No momento em que o Sentinela Castrum citou o meu olho, eu lembrei de tudo. Minha mente estava tão abalada quando acordei que acabei apagando os últimos instantes que vivi no altar da catedral, antes de desmaiar.
Com a morte de Ignis, Spes tornou-se um Excluído. Um Guia que teve um duplo despertar e tornou-se também um Sentinela. Assim como na obra original, esse corpo em que eu habitava era considerado amaldiçoado, como um anjo caído, maculado pelo veneno dos Sentinelas. E por ser um grande tabu na sociedade, os Excluídos eram tratados como objetos e levados para testes em laboratórios.
Na novel, Spes ficou muito tempo preso no subsolo, sendo utilizado como cobaia e purificando todo o tipo de Sentinela. Em um momento da história, ele retornou ao Culto da Luz com uma nova identidade, porque ele tinha selado os próprios poderes, tornando-se apenas um Guia fraco. Inicialmente, duvidei da capacidade do corpo de Spes de alcançar tal feito, com o nível de poder que ele tinha naquele momento e sem nenhum tipo de treinamento.
Ainda que eu conseguisse fazer um escudo, isso só dependia de concentração, algo que dominei a minha vida inteira.
Selar meus próprios poderes seria diferente. Eu precisaria de um conhecimento maior do que o que eu tinha e, possivelmente, mais poder.
Parecia um pouco demais.
Só que era a minha única alternativa. Se uma entidade poderosa confiava em minha força de vontade para salvar Pristine, eu tinha que confiar também! Quando senti todo aquele poder invadindo meu olho direito, eu o tampei imediatamente e gritei como se estivesse sentindo uma dor lancinante, enquanto me voltava para mim mesmo. Foquei puramente em mim, excluí o mundo exterior e pude ver Cerulean e Mox no Reino Espiritual.
Meu coração doeu ao ver a ave, antes majestosa, tão pequena e frágil, do tamanho de uma arara filhote comum. Ela estava praticamente depenada, com cortes terríveis e coberta de sangue. A chegada de Mox, um predador, no meu espaço mental era prejudicial para Cerulean. Apesar de serem bons amigos no mundo exterior, quando dividiam o mesmo Guardião, eles eram tóxicos um para o outro.
— Cerulean — chamei mentalmente alisando sua cabeça com a ponta do dedo — Sei que está comigo há muito tempo e que vai ser doloroso para ambos, mas preciso que você durma até que esteja totalmente curada.
Cerulean me olhou tristemente, suplicando para que ficássemos juntos.
— Eu ficarei bem, eu prometo. Se cuide e volte pra mim quando tiver forte o suficiente.
Ela piou em concordância. Aos poucos, seu corpo foi tomado por um brilho azul, e onde antes estava Cerulean, restou apenas uma bola fraca de luz similar a um ovo.
— E quanto a você, Mox — alisei o pêlo macio do lobo que descansou a cabeça em minha mão — Seja um bom garoto, e se esconda. Não saia até que seja seguro, você vai saber o momento certo. Eu preciso que Cerulean seja forte o suficiente para que vocês convivam sem machucar um ao outro.
Eu tinha selado meus poderes, e como meu olho direito era a fonte do poder dado por Ignis, enquanto Mox estivesse escondido no meu Reino Espiritual, minha visão ficaria comprometida. Não foi difícil demonstrar o quão abalado fiquei com aquela notícia. Não foi preciso fingir. Mesmo tendo feito uma escolha consciente para evitar ser trancafiado, perder uma pequena parte dos meus sentidos ainda seria difícil de lidar. Ainda mais em um mundo no qual eu só estava familiarizado na teoria.
Minha missão pareceu pesada demais. Durante o batismo eu tive coragem para enfrentar a cascavel, pois achava que tendo os poderes de Spes somados aos meus conhecimentos prévios da história, eu poderia mudar algo. Agora tudo tinha mudado: eu estava cego de um olho, e praticamente sem poderes. O que eu poderia fazer como um Guia nível F? Eu era praticamente um Civil.
Suspirei pesadamente e Sentinela Castrum permaneceu me observando. Compreensivo como sempre, ele permaneceu em silêncio até que eu falasse alguma coisa.
— Eu ainda serei batizado? — perguntei, desesperado. Precisava saber como iriam lidar com aquela situação, pois precisava me manter na Mansão Sagrada. Só assim poderia salvar Pristine e dar um futuro próspero a Lux e Spes.
— Todos os batizados foram suspensos enquanto o incidente na catedral for investigado, mas não se preocupe, você ainda é um Guia e começará a receber o seu treinamento assim que receber alta — assegurou Sentinela Castrum.
As palavras dele foram altamente reconfortantes. Agora que estava mais calmo e que sabia que ninguém desconfiava do meu segundo despertar, analisei melhor o Sentinela Castrum. Ele era muito gostoso, um gostoso do nível Rodrigo Hilbert. Ele tinha uma voz calma e doce, e passava aquela vibe que parecia que seria capaz de construir uma casa com as próprias mãos só para fazer a pessoa amada sorrir.
— Vou deixar você descansar, amanhã começaremos seu tratamento.
Me despedi do Sentinela Castrum com um bocejo e observei aquela bela bunda ir embora. Eu precisava saber mais sobre ele, e podia aproveitar para admirar todo o material que ele oferecia nesse meio tempo. A porta se fechou e fui sorrateiramente até a janela que dava para o corredor. Espiei por entre as persianas fechadas, e vi o médico gostoso conversar com um enfermeiro.
Eles pareciam preencher o prontuário eletrônico enquanto decidiam os horários dos meus exames e tratamentos. Ao menos foi o que eu entendi em meio a todos aqueles jargões médicos.
Sentinela Castrum parou de dar as instruções e encarou fixamente o corredor, sua expressão surpresa me fez acompanhar o seu olhar. Um rapaz jovem, alto, com olhos dourados e cabelos escuros se aproximava. O enfermeiro se retirou de imediato e eu engoli em seco.
“Lux? O que ele está fazendo aqui? Ainda é muito cedo para ele encontrar com Spes. Nove anos mais cedo!”
Pisquei algumas vezes para ter certeza de que o meu único olho estava funcionando. Não tinha erro, aqueles olhos dominados pelo dourado intenso eram únicos. Só Lux tinha aquela cor de olhos em toda Pristine, pois ele era o único Sentinela a ter habilidades de todas as categorias. Essa era a razão pela qual ele sempre estava à beira de um colapso. Suas irises cheias de toxinas douradas eram a prova disso.
Minhas pernas tremeram e eu achei que ia desabar. Lux era a perfeição em forma de personagem, e conseguia ser ainda mais perfeito como uma pessoa real! Olhando para ele, eu quase me esqueci de todos os problemas pelos quais passei e os que ainda enfrentaríamos.
“Obrigado, voz misteriosa, por essa graça.”
— A Prioresa quer receber as atualizações sobre o seu paciente, Sentinela Castrum — disse Lux asperamente.
— É assim que você fala com o seu pai? — o médico cruzou os braços e encarou Lux.
“Pai?”
— Não foi você que pediu para que te chamasse pelo pelo título enquanto estivessemos na Mansão Sagrada, Sentinela Castrum? — ironizou Lux, sério.
— Estamos só nós dois aqui. — Sentinela Castrum mostrou os arredores, provando a sua afirmação.
— Como quiser, pai — o tom jocoso mostrava como ele estava insatisfeito com aquela palavra.
O resto da conversa se perdeu quando me isolei em meus pensamentos. Pelo que eu lembrava, o pai de Lux era um pesquisador do subsolo. Ele ficou obcecado por Spes, mas o nome dele era diferente: Doutor Castelo.
Senti meu corpo gelar. Isso era muito ruim.
Doutor Castelo era o cientista obcecado por Spes. Ele fazia estudos cada vez mais terríveis, e quando não suportou mais ter que dividir a sua cobaia com outros cientistas, sequestrou Spes e o prendeu em sua própria casa.
“Como eu não reconheci ele?”
Pela descrição, eu sempre achei o Doutor Castelo gostoso, mas eu imaginava ele totalmente diferente. Não existia nenhuma arte oficial dele, e eu nunca vi uma fanart sequer, por isso foi difícil de reconhecer.
“Desculpa, Rodrigo Hilbert, por te comparar com um ser humano terrível.”
Quanto ao seu nome verdadeiro, só foi citado uma única vez, em uma cena tão intensa que seria a última coisa em que eu prestaria atenção. Mas quando ele se apresentou, deveria me soar familiar.
“Isso é perigoso. Se eu começar a esquecer sobre a novel, eu não terei como reler para verificar, então posso começar a cometer erros graves. Confiar no Sentinela Castrum é um deles.”
Precisava descobrir onde um paciente da ala hospitalar da Mansão Sagrada poderia anotar algo sem ter o risco de alguém ler. Talvez, se eu conversasse com Sentinela Castrum, eu conseguisse começar o meu treinamento logo. Todo Guia iniciante tinha direito a um diário virtual pelo relógio holográfico, onde registraria seus aprendizados e pesquisas. Era um item extremamente pessoal que só podia ser acessado por senha, ou com a digital do Guia.
Claro que o pessoal de alto nível, como a Prioresa, teria acesso irrestrito a tal arquivo, mas por que alguém leria o diário de um Guia nível F que acabou de perder o seu Sentinela? Até que eu aprendesse a registrar informações com minha energia mental em um objeto que só eu poderia acessar, essa seria a alternativa mais segura para anotar tudo que eu me lembrava.
Só tinha um probleminha nesse meu plano: eu teria que me aproximar ainda mais do homem que manteve Spes cativo por 9 anos.
Revisão Ortográfica por: Isabella Viard

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