ela, e eu acho que foi. — a estudante respondeu.
A professora escutou a aluna com atenção, deu uma risadinha e respondeu:
— Então puxa o cabelo dela também.
— Que!? — Yukino exclamou.
— Tá bom! — disse a aluna.
— Mas.. — indagou Yukino.
A aluna foi até ela e puxou seu cabelo com força, o pescoço de Yukino chegou a se curvar e ela sentiu dor.
— Resolvido? Vamos pra sala. Daqui a pouco vocês têm Educação Física.— disse a professora.
Todos fizeram fila e se dirigiram para a sala de aula. Parecia que tudo tinha se resolvido. Mas tudo o que?
Para Yukino, que, mais do que nunca, fervia de raiva, nada estava resolvido. Ver quem deveria protegê-la cometendo uma injustiça, sem nem ao menos ser ouvida, havia sido a gota d'água.
Que oportunidades iriam surgir para dar jeito no que havia acontecido?
Logo chegou a hora da Educação Física. As meninas treinavam separadas dos meninos e ficaram com a quadra coberta naquele dia.
E Yukino sabia que coincidências não existiam. Naquele dia o exercício era roubar a bola como treinamento para o handebol. As duplas eram escolhidas aleatoriamente, e ela havia caído justamente com a menina que tinha puxado seu cabelo.
O exercício consistia em o professor ficar no meio das duas competidoras com a bola na mão. Ao soar o apito, ele jogava a bola ao alto e quem alcançasse a bola primeiro levava até o gol, enquanto o outro corria atrás para tentar roubar o adversário e inverter o jogo.
Mas naquele dia Yukino não fez esforço algum para pegar aquela bola, deixou a outra menina tomar a frente, o objetivo dela era outro...

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