A hora era meia-noite, agora já não havia mais ninguém se não João e o Servente, dispostos à mesa, sóbrios e prontos para falar. Aurélio já fechava as portas para não adentrarem mais clientes, estavam os três dispostos à mesa redonda. O jovem que fora embora já não via sentido em achar refúgio em bebidas. O advogado se viu aliviado ao se ver menos dependente do trabalho para se ver feliz. Mas, agora, o Servente aguardava com o coração no peito por sua esposa, que insistia em não sair do trabalho.
-Você começaria, ou eu? – Perguntou João, com timidez.
Aurélio percebia a preocupação do Servente, mal podia esconder sua aflita cerviz.
-Homem, beba um copo d’água, por favor. – Prontamente se levantava para buscar um copo.
-Não, muito obrigado. – Disse o Servente.
João pensava que sua preocupação dizia respeito ao trabalho estar demorando demais, mas percebia que, apesar das suas certezas, no fundo imaginava um caso transtornado de paixão, de uma relação fragilizada pelo tempo, oxidada e não mais afiada como fora outrora.
-De que você tem medo? – Perguntou João.
-Tenho medo de que não seja como antes, que não seja o que eu imagino. –
-Quer dizer que, você pensa que pode não ser amor? –
Assentia o Servente, quase que chorando. Seu rosto estava rígido, quase inexpressivo. João já não estava com vontade alguma de permanecer naquela conversa. Preferia, ó Deus, infinitamente sair d’aquele lugar o quanto antes para apreciar o luar antes do alvorecer, fingir que jamais houvera feito tamanha procissão para três miseráveis em um bar. Em vez disso, João olhou para suas trouxas, já ansiando em não dizer mais nada, quando o Pedreiro disse:
-Vivi demais ansiando pelos meus pensamentos, jamais pelo real. Devo dizer que passei a vida inteira imaginando o melhor da minha mulher, tudo o que me enchia os olhos de brilho eu encontrava n’ela. Não sei se por mim, não sei se por Deus, mas eu amo aquela moça mais do que tudo nesta vida. Dediquei diversas palavras, poesias, músicas dos meus poucos vinis que guardo em minha casa. Mas, d’ela, não observei nada parecido. –
O senhoril, do lado oposto aos dois, esfregava um pano em um copo americano completamente seco. Seu nervosismo o fazia lustrar um copo mais do que limpo. O Servente olhava para João que, por sua vez, permanecia atônito.
-O que é o Amor para você, João? – Disse, como que num interrogatório.
-Bom. – Dizia João. -O Amor é bom. Creio que, uma vez amante, jamais se erraria nessa vida sem sentido. Quem ama pela primeira vez não deixa de amar e, de tanto amor, passa a ver o que jamais fora visto. –
Apontou para fora (opaco o sol se esgueirava por entre as nuvens da noite).
-Veja, olhe bem para fora. O que eu vejo são apenas lembranças daquilo que eu mais amo. Se não amo nada nem ninguém, nada vejo. Mas se, em minha mente, vagam músicas, poesias, Cristo, a mulher da minha vida, o próprio Deus Altíssimo, aí sim, meu amigo, vejo a maior obra prima que nenhum outro é capaz de ver. O Amor me permite ver luz onde tudo está escuro; ver cores onde todos os outros veem preto e branco; encontrar segredos por entrelinhas que nenhum bom leitor é capaz de encontrar. Por entre as veredas das Escrituras, digo-lhe precisamente, não se enxerga o Espírito sem tê-lo amado primeiramente. Quem abre-nos os olhos é Cristo, ninguém mais. Meu compromisso como um cristão sempre é transmitir a palavra que foi dada a mim, primeiro por quem me amou, depois de mim para outro que devo amar tanto quanto a mim mesmo. –
Não cessava de falar sobre o Amor. O recém-adulto João Bosco já não continha mais as palavras para si, se dedicava piamente a falar. O Servente em um momento deu um sinal para que esperasse, tornou a falar:
-Eu deveria acreditar no que tu dizes sobre o Amor? Comparando-o a uma leitura? –
João parou por um momento, franziu um pouco as sobrancelhas por se ver constrangido. Pouco antes de falar sobre Amor, João observou no jovem uma busca por sentido na própria vida. Achou que havia encontrado em meio ao álcool, mas sua embriaguez o impedia de observar um certo equívoco. De igual modo, João imaginou que o Servente não acreditava em Deus, mas, na verdade, ele apenas estava desnorteado pela sensação maligna de que não tinha ao lado dele uma mulher que a ame. Nesse momento, João começou a responder:
-Naturalmente. Imagino que já tenha escutado o Amor como um processo de descoberta, construção ou divisão de serviços entre seres, mas quando observamos como livros, tudo o mais é possível imaginar. Veja que, sempre quando vamos escolher um livro, isso, claro, julgando não o conhecer, observamos primeiro para a sua capa, contracapa e orelha. Ora, quando observamos a capa, pouco importa o conteúdo. Nossos olhos brilham para a capa, assim queremos o livro. Se você é capaz de gostar de um livro apenas pela capa, de igual modo uma pessoa gosta da outra apenas pela aparência, e cá está a paixão. – Terminava com uma pequena pausa, para que não parecesse que encerrara.
-Eu sou incapaz de amar uma mulher, se me firmar apenas ao seu rosto, seu corpo ou seu doce beijo. Onde está sua humanidade? Onde estão suas histórias, os seus defeitos? Onde estão os seus detalhes que lhe trazem beleza? Dessa maneira começamos a ler o livro, buscando por entre os capítulos pelos detalhes que nos farão rebrilhar os olhos pelo livro em si, não apenas pela capa. Aqui está a construção, o longo processo de aprender sobre ela, de estudar sobre ela e saber dos seus pensamentos, das suas inseguranças, dos medos e gostos e, pouco a pouco, uma conexão com o livro inicia em nós. Estou considerando que a moça tenha se permitido ler para você, isto é, respondido às suas perguntas, expressado suas inquietações, amarguras e decepções do passado. – Neste momento, coletou sua agenda.
-A vida de todos – escrevia com a caneta em sua agenda. -é um livro em constante escrita, todos os detalhes das vivências vêm ao livro bem aqui. Dessa forma, não podemos nos apegar n’aquilo que foi, mas sempre n’aquilo que está sendo. Se amamos apenas o capítulo 1, como amaremos o 2? Vamos ler os próximos capítulos querendo ver o que vimos no primeiro, e isso é uma paixão. Quando aprendemos a ler os capítulos por serem do seu livro predileto, não baseado nos seus egoísmos, aí estará o Amor. Não me interessa se o novo capítulo há algo diferente do anterior, é do livro que amo, assim sendo, o amo ainda mais. -
De repente foi interrompido por uma mulher que chegava pela porta, era a esposa do Servente, pronta para retornar para casa. Contando a ele como foi no trabalho, o Servente olhou para João com uma vista agradecida, sorrindo e saindo com a moça pela porta, deixando João solitário, à companhia apenas do senhoril e do sol que emergia no horizonte.
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