— Quer dizer… que não podemos fazer nada? — Kelly questionou. — Vamos lá! Nós faremos esse veneno de novo! — a amiga acrescentou erguendo o punho com um sorriso confiante.
— Isso aí! — exclamou Scott. — Só dizer o que precisa que correremos atrás!
— Impossível! — respondeu em desagrado. — James demorou meses intermináveis para fazer a solução, o único registro que tinha sobre o preparo dela foi apagado por Robert e ele pedia ingredientes bem específicos e… difíceis de conseguir de novo, como um poder suficientemente destrutivo.
— Ou o veneno de uma vespa rainha ancestral — completou Lya do outro lado, abrindo um sorriso tênue. — O aprendiz aí matou a rainha da única colônia que tinha nessa ilha.
— Sério?! Que demais! — exclamou Pyke dando um tapa amigável e inesperado nas costas do amigo. — Eita! Desculpa, exagerei, né?
Artur soltou um suspiro audível de impaciência e se ergueu de sua cadeira de modo a atrair a atenção de todos ali mais uma vez. Ele sentia que seus amigos esperavam mais dele, era desagradável ter que decepcioná-los.
— Eu não queria colocar vocês nessa, nem dar falsas esperanças, lamento que eu não tenha conseguido evitar nada disso. Azaroth… nos colocou em um beco sem saída. Não podemos sair da ilha, pois esse lugar… nunca esteve tão sitiado como parece estar agora e… não podemos lutar contra ele porque ele é indestrutível e não temos força o suficiente. Acho que tudo o que podemos fazer é avisar os sacerdotes e a suma sacerdotisa sobre o que sabemos e… esperar para ver. Talvez ao menos os membros do templo poderão fazer algo… para impedir uma catástrofe ainda maior — acrescentou, repousando o olhar preocupado sob o assoalho.
— Já sei! Vamos enviar cartas para Kingshill e contar o que está acontecendo por aqui — sugeriu Kelly. — Pedir reforço aos oito reinos!
— Não seria muito diferente do quadro em que estamos agora, não é? — disse Scott. — Há uma frota de apoio chegando de Kingshill, mas parece que, mesmo estando repleta de soldados, nada é páreo para o poder desse demônio.
— Será? — insistiu a menina. — Talvez ele não dê conta de um exército enorme de homens preparados.
— Mesmo se houvesse a mínima chance e tempo de pedir reforços, tenho razões para acreditar que Azaroth intercepta todas as cartas que entram e que saem de Rostwood — afirmou o menino Allen cruzando seus braços. — Vários pombos desapareceram nos últimos meses e, os que voltaram, chegaram feridos, despenados, enfraquecidos. Bom, ao menos foi o que Hilbert me disse.
— Hilbert? Quem é Hilbert? — perguntou Kelly.
Thomas e o rapaz se entreolharam, eles eram os únicos que sabiam da existência do fantasma.
— Ah… hehehe! É só um amigo! — esquivou Artur.
— Um amigo confiável! — completou Thomas erguendo o polegar.
— Não é nenhum fantasma!
— Espera?! Vocês têm outro amigo que não seja nós? — perguntou Pyke soltando uma risada branda.
— Ô Pykezinho, quer fazer um favor para mim? — solicitou a jovem Turner, forçando um tom carinhoso.
— Que é?
— Cala essa boca — respondeu com um sorriso meigo.
— Erm…
— Pessoal, estamos em uma situação complicada aqui e, pelo que parece, estamos sozinhos! — enfatizou Scott, levantando-se do sofá também. — Eu… concordo que tudo o que podemos fazer por ora é informar as pessoas certas e ir atrás de mais informações pelo vilarejo amanhã, talvez seja isso o que precisamos para lidar com a situação.
— É tudo o que temos ao nosso alcance — respondeu o jovem Allen. — Não podemos ficar parados vendo o vilarejo ruir cada vez mais, não há mais escapatória a não ser lutar contra tudo isso.
— Você não! — determinou o jovem Raymond.
— Como?!
— Você está sendo caçado por todos os cantos desse lugar. Nós sairemos e você vai ficar aqui mesmo no moinho. É o lugar mais seguro para você agora.
— É, Artur! — concordou a jovem Turner. — Scott tem razão!
O rapaz olhou para seu irmãozinho por um tempo e constatou que, agora, sua maior prioridade era mantê-lo seguro no meio de todo aquele cerco.
— Tudo bem!
Distantemente, as badaladas do sino de Rostwood propagavam pelos quatro cantos do vilarejo, dando início ao toque de recolher.
— Pois é, já está tarde! Acho que todos passarão a noite por aqui hoje, não é? — supôs Thomas, recolhendo algumas roupas de cama velhas que possuía por ali.
— Eu e Kelly entregamos as chaves dos nossos quartos, só Pyke tem lugar pra dormir naquele castelo, já que nunca teve chaves para entregar — informou Scott. — E mesmo se tivéssemos, seria bom evitarmos de ficar perambulando por lá diante das autoridades. Sair amanhã já vai ser meio arriscado — acrescentou, abrindo um sorriso abobado.
— Então suponho que vão comer por aqui também, não é? — continuou Thomas, sem esconder a aflição de ter que hospedar tantas pessoas. — Olha, vou ser bem sincero com vocês. Não tem comida para suprir todo mundo por aqui. Terão que trazer suas próprias refeições se não quiserem passar fome.
— Que pousada mais mixuruca! — zombou Pyke.
— Não esquenta! Vamos providenciar isso também. Amanhã sairemos de manhã e nos encontraremos aqui antes do pôr do sol, combinado assim? — esquematizou o menino Raymond, tomando a liderança naquela empreitada.
— Por mim tudo bem! — disse Kelly confiante.
— Por mim também! — respondeu Pyke.
— E você, menina assustadora que respeitamos muito por conta dessas catanas afiadas e esse olhar assustador? — perguntou o rapaz voltando seus olhos para ninguém menos que a menina Aiken.
— Prefiro agir sozinha — respondeu sem rodeios. — Possuo armas escondidas e conheço um alquimista que reside fora do vilarejo que pode me fornecer alguns suprimentos, além de informações. Ele tem contato direto com a suma sacerdotisa, talvez ele consiga fazê-la acreditar sobre a atual situação do vilarejo.
— Espera, você vai para fora do vilarejo? — questionou Kelly. — Não é tipo o pior lugar para querer perambular agora?
— Eu sei me virar muito bem por lá, bonequinha. Nada que um bando de aprendizes mal instruídos seja capaz de fazer — informou ela com desdém.
— E… então tá! Hehe! — riu Scott, constrangido com o comentário agressivo. — Va-vamos dormir, então?
— Vamos!
Todos então começaram a arrumar seus lugares por ali. Era um espaço bem apertado para sete pessoas conseguirem se acomodar adequadamente, mas foi possível se organizar.
Artur sentou-se próximo à lareira, seu irmão se endireitou em seu colo e repousou a cabeça sobre seu peito. Scott esticou-se no chão e utilizou apenas um travesseiro para apoiar a cabeça. Pyke sentou-se no sofá ao lado de Kelly, compartilhando o mesmo lençol, seus corpos debruçavam-se sobre lados opostos do mobiliário, mas em algum momento da noite, um acabou se deitando sobre a cabeça do outro.
Após apagar as velas e tochas daquele interior, observar todos se dispor e o silêncio finalmente sublimar-se naquele ambiente, o anfitrião reclinou-se sobre a velha poltrona de seu tio e fechou seus olhos.
A menina Aiken, acomodada próxima à mó, não parecia cogitar dormir, era a única de olhos bem abertos ali. Ela parecia optar em regozijar do silêncio para emergir em seus pensamentos. Aqueles misteriosos pensamentos.
Ela ainda devia estar sofrendo com o luto de seu avô. O jovem Allen até pensou em conversar com ela ali, já que não sabia se era capaz de adormecer também, porém, parecia haver algo que os impediam de trocar palavras, algo que os afastava mais do que já estavam dentro daquela azenha.
Assim sendo, ele virou o rosto e respeitou o momento de solidão da amiga, fechando seus olhos assim como os demais.
O fogo da lareira que os iluminava, dançava graciosamente com o vento que adentrava pela chaminé e pelas frestas da estalagem, assobiando de forma assustadora. A noite longa continuava e, lentamente, trouxe consigo o sono que tanto aguardavam.
∴
Já era madrugada.
O fogo da lareira havia se apagado, nem mesmo o calor irradiado pelas últimas brasas era possível sentir. Aquele moinho estava frio, de um modo incômodo e até mesmo incomum para uma noite de primavera.
Artur entreabriu os seus olhos, visualizando diante de si um moinho escuro e sossegado, tomado por uma sinfonia silente de roncos e de respirações suaves.
Ele permanecia imóvel naquele mesmo lugar, sentindo seu irmão adormecido calmamente sobre seu corpo.
Estava tudo silencioso demais por ali. Ele não conseguia escutar as corujas crocitar pelos arredores afora, nem mesmo a roda do moinho girar com a vasão do riacho, ou as tábuas estalarem com o sopro do vento campestre. Onde estava o ruído indistinguível do vento ou da água daquele afluente, ou do cricrilar dos grilos?
Era como se o mundo inteiro tivesse parado lá fora.
Ele desviou seus olhos para o chão e viu um livro de capa negra familiar abrir-se diante de si, com palavras visíveis, ilegíveis, gravadas nas páginas com uma tinta incomum. Eram simbologias de runas? Hieróglifos? Linguagem orc? Élfica?
Por que ele sentia que já passara por aquela sensação?
Um vento forte e congelante varreu aquele ambiente, de modo a folhear o estranho exemplar que o fazia querer fixar inexplicavelmente os olhos. Para seu espanto, a janela próxima a si se abriu com um poderoso baque. Thomas devia ter se esquecido de trancá-la bem.
O menino tentou se erguer para fechar aquilo, só que por mais que se esforçasse, seus braços não se moviam, nem mesmo suas pernas, nem mesmo os seus dedos, nenhuma de suas articulações. O que estava acontecendo?
Seus olhos repousaram, então, em uma sombra corpórea que surgira por aquela janela, mergulhada pela luz prateada da noite, com uma pele branca e um olhar cintilante, indistinguível, penetrante, inesquecível. Um olhar vermelho como o eclipse, imerso em uma mancha negra, enraizada, que ocultava suas sobrancelhas e que se alastrava pelas suas têmporas e maçãs do rosto.
Era o próprio mal encarnado presente naquela noite e estava prestes a adentrar naquele refúgio. O rapaz sentiu um forte desespero tomar conta de seu peito, conseguia sentir o fluxo de sangue se descontrolar em suas veias.
— Saudações, criança! — murmurou Azaroth com um sorriso anômalo em sua bocarra. — Posso entrar, não posso? — acrescentou, enquanto seu pé descalço já rodeava o peitoril, agarrado por suas longas garras negras.
Arregalado, enquanto seu suor escorria pela lateral do rosto e seu coração palpitava aceleradamente, o garoto tentava lutar contra aquele torpor aterrorizante que o obstruía. Mesmo sem haver armas nas proximidades, ou qualquer possibilidade de sobreviver a um confronto com aquele ser, ele só queria poder se mover ou, no mínimo, gritar, de modo a acordar a todos, alertá-los da ameaça para que tivessem a mínima chance de lutar pelas suas vidas, mas nem mesmo isso podia.
Seus esforços pareciam inúteis, ele estava visivelmente enfeitiçado. Lutar contra aquilo parecia ser como nadar contra o mais ávido e destrutivo dos rios. Nunca se sentira tão vulnerável quanto naquele instante.
Por que mais ninguém despertava?
Com os dois pés no interior do recinto, enquanto permanecia repousar tranquilamente sobre o peitoril, arrumando seus cabelos morenos e volumosos com a mão, o demônio encarou todos aqueles jovens adormecidos com um profundo ar de desdém, manifestado através daquele sorriso animalesco.
Da janela ele saiu e, estufando seu peitoral volumoso, começou a desfilar a passos calmos, contornando suas vítimas com naturalidade, estudando-os atentamente de cima, como os insetos que pareciam ser aos seus olhos. Sua longa capa negra o acompanhava, recobrindo o assoalho como uma manta repleta de rasgos e furos.
— Esses são seus aliados? Tsk, tsk! — supôs ele, o qual, ao parar seus passos descalços, encarou o único despertado naquela azenha. — Ahhh! Parece que ao seguir seu rastro, consegui um prato ainda mais cheio.
Que droga era aquela que ele estava falando?
— Porém, devo começar pelo meu… pequeno trabalho inacabado — continuou Azaroth, voltando seus olhos suspeitos para ninguém menos que o irmãozinho adormecido no colo daquele rapaz.
Ele não podia ousar.
A passos lentos, ele então se aproximou dos dois, sem desviar o olhar inclemente, aquele olhar sádico, nojento, desprezível, que esbanjava claras intenções, abomináveis intenções, inexplicáveis intenções de fazer mal a uma criança adormecida.
Enquanto se entreolhavam continuamente, Artur sentia sua respiração enervar-se. A agonia fazia suas mãos travadas suarem, assim como sua testa, pescoço, axilas, tudo.
Quando finalmente chegou, o demônio repousou sua mão na parede onde o rapaz apoiava as costas e se debruçou de modo que suas faces ficassem bem próximas. Ele, sem dúvida, exalava morte.
Os olhos de Azaroth voltaram mais uma vez para a criança entre eles, criança a qual, agora, tinha o rosto desvanecido alisado pelas costas do indicador daquela entidade.
— Uma alma tão pura, tão frágil e vazia como qualquer outra. Só que mesmo assim, amada — comentou quase aos sussurros se desfazendo de seu sorriso. — Me faz lembrar do que não tive… e isso me irrita. — Ele empurrou a franja do menininho para o lado.
O que aquele monstro estava planejando fazer com aquelas garras bem em cima de seu colo?
Artur implorava para os deuses não deixarem, mas que se fosse acontecer, que ele morresse antes de ver aquilo. Aquilo que, definitivamente, o atormentaria pelo resto de sua vida caso sobrevivesse à visita.
— SR. ALLEN, CUIDADO! — berrou Hilbert.
Um jorro prateado e forte que emergiu no meio da sala e atingiu o demônio em cheio, ofuscando tudo de modo a fazer o menino despertar daquele tormento e abrir seus olhos apavorados.
Ele estava suando, estava ofegante e, agora, conseguia mover seu corpo.
O moinho funcionava, a lareira estava acesa, a janela estava trancada e o vento atingia a estalagem normalmente. Não havia livro algum por perto, muito menos um demônio.
— Sr. Allen, você está bem?
Sobressaltado com a voz, Artur encarou o espectro de seu amigo próximo a si, com a mão apontada para ele. Era evidente o que havia acontecido naquela madrugada. Mesmo a salvo, era aterrorizante de se imaginar.
— O demônio tentou usar o acesso em você para localizá-lo, eu o impedi — informou o fantasma. — É mais fácil fazer naqueles que ele já penetrou. Estou monitorando o sono de todos os seus amigos.
— Ele sabe… sabe onde estamos! — murmurou o garoto, enquanto tentava controlar a respiração aflita.
— Não, ele não sabe! Não deixei que soubesse!
— Mas… no meu sonho…
— Sr. Allen, lembra o que eu lhe disse sobre os sonhos provocados pelos atos de acesso? Eles podem ser qualquer coisa, desde que seja seu maior temor.
Aparentemente, o maior temor do menino Allen era ver todos ali ao seu redor, expostos a tal perigo, principalmente o irmãozinho. Seja por Azaroth ou pela guarnição daquele vilarejo, no final, era tudo a mesma coisa.
— Obrigado! — exclamou após um suspiro de alívio.
Quando então ele sentiu um vazio entre as cobertas, o desespero novamente bateu em seu coração.
— Ca-cadê… cadê o meu irmão?!
(CONTINUA)

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