2. Erevan
O dia da partida chegou antes que Erevan pudesse perceber. Deixou o laboratório e a loja organizados, e separou uma mochila leve com suprimentos essenciais. Não que precisasse de muita coisa, a natureza ofereceria o que ele precisaria para sobreviver, mas sempre é bom ter algumas coisas. Papel e tinta para anotar e mandar cartas, algumas frutas, um pouco de água, e potes e frascos de todos os tamanhos para coletar amostras. Ah e claro, o seu caderno de pesquisa. Não ia a lugar algum sem ele. Se pretendia continuar a pesquisa que seu avô deixou, precisaria anotar tudo o que descobrisse.
O garoto olha uma última vez para conferir se deixou tudo em ordem no laboratório. Seu avô deixou séculos de pesquisa e o laboratório centenário para Erevan, por isso tudo precisava ficar perfeito e organizado, do jeito que o avô gostava.
Apesar de que, chamar de laboratório não fazia jus a quão magnífica era a construção. Seguindo o costume das dríades de viver no interior de árvores, olhando de fora, parecia ser uma enorme árvore de Samaúma - e de fato era, mas uma porta ficava escondida entre as raízes. A porta, assim como a mobília, eram de madeira cuidadosamente entalhada mais de um milênio atrás, por um artesão muito habilidoso de um condado que não existe mais. O mais impressionante, no entanto, eram as paredes, formadas naturalmente pela madeira da árvore enquanto crescia, ramificando e retorcendo em volta das portas, janelas e estantes até que estas estivessem alojadas no interior da madeira. Os padrões dos galhos, agora fundidos em paredes sólidas, tornava todo o espaço irregular, com janelas ovais e arcos sinuosos separando os cômodos.
No primeiro andar, por dentro da árvore, estavam uma cozinha simples separada do restante da casa por dois arcos, uma sala com lareira e muitas estantes de livros alojadas na parede, e um pequeno jardim de inverno com legumes e temperos no centro, com vários vasos de planta pendurados em ramificações da árvore. Se subisse pela rampa curva que percorria a lateral da sala, encontraria o banheiro, com uma banheira de madeira e um reservatório acoplado à chaminé que vinha da cozinha para esquentar a água. Descendo para o andar de baixo por outra rampa, um espaço muito maior abrigava o laboratório, a biblioteca com ainda mais livros em prateleiras encaixadas entre as raízes, e um quarto espaçoso, com duas camas, uma escrivaninha e um guarda-roupa, além de um peculiar bolsão de água cristalina que brotava no centro da construção, com diversas espécies de plantas aquáticas e um pequeno cano que levava água ao restante da casa e à horta do lado de fora.
Apesar de ser praticamente no subterrâneo, e bem em cima de uma nascente d’água, dentro era sempre quente e aconchegante. A decoração era colorida, alegre, e de muito bom gosto, no melhor estilo feérico, com tecidos ricos e pigmentos vibrantes, em tons verdes, laranjas e marrons misturados com prata e dourado. Os móveis eram tão antigos quanto a construção, mas igualmente bem cuidados. O mais desgastado era a mesa de trabalho do avô, que presenciou séculos de estudo e pesquisa.
Ainda era estranho ouvir o silêncio ao invés do tilintar da vidraria e o pigarrear tão familiar de Erevaldo enquanto trabalhava. Erevan ainda tinha a impressão que um dia desceria a escada e o encontraria sentado em sua cadeira retorcida, fumando uma mistura de plantas que ele mesmo cultivava e lendo o mesmo livro pela milésima vez, apesar da enorme coleção guardada nas estantes que cobriam as paredes.
Erevan caminha lentamente até a cadeira, já desgastada pelo tempo de uso, e pega o livro que descansava em uma mesinha próxima. “Do raio à raiz - um compêndio sobre a alquimia da vida”. Passando a mão pela capa, o jovem se recorda de quantas vezes tinha ouvido essa história na frente da lareira, tomando uma xícara de chá antes de dormir. As páginas estavam com as bordas desgastadas, a capa tinha desbotado, e a lombada já tinha sido remendada vezes demais.
Um nó se forma na garganta, ao pensar que o próprio livro não iria durar pra sempre. Erevan sempre soube que dríades tinham uma visão diferente da vida, por viverem séculos, às vezes milênios, geralmente afastadas da civilização. Muitos viam esse tempo de vida como uma benção, e têm inveja do seu povo. Mas viver por séculos não diminui em nada a dor da partida. Talvez apenas aumente o número de vezes que é preciso se despedir. Talvez por isso os outros evitavam tanto se aproximar de povos de vida curta.
Erevan respira fundo e pega as chaves da porta da frente. Antes de sair, guarda o livro cuidadosamente na mochila. Apesar de desgastado, ele poderia acompanhá-lo em uma última jornada.
Assim que atravessa a porta, Caliandro corre para abraçar desajeitadamente o garoto, enquanto equilibra um pacote em uma das mãos.
– Trouxe um presente pra você. Pra te desejar boa viagem.
Caliandro solta o abraço e entrega o embrulho para Erevan. É um pacote grande, mas leve, dando a impressão de estar quase vazio. Erevan desembrulha cuidadosamente o que deveriam ser umas 20 camadas de tecido, para revelar uma máscara de madeira entalhada, e um pedaço de papel dobrado.
A máscara parecia ter sido entalhada da casca de uma árvore, preservando a forma natural da madeira, mas criando o formato de um rosto bestial com vários olhos e dois chifres feitos de galhos retorcidos e ramificados. Os detalhes entalhados se mesclavam perfeitamente com os sulcos naturais do material. Era realmente um trabalho de um artista, e Erevan sorri, reconhecendo o trabalho de um certo bardo de cabelos loiros. Sua arte ia muito além de um show na taverna nas quintas à noite, e todos sabiam que ele poderia seguir carreira como um artesão, caso quisesse.
Erevan desdobra o papel, e não consegue conter um sorriso travesso ao ver a manchete do jornal da cidade.
– Onde você arranjou isso?
– Lá na cidade, ouvi dois viajantes conversando na taverna e consegui achar isso. Achei que te descreveram bem. “Últimas notícias: será que a Floresta de Samaúma é assombrada? Estranho espírito da floresta, com três pernas, dois chifres e muitos olhos, foi visto vagando pelas matas durante a noite, assombrando viajantes de passagem. Testemunhas afirmam que o espírito habita uma das árvores da Floresta de Samaúma. Cuidado ao passar pelo local!”
– Eu não sou assim! – Erevan observa a porta da qual saiu, quase oculta entre as raízes – Mas não posso negar que sair de dentro de uma árvore pode parecer bem misterioso pra quem não conhece essa floresta.
– Segundo as lendas locais, você é exatamente assim. Olha, tem até um desenho de você aqui – Cali vira o papel para revelar um rabisco péssimo do que parecia ser um monstro do pântano feito por uma criança de 5 anos – Eu acho que três pernas é por causa da sua muleta, chifres devem ser suas orelhas pontudas. Só não sei onde viram muitos olhos.
– Será que das minhas tatuagens no rosto?
– Hmm… – Cali aperta os olhos e inclina a cabeça, observando o par de tatuagens no rosto de Erevan, uma em cada bochecha logo abaixo dos olhos, feitas no dia de sua iniciação como druida – Não, acho que só se assustaram com sua cara feia mesmo. Por isso fiz a máscara, assim você para de assustar os viajantes.
– Eu sei que lá no fundo você me acha lindo.
O garoto veste cuidadosamente a máscara. Ela encaixa perfeitamente no seu rosto, e além de ser incrivelmente leve, era muito confortável pra uma peça de madeira.
– Ah, o embrulho é um presente também. É uma capa, pra combinar.
A capa era igualmente bem feita, leve e confortável, produzida pelas mesmas mãos habilidosas. Sua estampa se assemelhava à folhagem, e poderia facilmente ser usada para camuflagem, e o tecido leve e macio seria ótimo para longas viagens. E para prender a capa aos ombros, havia um pequeno botão brilhante costurado ao tecido.
– Isso é…?
– Isso mesmo. Um botão do jaleco do Seu Erevaldo. Seu Barba encontrou ele no chão onde seu avô costumava trabalhar, e o reconheceu na hora. Bom, uh… se você não tiver gostado… Você pode tirar se… Se quiser…
– Eu adorei. – Erevan abraça o rapaz antes que ele termine a frase – É perfeito.
– Fiz pra sua viagem, a manchete acabou me dando a ideia. Tem um pouquinho de magia de ocultamento no tecido, sei que você sempre tenta passar despercebido. Mas é bem fraca, então não conte com isso pra se esconder, imbuir magia na arte ainda é bem difícil pra mim.
– Magia ou não, ficou incrível. – Eren admira novamente os presentes – Obrigado, Cali. Adorei, de verdade.
– Ah, que isso… É só uma lembrancinha… – Cali desvia o olhar, sem jeito, e pousa os olhos na pequena mochila de Erevan – Então, você está realmente indo, né? Sabe, ainda não é tarde para me convidar pra ir com você.
– Ei, não começa! E são só três semanas, logo estou de volta. Na próxima viagem, você pode ir comigo.
Apesar de Erevan viajar com frequência e sempre passar dias fora, Caliandro sempre ficava com o mesmo olhar de um cachorrinho que estava ficando para trás nas vezes em que não podia ir também. Erevan não tinha certeza se era por saudades, ou se ele realmente só tinha vontade de ir junto. Talvez um pouco dos dois. Mas ambos sabiam que os rituais druidas eram proibidos para forasteiros, e Cali já sabia até mais do que devia sobre seus costumes.
Os dois se abraçam e se despedem, e Erevan luta contra a vontade de olhar para trás enquanto caminha. Ele perde a luta, para a felicidade de Cali, que acena animadamente para o garoto. Erevan acena de volta, endireita a capa nas costas, e verifica se a máscara de madeira estava bem presa na mochila antes de voltar a caminhar. Por mais confortável que fosse, ele preferia guardar para usá-la em algum momento mais apropriado. Queria que ela durasse pra sempre.

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