[Esse capítulo possui menções à suicídio — nada explícito nem confirmado, apenas teorias devido à questões de saúde mental. Caso você ou alguém próximo esteja passando por algo parecido, não hesite em pedir ajuda. Lembrando que o CVV atende ligações no número 188!]
-----
Tomando as escadas para se distrair da própria mente, Gustave repassa as breves informações que o outro grupo de alunos foi capaz de fornecer: de fato, Mikael Prater bebia bastante, e sua situação financeira precária estava começando a se tornar assunto conhecido no campus. Está na cidade há menos de um ano, num programa previsto para dezoito meses, sem manter muito contato com a família na Alemanha. Fez poucos amigos desde que chegou, mas se afeiçoou rápido aos que conseguiu. A namorada também era bem festeira — era, porque já tem um tempo que ela foi vista numa balada. E felizmente, eles não precisam mais de computadores com sistemas funcionais, porque sim, ela é aluna da universidade, e uma colega de turma foi tão solícita que até passou o contato da garota para Bouchard. Se o número é real ou não, é algo para ser descoberto mais tarde. Agora, ele ainda tem uma última entrevista a conduzir antes de poder devorar o almoço.
Como indicado, no terceiro andar, ao final do corredor, à esquerda, há uma porta com uma plaqueta escrita “Vincent Levesque, PhD” pendurada nela. Destrancada, como prometido. O capitão faz pouca cerimônia antes de invadir o espaço — porque, por mais que tenha sido convidado, no momento em que pisa na sala, Gustave sente que não deveria estar ali. É como se as paredes em tons cremosos fossem se fechar ao seu redor a qualquer momento. Deve ser porque este é um lugar bizarramente limpo — não que bagunça fosse surpreendê-lo, considerando algumas das mesas pelas quais ele passa diariamente na delegacia, mas é limpo no sentido de vazio.
Há uma estante com vários livros empilhados, mas é uma das poucas coisas no local que dão a impressão de ser uma área regularmente frequentada. Também tem uma pintura pendurada em frente à escrivaninha, de algum tipo abstrato que ele obviamente não consegue interpretar. Em cima da mesa, deixaram uma pasta, umas folhas soltas e um Lego da Torre Eiffel que se parece mais com a Torre de Pisa. Pouco lixo, pouco material, pouca identidade. O cara deve carregar tudo com ele na bolsa. Imagine a situação das costas dele…
Ao se aproximar e sentar em frente à mesa, Gustave percebe mais dois detalhes: um livro de capa dura e um porta-retrato da mesma cor que a madeira do móvel. Por precaução e hábito, olha na direção da porta antes de puxar a moldura para si, só para dar uma espiadinha. Trata-se de uma foto de família, claramente. No centro, temos um casal com duas crianças — um bebê no colo dela, uma menina abraçada na cintura dele. Há dois outros homens os cercando, um em cada ponta do grupo; o da direita é bem mais alto que o da esquerda. Todos sorriem grudadinhos para a câmera, formando um grupinho perfeitamente feliz. A imagem faz Gustave revirar os olhos antes de colocar o porta-retrato de volta no lugar.
Como sempre, o timing dele é impecável. Na hora que solta o objeto, há um ruído vindo do lado de fora da sala. Gustave ajusta a postura em sincronia com a abertura da porta.
— Perdão pela demora.
É o tal orientador do moleque sumido, que para na entrada para pendurar o casaco num gancho que Gustave não havia percebido. Ele pousa sua mochila no chão e se vira para o policial— ah, é o pai das crianças. Óbvio que seria ele, mas caralho, a foto não o ajudou em nada. O homem é maravilhoso na vida real. Seu loiro já clareou até um quase grisalho, e os fios estão muito mais longos, derramando-se em pequenas ondas contra sua nuca, cobrindo partes das suas orelhas. Ao contrário do esforço calculado da outra professora, o cabelo dele é revirado naturalmente mesmo, mas isso só acrescenta ao charme.
Na verdade, não é nem questão de beleza, — se bem que o cara está longe de parecer feio — mas Gustave não consegue desgrudar o olhar dele à medida que se aproxima. As pequenas linhas em seu rosto ficam mais evidentes, curvando-se ao redor de seus olhos nebulosos, e apesar da tensão que transparece em sua expressão soturna, seus passos são leves. Por mais que seus ombros estejam rígidos, segue firme, de costas eretas, arrastando o ar da sala junto com ele, distorcendo tudo ao seu redor num vórtex. Esse homem, que parece ser um centro de gravidade alheio ao resto do universo, para na frente de Gustave, abaixa a cabeça e o cumprimenta com um “boa tarde” quase acanhado, como se fosse ele quem está mais impressionado pela presença do outro.
É só nesse momento que Gustave se liga que deveria ter usado esse tempinho para se preparar para a entrevista invés de xeretar. Bem, não é nada que ele nunca tenha improvisado antes. Levantando-se, oferece a mão:
— Boa tarde, professor. Sou o capitão Gustave Martin. Preciso apenas te fazer algumas perguntas sobre a última vez que você viu o Mikael Prater.
O professor aperta com menos força do que o esperado, mas faz questão de encarar Gustave diretamente — há algo tempestuoso, delicioso, naquele azul cinzento que faz ele querer puxar o homem para mais perto de si. Isso, e o jeito que seus lábios finos se retorcem brevemente antes dele respirar fundo e responder:
— Prazer, capitão. Estou a seu dispor.
É uma voz tão suave quanto o aperto de mão, porém rouca de um jeito que comprime os pulmões dele, formigando a ponta de seus dedos. É o suficiente para ele nem se importar com o hálito de nicotina que preenche o pouco espaço — espaço exageradamente largo — entre os dois. Naquele momento, por um instante, Gustave fica muito agradecido ao vagabundo que encheu a cara e provavelmente decidiu se jogar numa vala sem avisar ninguém antes. Se o maluco ainda estiver vivo e for encontrado, ele entrega escondido uma cerveja para ele depois.
Chega a ser difícil se restringir — a vontade que dá é de ficar parado ali, admirando os detalhes desse homem que parece ter surgido de alguma outra dimensão. Não tem explicação para o magnetismo que convida Gustave a se permitir ser levado por seus movimentos, por como curva as costas ao se sentar à escrivaninha. Pelo jeito que seus longos dedos se apoiam contra a pálida maçã do rosto dele, afundando-se em pensamentos. Deslizando pela curva do nariz, os cantinhos da boca, as linhas de expressão na testa, os amassados na gola do suéter. Tudo o fascina, até mesmo a maneira que ele limpa a garganta antes de perguntar:
— Não posso te perguntar muitos detalhes sobre a investigação, né?
É sério. Gustave não é cético o suficiente para ignorar a possibilidade de um amor à primeira vista; ele já passou por coisas parecidas quando era mais novo. Aconteceu algumas vezes quando estava ainda em negação sobre si mesmo, mas— não é o caso do momento, e o professor nem faz tanto assim o tipo dele. Não é exatamente amor, mas algo próximo. Um desejo avassalador, com certeza. Uma necessidade de possuir que chega a ser quase assustadora, por mais que não haja adrenalina correndo pelas veias dele. Não há nenhuma urgência martelando contra as têmporas dele, não… Não há mais nada além de uma vontade de continuar ali, olhando fixamente. É tamanha calmaria, que é isso que o assusta de verdade.
Puxando o bloco de anotações do bolso, Gustave tenta preencher sua mente com uma lista de perguntas que precisa fazer, finalmente respondendo:
— É melhor evitar.
— Perdão por me intrometer.
O jeito que ele corre os dedos pelos cabelos, numa tentativa fútil de arrumá-los, faz todos esses pensamentos tropeçarem uns nos outros e saírem voando pela janela. Ele perdoa o professor imediatamente, tanto pela pergunta, quanto pela confusão que causou sem nem imaginar.
— Não, tá… Tá tudo bem. Entendo que é uma situação complicada, mas não posso divulgar informações. Não que eu tenha muitas…
Pelo amor do céu, por que ele tá gaguejando? Toma jeito, filho da puta.
Melhor começar logo com o questionário. São perguntas padronizadas, as mesmas que ele fez para a professora. Quando foi a última vez que se viram, quais assuntos conversaram, o comportamento recente do sumido, se há algo que julga ser uma informação relevante. Ele evita tirar os olhos do papel enquanto ouve e anota as respostas, mas o entrevistado se aproveita de uma pausa para tentar novamente:
— Eu sei que você não pode falar muito, mas por favor, seja sincero. Tem alguma chance de encontrarem ele bem? Vivo, pelo menos?
Quase nenhuma, já que o professor quer honestidade, mas essa não é a frase no script. O papel dele é do policial bonzinho, amigo da vizinhança. Ele precisa trazer consolo e conforto em momentos assim. Entretanto, quando Gustave abre a boca, só consegue soltar um “não sei dizer”.
— Mas o que você acha pessoalmente, capitão?
O silêncio é uma resposta por si só. É difícil falar até mesmo um “sinto muito” quando o professor fecha os olhos e abaixa a cabeça.
— Tá cedo demais para afirmar qualquer coisa, temos pouquíssimos detalhes sobre a situação. Não dá pra apontar nenhuma possibilidade ainda.
— Faz sentido. — O comentário ecoa pela sala. — O jeito é manter as esperanças. Ele é jovem demais para ter um fim tão triste.
Gustave arqueia uma sobrancelha.
— O senhor tem alguma suspeita sobre o que aconteceu?
— Não… Digo, nada muito concreto.
O tom de hesitação é evidente.
— O Prater tinha algum desafeto? Alguém que tentaria algo contra ele?
— Ninguém. — Balança a cabeça, entrelaçando os dedos contra o colo. — Só ele mesmo.
Há uma pausa antes do pedido de confirmação.
— Acha que ele pode ter cometido suicídio?
— Vocês estão considerando essa linha?
Ah, que se foda.
— Não, mas é um dos meus palpites pessoais.
— Pois é. Infelizmente, não me surpreenderia tanto se fosse o caso. — Suspira, e o sopro sobe direto pelos braços de Gustave, arrepiando todo o trajeto até a base do seu crânio, enrolando-se contra seus cabelos e ao redor da concha das suas orelhas. — Eu espero muito estar errado, mas é como falei. Ele não tem andado bem. Meio fora de si, quase sempre fora do ar… Eu tentei conversar com ele, falei com a Adele… a professora Villeneuve, ela também estava preocupada…
— Ela mencionou esse comportamento para mim.
— Pois é. Até que ele parecia melhorzinho durante as reuniões, mas…
O resto da frase se perde em algum lugar entre a Torre Eiffel e o porta-retrato, no espaço que o professor Levesque encara além da mesa. Gustave observa seu olhar opaco, vagando em foco. Seu tom é um murmúrio quando finalmente prossegue:
— Quando ele foi embora na sexta, disse que ia numa festa. Parecia bem empolgado, fiquei até feliz de ver. Achei que ia fazer bem pra ele. Eu devia ter perguntado mais. Onde era, com quem ele ia…
Recuperando um pouco da postura que deveria ter adotado desde o início, Gustave se inclina contra a mesa.
— Ainda é cedo para se lamentar, professor. A esperança é a última que morre, não é?
— Se o senhor diz. — Respira fundo, tentando se recompor. — Perdão novamente pelo monte de perguntas, capitão. Era eu que deveria estar te respondendo, não o contrário.
— Não tem problema, sério. Estamos aqui pra isso também.
Ele responde com algo muito próximo de um sorriso. É contido, mas a curvinha no canto dos lábios está lá, com uma discreta ruga e tudo. É o suficiente para paralisá-lo por alguns instantes a mais que o aceitável, visto que a expressão do professor transparece uma ligeira confusão antes dele perguntar:
— Terminamos?
E mesmo assim, ainda leva alguns segundos preciosos para Gustave voltar à Terra.
— Quase, preciso só preencher sua ficha. Nome completo?
— Émile-Vincent Byrne-Levesque. O sobrenome é hifenizado.
É bem longo, e fresco para caralho, mas pelo menos combina com o homem. Com muita bondade, dá para dizer que é imponente.
— Nome bonito. — Gustave sussurra enquanto anota. Émile não reage, para o bem ou para o mal. Ele pede que o professor confirme a ortografia do sobrenome, porque é uma combinação bem curiosa, sendo sincero. Mas também, se é para falar a verdade, é até meio difícil apontar muito mais coisas sobre seu entrevistado. Ele fala um francês perfeito, com um sotaque terrivelmente local, então deve ser daqui mesmo; pelo outro lado, se tivessem pedido para Gustave chutar a idade dele, ele teria errado por alguns anos a mais. Os cabelos quase grisalhos levaram ele a acreditar que Émile estava um pouco além dos 44 anos que declara ter, mas convenhamos, talvez isso seja parte do charme dele. Considerando a junção desses detalhes, o olhar oblíquo que o lembra de uma raposa, e a aliança dourada em sua mão esquerda, Gustave começa a compreender melhor a própria fascinação instantânea.
Não que precisasse de aliança depois da foto que viu, mas sabe como é. É um acessório inevitável para deixar qualquer homem três vezes mais gostoso. Só Gustave sabe as atrocidades que já ouviu por causa disso.
Como conseguiu sair inteiro daquele escritório é um mistério e um milagre. Infelizmente, depois de reunir todas as informações necessárias, não conseguiu encontrar outro pretexto qualquer para se permitir demorar mais. Émile se levantou e o acompanhou até a porta; por um breve instante, Gustave até considerou fazer mais algum comentário, ou dar um tapinha no braço dele durante a despedida. Qualquer coisa que o tornasse marcante frente ao homem seria válido.
Entretanto, tudo o que conseguiu dizer foi um agradecimento pela cooperação. Dessa vez, Émile nem olhou nos olhos dele ao retribuir o gesto, murmurando que estava disponível para ajudar com o que fosse necessário. A palma da mão dele estava gélida ao apertá-la novamente. Quase não deu para ouvir a voz dele ao desejar uma boa tarde. E com a porta sendo fechada assim que passou pela soleira, não deu nem para se virar e acenar um último adeus.
Em resumo, uma cena patética. O policial respira fundo, tenta manter a seriedade; sente a tensão em sua mandíbula, confere o celular, ajeita o cabelo. Mas quando encontra Bouchard o esperando na frente da viatura, sacolas nas mãos, Gustave chega a levar um susto com a pergunta que recebe:
— Você tá bem, Martin?
— Hein?
— Parece que sua alma saiu do corpo… Já sei! Tá com fome, né? Porra, eu tô varado. Na verdade, até já comi a minha salada, mas parece que não foi nada! Se quiser, eu dirijo e você vai comendo no caminho. Prefere fazer assim?
É como se o monólogo tivesse entrado por um ouvido e saído pelo outro.
— Não precisa.
É uma resposta curta até para os padrões do capitão.
Sinceramente? Preocupante.

Comments (0)
See all