O garoto voltou novamente seus olhos para os amigos próximos a si e notou que nem todos estavam presentes, faltava mais um.
— Onde… onde está o Pyke?
— Ele foi até o castelo, já deve estar voltando — respondeu a amiga Turner, com um olhar perdido e apreensivo.
— Ficamos preocupados com você depois de passar o dia inteiro aqui sem notícias, então escolhemos um de nós para ir lá fora buscar por mais informações — explicou Scott.
— E escolheram o Pyke? Logo o Pyke?
— Eu sei que ele é meio tapado, mas dentre todos nós ele é o que mais tem conhecidos naquele castelo — comentou Kelly para o espanto do menino.
— Pyke é popular?!
— Eu não diria isso — acrescentou ela. — É que ele conhece uns veteranos e funcionários aqui e acolá, e tem até um grupinho do dormitório dele com quem ele anda — acrescentou, rodopiando o amuleto em seu pescoço.
— Seria… meio suspeito se todos fossemos juntos atrás de informação, até porque fomos vistos com você naquele porto, não é? — argumentou Scott. — Se existe alguém que pode muito bem ser interrogado, seguido ou usado para ir atrás de vocês, somos nós. Então elegemos apenas ele para ir no lugar de todo mundo.
Cabisbaixo com aquelas últimas palavras, Artur respondeu:
— Lamento por fazer vocês passarem por isso.
Era óbvio que não era ele o único a estar em risco com aquela decisão que viera a tomar. Todos ali, simplesmente por o acobertarem, o abrigarem, o seguirem, estavam envolvidos e, por isso, encontravam-se quase na mesma situação.
Após sondar um pouco mais as proximidades de sua propriedade pelas janelas encobertas pela cortina, Thomas se aproximou do amigo e, analisando-o da cabeça aos pés, comentou:
— Tenho alguns trapos secos aqui que podem lhes servir. — O rapaz cruzou o ambiente e abriu uma gaveta empenada de uma cômoda velha do outro lado. — Devem estar famintos, não é? Ainda sobrou coelho do almoço, vou preparar para vocês. Aqui está! Podem ir se trocar lá no porão! — acrescentou, estendendo as vestes dobradas para os dois.
— Obri-obrigado! — respondeu o menino Allen, tomando uma túnica marrom em seus braços. — Vem, Harry!
Thomas abriu o alçapão e os dois irmãos desceram as escadas de madeira próximo a Lya, a qual, trocara olhares ligeiros com quem, até então, parecia evitar. Ela não esboçou sorriso algum ao vê-lo mais uma vez, somente virou o rosto estranhamente ruborizada e murmurou:
— Bo-bom te ver, aprendiz!
— Erm… vo-você também!
Depois daquela despedida entre os dois, era natural que as coisas ficassem um pouco estranhas. O menino desviou novamente sua atenção rumo ao seu trajeto e desceu.
Após vestirem-se adequadamente, livrando-se das vestimentas úmidas e frias, os dois irmãos atacaram o prato que lhes foi servido à mesa, como se não tivessem algum tipo de refeição decente há semanas. Cada garfada era uma mistura de necessidade e ansiedade.
Enquanto saciavam aquela fome ininterrupta, um silêncio desconfortável se formou naquele espaço. Os olhares dos presentes pareciam perfurar Artur, analisando-o minuciosamente, julgando cada gesto, cada expressão de seu rosto.
Certamente estavam questionando o que o fizera desafiar as autoridades locais daquele jeito. Qual a razão pela qual decidira arriscar a liberdade ao invés de simplesmente partir a bordo do Gongordian como um bom menino?
Até mesmo Harry, que tinha uma vaga noção dos motivos por trás da ousadia de seu irmão, interrompeu seus movimentos com o garfo para observá-lo com curiosidade e apreensão.
Era compreensível que todos ali estivessem em dúvida. Artur devia uma explicação a todos por tamanha insanidade.
— Então… — começou Scott, rompendo o silêncio com sua voz, demonstrando uma seriedade incomum. — Será que agora dá pra explicar o que deu em voc…?
— Vamos esperar até o Pyke chegar! — determinou, cutucando o restante da comida com o garfo. — Por favor!
Artur ergueu o olhar de súplica por um momento, sentindo o peso das expectativas afundar sobre seus ombros.
Fizera algo grave demais, isso era incontestável. Declarara guerra abertamente contra as autoridades locais, e tudo baseado em uma convicção que, embora fosse muito consistente, ainda não deixava de ser mera suposição.
Ele precisava escolher suas palavras com cuidado, pois não era apenas uma questão de explicar, mas também de convencer, de assegurar a confiança das únicas pessoas próximas a ele, que podiam lutar ao seu lado. Pois, se Artur estivesse mesmo certo quanto ao cenário que se formara, aquilo poderia significar que aquelas pessoas dentro do moinho fossem talvez a única esperança que havia restado para o povo de Rostwood.
Passos rápidos vindos de fora chegaram à soleira, seguidos de um som elétrico do bater na porta.
— Deixa eu entrar! — exclamou uma voz familiar. — Abre logo!
— Pyke? — perguntou Thomas apreensivo. — É… é você?
— Não, é o bicho-papão! Saí dos contos infantis e da escuridão do armário só pra fazer você se borrar! Dá pra abrir logo?!
— Esse tom arrogante aí só pode ser ele — disse Kelly cruzando os braços. — Abre logo para esse idiota!
Thomas assentiu e obedeceu a jovem, deixando o menino Buster passar. O amigo correu para dentro e desabou no chão aliviado, parecia ter acabado de sair de uma zona de guerra pelo olhar amedrontado que esbanjava em seu rosto. Ele estava ofegante.
— Veio correndo, né? — supôs Scott.
— Tem muito guarda lá fora! Tavam… Tavam olhando pra mim com uma cara muito estranha.
— E aí você decide agir de forma ainda mais suspeita correndo para cá — continuou o rapaz sem mascarar o julgamento no tom de voz.
— Olha só, ô espertão! Da próxima vez vai você, falou?! — protestou o menino, recuperando seu fôlego. Ele voltou seus olhos para Artur e acrescentou: — Então quer dizer que o camarada apareceu, né?! Vocês dois movimentaram o vilarejo inteiro! Tá todo mundo falando de vocês!
— E por que não estariam? — falou Kelly. — Um aluno da academia agora é um fugitivo.
— Mas não é só por causa disso não — acrescentou Pyke, erguendo-se do chão. — Há rumores de que… o navio que partiu hoje, aquele que nós iriamos entrar se não fosse por esse aqui. Bem, ele foi atacado pouco tempo depois de atingir mar aberto!
— O quê?! — exclamou os demais ali próximos em uníssono.
Boatos como este, em Rostwood, tendiam a ser verdades ocultas pelas autoridades locais, informações vazadas de algum modo. A notícia deveria ter chegado por carta como um pedido de resgate e sido abafada pelas autoridades, como esperado.
— Você… você sabia que isso ia acontecer? — perguntou a jovem Turner assombrada. — Artur, você salvou a todos nós!
— Hã? — Ele estava tão espantado quanto eles. — Eu…
Todos os olhares do moinho então se voltaram para ele.
Embora fosse algo que o menino Allen cogitava, aquilo viera como um tremendo choque. Havia mais de quarenta pessoas naquela embarcação, quarenta vidas perdidas de uma só vez.
Não havia mais como adiar aquelas palavras presas em sua garganta. Com um gesto decidido, o jovem afastou o prato, empurrando-o para longe da mesa, e girou sua cadeira para encarar os amigos. Seu olhar refletia a gravidade da situação, a determinação de quem estava prestes a compartilhar verdades há tempo demais guardadas.
— Já não me restam mais dúvidas de que estamos mais encurralados do que nunca agora — começou calmamente. — Quando Robert… me chamou essa manhã no saguão… eu vi em seu rosto um olhar que eu só vi três vezes na minha vida: naquela criatura que nos atacou na competição, no cemitério quando demos de cara com o demônio e quando esse mesmo demônio… invadiu o corpo do meu irmão — acrescentou, apontando para Harry.
Os amigos se entreolharam com uma expressão de espanto e medo. Até mesmo Lya não mascarou a surpresa do lugar onde estava. A menina logo dirigiu o olhar absorto para o chão e pronunciou:
— Então… isso significa que…
— Que ele tem o domínio de uma das pessoas mais poderosas desse lugar — confirmou o rapaz para o terror de seus ouvintes. — Estava na minha cara esse tempo todo, mas eu não percebi. Sua reação ao ver o que eu e James estávamos fazendo, sua negligência enquanto mais gente… morria nesses esgotos malditos, essas últimas decisões tomadas por ele… tudo isso só deixou ainda mais fácil para Azaroth. Esses navios que estão vindo — acrescentou, apontando para a janela —, não estão vindo para salvar os moradores, mas para levar mais vítimas para o Mar de Arcanjos.
— Mas… ele tem influência no Mar de Arcanjos? — perguntou Pyke.
— É claro que ele tem — afirmou Scott convicto. — Ouvi dizer que o poder de Azaroth vai até onde a maldição de Rostwood domina e ela ultrapassa os recifes. Não conhece as histórias? Não sabe por que o Mar de Arcanjos é do jeito que é?
Fora Scott que contara ao menino Allen sobre a maldição que permeava o território que, agora, os aprisionavam.
— Isso é terrível! — murmurou Kelly. — Então, você e o Sr. Jordan estão sendo punidos, não por terem quebrado as regras.
— Não. Mas por ameaçá-lo com um plano que agora não me restam dúvidas de que iria dar certo. Foi… por isso que ele destruiu tudo a tempo. Por isso, ele queimou os pergaminhos, por isso que ele se desfez do veneno!
— Então o que ele está esperando agora? — perguntou Pyke. — Quer dizer… ele tá controlando o sujeito mais influente daqui, não é? Ou pelo menos o ex-sujeito mais influente daqui.
— É só questão de tempo até ele conseguir retomar o posto de novo — comentou Lya, cruzando os braços.
— Basta ele forçar os membros do conselho a revogarem a decisão — disse Kelly pensativa.
— Ou sumir com eles — completou a menina Aiken, causando arrepio a todos ao redor
O conselho era talvez a única coisa que impedia Azaroth de agir livremente dentro do castelo e daqueles muros naquele momento. Era a única ligação direta entre Rostwood e a capital. Eles precisavam conhecer a verdade em tempo hábil.
Pyke coçou a cabeça e questionou:
— Qualé, ele já tá dentro do vilarejo, rodando tudo dentro do castelo. Será que ele não pode simplesmente abrir os portões para passar com seus servos?
— Não é assim tão fácil — disse Thomas. — O vilarejo é o único local que não é atingido pela maldição de Rostwood, esqueceu? Logo, Azaroth não tem poder aqui… quer dizer… não deveria.
— O que protege o vilarejo são as chamas sagradas — disse Artur. — Mas as chamas só protegem o vilarejo de ataques das trevas. Ainda assim, é enfraquecida quando os moradores entram em pânico ou… quando não há mais pessoas o suficiente para fortalecê-la. — Quando ele sentiu olhares curiosos voltarem para ele, o rapaz percebeu que jogara no ar uma informação que ninguém mais ali sabia. — É a fé das pessoas que fortalecem essas chamas — explicou.
— Curioso — murmurou Kelly pensativa. — Acho que li algo parecido em “Rostwood: Uma história”.
— Pois é — disse Scott. — Mas parece que essas chamas não funcionam contra possuídos, não é?
— É o que parece, Lya mencionou isso uma vez para mim, não foi? — acrescentou o menino Allen voltando seus olhos diretamente para os da menina, a qual, pega de surpresa, desviou os dela para longe.
— Me-meu avô… disse isso para mim uma vez. É como se fosse uma falha na segurança do vilarejo. Esses muros são protegidos contra ataques diretos das trevas, mas não de indiretos — informou com muita seriedade. — Utilizar o corpo de outro seria como uma forma de enganar essa barreira. Para aquele canalha ter sido fisgado, ele precisou sair de dentro da proteção em algum momento e ter sido possuído pelo lado de fora.
— Então… agora que ele tem Robert, o que será que ele pretende fazer?
— Tomar o vilarejo de alguma forma — afirmou Thomas. — Ter… o controle total da ilha é tudo o que ele quer, pra iniciar assim seu… império. Meu tio dizia que esse sempre foi seu propósito doentio.
— Agora a pergunta é como ele pretende fazer isso — pontuou Scott.
— Diminuindo a população do vilarejo, não haveria mais forças para manter a chama sagrada, ela então apagaria, eu acho — concluiu Artur. — A menos que ele planeje tomar esse lugar com uma legião de possuídos, creio que esse seja o seu plano, acabar com a barreira que o impede de pisar aqui dentro.
— Então tá! — exclamou Pyke, socando o tampo da mesa inusitadamente. — Ele tem duas cartas na manga e qual nós temos? Hein?! — perguntou ao amigo elevando a voz. — Vamos lá, Artur, qual é o plano?
— Eu? Eu não tenho plano.
— Hã?!
— Meu plano era destruir ele com o veneno que eu e James estávamos fazendo. Sem aquilo… minhas opções se esgotaram.
(CONTINUA)

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